El fenómeno de la angustia de la falta de espíritu en El concepto de la angustia de Kierkegaard

Resumen: En este artículo intentaré pintar o describir el fenómeno de la Angustia de la Falta de espíritu (Aandløshedens Angest), poniendo en cuestión este fenómeno: ¿la falta de espíritu está dentro del ámbito de la Angustia o la Desesperación? ¿Angustia y Desesperación? Procederé a hacer un breve análisis de la relación entre la angustia y la desesperación, con el fin de visualizar el fenómeno de la falta de espíritu (Aandløshedens) en el contexto de la obra El concepto de la angustia de Kierkegaard.

Palabras claves: Angustia, Desesperación, Falta de espíritu, sí-mismo, Espíritu.

Abstract: In this article, I will try to paint or describe the phenomenon of Anxiety of Spiritlessness (Aandløshedens Angest), questioning this phenomenon: Is spiritlessness within the scope of Anxiety or Despair? Anxiety and Despair? This article will proceed to make a brief analysis of the relationship of anxiety and despair, in order to visualize the phenomenon of spiritlessness (Aandløshedens) in the context of the work The Concept of Anxiety by Kierkegaard.

Keywords: Anxiety, Despair, Spiritlessness, Self, Spirit.

Datos del autor:

Marcos Érico de Araújo Silva

O fenômeno da Angústia da Falta de espírito (Aandløshedens Angest), como todo fenômeno psicológico, em Kierkegaard, demanda uma dificuldade de compreensão, dado sua natureza ambígua e, em razão disso, por ser descrito desde diferentes perspectivas, pode nos conduzir a diversas interpretações. Tentarei uma aproximação deste fenômeno procurando visualizar uma compreensão do seu sentido. O termo Aandløshedens, falta de espírito, a-espiritualidade, ou ainda, insensibilidade espiritual, aparece em diversas obras, sobretudo em 1844 e 18491. Em todas as passagens Aandløshedens aparece como contraposição à autenticidade e, portanto, o termo expressa sempre uma decaída, um modo de existir da não-liberdade. Inclusive em Quatro Discursos Edificantes de 1844 Kierkegaard o designa como “conceito” (Aandløshedens Begreb, SKS 5,328), assim como em A Doença para a Morte (Begreb Aandløshed; SKS 11, 160). Mas, apesar disso, não encontrei em nenhuma das diversas passagens um tratamento sistemático, ou uma elaboração de Kierkegaard em elucidar e desenvolver o conceito. Apenas três páginas de O conceito de angústia e, sobretudo, em A Doença para a Morte é explicitamente mais desenvolvida, entretanto não são muito extensas. Sempre, o que predomina, na descrição de um dado fenômeno autêntico, é contrapor-se à falta de espírito (aandløshedens) como fenômeno caricato da determinação do espírito (Aand).

Tem muita razão o Prof. Nuno Ferro na seguinte observação acerca da tonalidade afetiva (Stimmung) ou disposição do tédio aplicando-se, aqui, perfeitamente, ao fenômeno da falta de espírito ou a-espiritualidade: “Deve ter-se em conta que na obra de Kierkegaard o tédio não é sempre a ‘mesma coisa’, mas pode revestir formas diversas. Essa ‘dificuldade’ não é específica do tédio, pois aplica-se, de fato a todos os fenômenos e/ou categorias, ainda que isso não possa ser sempre muito visível”2. É possível, pois, que um mesmo fenômeno possa aparecer, manifestar-se de diversas formas. Essas tonalidades de sentidos é que dificultam a apreensão do fenômeno. Isto está relacionado pelo fato do fenômeno ser uma determinação intermediária (Mellembestemmelser) da existência e enquanto tal mantém sua ambiguidade psicológica. Essa ambiguidade psicológica do fenômeno é a exigência que Vigilius Haufniensis/Kierkegaard3 estabelece para que possa ser objeto de investigação da psicologia, a saber, da filosofia existencial que examina o homem desde as determinações intermediárias. Explicar esses fenômenos capturando-os em sua dialética é “[...] tão trabalhoso como pintar um duende com o barrete que o torna invisível”4. Essa natural dificuldade não imobiliza a filosofia Kierkegaardiana, mas, ao contrário, é justo isto que a mobiliza para ser uma espécie de “corretivo” para a filosofia. De fato, a perspectiva psicológica, quer dizer, a tematização das determinações intermediárias, das tonalidades afetivas (Stemninger) enquanto e como categorias5 existenciais que explicam o paradoxo do existir na passagem ou transição (Uebergang) dos diversos estádios ou modos de existência é o ponto de partida metodológico da filosofia Kierkegaardiana marcando uma profunda diferença com a filosofia da tradição.

Para a finalidade deste artigo tentarei pintar ou descrever o fenômeno da Angústia da Falta de espírito (Aandløshedens Angest) colocando em questão este fenômeno: a falta de espírito é do âmbito da angústia ou do desespero? Da angústia e do desespero? Passarei a fazer uma breve análise da relação da angústia e do desespero (II), para poder visualizar o fenômeno da falta de espírito (aandløshedens) no contexto da obra O Conceito de Angústia (III), concluindo, indicando a necessidade de um estudo futuro sobre a questão no contexto da obra A Doença para a Morte (IV).

O ponto de partida da filosofia Kierkegaardiana é a tematização das determinações intermediárias, das tonalidades afetivas como medium ou elemento próprio da constituição ou determinação do si-mesmo (Selv). O homem, ou si-mesmo não é, ele vem a ser. O homem, imediatamente, possui um si mesmo (Individ), mas é convocado a viver uma vida relacional, integrando, conquistando um si-mesmo (Selv como den Enkelte). Essa passagem de um si mesmo fragmentado, desesperado, para um si-mesmo6 relacional, integrado é a via sacra da existência e a síntese da filosofia Kierkegaardiana. Toda obra de Kierkegaard retrata o esforço intelectual de explicar isso. A criação mesma da duplicidade da obra, da dialética da comunicação direta e indireta, ao recorrer aos pseudônimos, é o ato criador do filósofo para chamar a atenção do leitor, tornando-o atento para não enfrentar as obras apenas com curiosidade científica, na tonalidade afetiva da erudição, da falta de espírito. É preciso, antes, entrar na dinâmica mesma das obras compreendendo os fenômenos em causa para reduplicá-los na própria existência. Toda produção Kierkegaardiana é uma variação do mesmo, a saber, a passagem do si mesmo ao si-mesmo. O que está em causa é a própria determinação do si-mesmo (Selv) do homem como espírito (Aand), quer dizer, do ser mesmo do homem no seu vir-a-ser em algum estádio existencial. Nessa “passagem ou transição” (Uebergang), ou para que isto seja possível, aparecem as determinações intermediárias, as tonalidades afetivas que afetando e, por assim dizer, possuindo o homem, mobilizam-no, colocando-o no movimento do devir do si mesmo para o si-mesmo, ou do Individ para o den Enkelte, ou do estético para o ético-religioso.

Kierkegaard, pois, não tomará o caminho de compreender o homem como um Eu-Eu infinitizado, fichteano, enquanto uma “infinitude em que não há nenhuma finitude, uma infinitude sem nenhum conteúdo”7. Nem seguirá a crítica shellinguiana a Fichte advogando um Eu absoluto. Nem se encantará com a solução hegeliana da determinação do Eu como espírito através do processo dialético da consciência na história e na instância da eticidade. Kierkegaard, ainda que não faça explícitas referências, está filosoficamente dialogando com o Idealismo alemão, mas também com o Romantismo alemão. Sua produção filosófica gravita ao redor do Eu, do Si-mesmo (Selv). Mas, o tratamento filosófico dado à questão, será encarnado em personagens pseudônimos representando existências reais em determinadas situações contextualizadas existencialmente. É o indivíduo (Individ) lutando por conquistar sua singularidade (den Enkelte), seu si-mesmo. Aqui aparecem as determinações intermediárias esquecidas pela tradição. Para a determinação do homem como espírito, e, portanto, para a apropriação da subjetividade do si-mesmo a angústia e o desespero serão imprescindíveis para essa determinação (angústia) ou pelo fracasso (desespero) dela.

É preciso, pois, explicar a relação da angústia com o desespero. Ou, antes, é preciso colocar em questão a angústia e o desespero para poder ver se é possível estabelecer uma relação entre ambos os fenômenos. Angústia e Desespero são fenômenos que se movimentam no mesmo âmbito fenomenológico? Um se reduz ao outro, ou cada um carrega uma singularidade que impossibilita uma identificação? Inicialmente, como todo fenômeno psicológico, eles são ambíguos, e, por isso, dificultam uma circunscrição muito lógica ou exata de suas fronteiras e linhas limítrofes. Mesmo considerando toda essa ambiguidade e, justamente por causa dela, quer dizer, não sendo possível eliminá-la, mas tendo que mantê-la para conservar o fenômeno psicológico-existencial, então a conclusão que chego é de caracterizar cada fenômeno em sua tonalidade mais marcante. É preciso manter a ambiguidade do fenômeno precisamente pelo fato de ser um fenômeno existencial de um existente em constante devir. Nesse sentido, a tonalidade mais marcante da tonalidade afetiva da angústia é sua positividade, enquanto que a tonalidade mais marcante da tonalidade afetiva do desespero é sua negatividade. Claro que a angústia pode aparecer na vida de um indivíduo numa forma negativa, assim como o desespero pode aparecer na vida de um indivíduo como um acontecimento em que sua própria vida se mostra subitamente como sem saída e isto mesmo pode ser uma ocasião para um salto, quer dizer, para a possibilidade de ascender a outro modo de vida8. Mas o que caracteriza, o que mais se destaca na tonalidade afetiva da angústia é sua positividade, enquanto que na tonalidade afetiva do desespero é sua negatividade. As determinações intermediárias, pois, são ambíguas e, por isso, dialéticas: “E essa ambiguidade ele [Kierkegaard] a chama de dialética, porém psicológica e não lógica”9. Assim, na angústia ainda que prevaleça o aspecto positivo, sua negatividade também está à espreita, do mesmo modo, no desespero sobressai o negativo, estando o positivo latente10. Isso não só parece paradoxal como de fato retrata o paradoxo da vida, da existência. André Clair refletindo sobre a tarefa do pensamento Kierkegaardiano mostra esse caráter paradoxal em que, por um lado, cria categorias, e, por outro, essas categorias devem explicar os fenômenos que estão constantemente em devir:

[...] constituem uma tipologia de todos os comportamentos e mostram a dinâmica da existência no movimento de um estádio a outro. Tal é o sentido desta dialética existencial e paradoxal: explicitar como os estádios são, por sua vez, as esferas e as etapas, explicar como uma existência individual deve ser entendida em sua constituição, ao mesmo tempo, que em sua realidade em devir11.

A filosofia Kierkegaardiana, então, busca explicitar o caminho que faz do homem um si-mesmo. Esse caminho, ou via sacra, são os estádios existenciais. Os estádios e as determinações intermediárias enquanto tonalidades afetivas não são coisas substancializadas, cristalizadas, sedimentadas. Não são entes, coisas, mas um modo possível de ser, de existir. É um estar de tal modo atravessado por um humor, por uma tonalidade afetiva que esta determina o tom do modo de viver a existência, de se encaminhar no caminho da vida. Os estádios, pois, enquanto modos possíveis do homem configurar sua existência, são dimensões, aberturas que possibilitam do homem se autodeterminar. Modos de existir, dimensões, aberturas são possibilidades de poder-ser ou ser-capaz-de (Muligheden af at kunne). A tonalidade afetiva da angústia pro-move, coloca em movimento o homem na realização de sua liberdade, quer dizer, impulsiona o homem para ex-istir, apropriando-se de um modo de ser, de um fazer, que, ao ser feito, existencialmente o faz, tornando-o o homem que é. Por outro lado, a tonalidade afetiva do desespero, enquanto pecado, é a enfermidade do si mesmo no sentido de impossibilitar do si mesmo tornar-se concretamente, singularmente, si-mesmo. O desespero in-siste em permanecer no pecado, no mal, enclausurando-se num fechamento existencial em que mata a possibilidade de poder-ser ou de ser-capaz-de. Com muita agudeza filosófica, Paul Ricœur apresenta a característica mais marcante nos dois fenômenos, diferenciando-os:

[...] o primeiro [O conceito de angústia] fala do mal como de um evento, de um salto; o segundo [A Doença para a Morte] fala dele como de um estado de coisas. A substituição da angústia pelo desespero exprime essa mudança: a angústia tende para... o desespero reside em...; a angústia ‘ex-siste’; o desespero ‘in-siste’. [...] Ora, o conceito de desespero pertence à mesma esfera, não ética mas religiosa, que é a fé de Abraão; o desespero é o negativo da fé de Abraão. Eis por que Kierkegaard não diz primeiro o que é o pecado, depois que é o desespero, ele constrói e descobre o pecado no desespero como sua significação religiosa; a partir daí o pecado não é mais um salto, mas um estado estagnante, uma maneira insistente de ser. Segunda consequência: a questão não é mais como ‘ele entrou no mundo’ – pela angústia, - mas como é possível dele sair12.

Nesse sentido, conforme a passagem acima, a tonalidade afetiva da angústia tem o aspecto positivo pelo fato de estabelecer no homem uma relação de possibilidade de poder-ser. A angústia, então, é um movimento existencial, um impulso para o salto qualificando a própria existência em sua autodeterminação. Na angústia o homem ex-siste, quer dizer, ela é a abertura na qual ocorre o acontecimento, o evento da existência. Na ex-istência o homem apropria-se de uma possibilidade de poder-ser configurando-se e, assim, autodeterminando-se. Na tonalidade afetiva do desespero se dá um travamento do movimento, uma imobilização da possibilidade propiciando uma insistência num determinado modo de ser sem dele poder sair. A existência infectada pelo desespero vive a existência aquém de sua própria possibilidade. A existência enferma pelo desespero confere uma tonalidade afetiva que determina a vivência existencial de um modo de ser enredado, travado, no qual, o indivíduo (Individ) sente que não vive em sua plenitude, em sua singularidade. Na tonalidade afetiva da angústia o pecado aparece como uma possibilidade e, mesmo quando o pecado estiver posto, a possibilidade ainda atua relacionando-se com ele como uma realidade indevida. Na tonalidade afetiva do desespero o que é mais marcante é que o indivíduo cede ao pecado e o experimenta como um estado de fato, um viver a morte sem poder morrer. “[...] essa enfermidade do si mesmo que consiste em estar morrendo eternamente, morrendo e não morrendo, morrendo a morte. [...] O desesperado não pode morrer”13. No sentido de que, apesar de tudo e inclusive de si mesmo, o eterno no homem, o espírito, não pode morrer. Assim, a existência infectada pelo desespero, mata a possibilidade de poder-ser no homem que poderia atuar na existência como vacina e cura, vitalizando-o.

Aqui, mostra-se, a relação ambígua da angústia e do desespero. Na angústia o que mais se destaca é o caráter de movimento, de salto em sua relação com o nada e a possibilidade. Quando o pecado, o mal, está posto, então, poderia ocorrer de a angústia cessar porque não haveria mais a possibilidade provocada pelo espírito para se autodeterminar ganhando uma forma, um modo de ser. Quando o pecado é posto a situação transforma-se de possibilidade em realidade, quer dizer, em um estado. O indivíduo preso psicologicamente em um estado, não tem mais movimento, mas apenas insistência persistente nisto que está posto. Mas, então, subitamente, a angústia novamente aparece, em meio ao desespero, suscitando a possibilidade de se relacionar com a realidade dada como sendo uma realidade indevida. Irrompe, pois, o salto “com a subitaneidade do enigmático”14 e, agora, a possibilidade tem um poder de retirar o homem de um estado de fato, engessado, para dar uma nova forma ao espírito. No fenômeno do desespero também essa ambiguidade acontece. Ainda que seja uma tonalidade afetiva negativa porque impossibilita do homem se singularizar, ser um si-mesmo e, por isso, é uma doença, não obstante, a experiência do desespero pode, subitamente, desvelar ao indivíduo a vacuidade de sua existência e, assim, a angústia se manifesta ao pro-mover um movimento de saída desse estado. Não é sem razão que o mote da obra A Doença para a Morte é a experiência de ressurreição de Lázaro que, paradoxalmente, morto há quatro dias numa tumba, imagem eloquente do desespero, consegue escutar a voz de Cristo. A voz do Verbo (Ação, movimento) é a doação da Graça, a experiência existencial possibilitada, o movimento da ação da fé que o salva do desespero.

É preciso, agora, após essa Stemning da diferenciação da angústia e do desespero, descrever o fenômeno da Angústia da Falta de espírito (Aandløshedens Angest) no contexto da obra O Conceito de Angústia. A dificuldade inicial encontra-se em Kierkegaard designá-lo justamente de angústia e não de desespero. Isso, talvez, encontre sua razão de ser pelo fato de ainda, em 1844, não ter elaborado o conceito de desespero, mesmo que Kierkegaard utilize a palavra “desespero” em diversas obras anteriores A Doença para Morte. Mas quando, ao aprofundar o fenômeno da falta de espírito, cinco anos mais tarde, especificamente em A Doença para a Morte, este aparecerá mais como desespero do que como angústia. Se aqui, porém, em O conceito de angústia, Kierkegaard o enquadra como angústia, então é preciso clarificar o sentido de angústia para depois nos ocuparmos de reconstruir o fenômeno da Falta de espírito como sendo do âmbito da angústia. Aqui, mais uma vez, como em todo fenômeno psicológico, na análise de toda tonalidade afetiva, sentimos a dificuldade de pintar o fenômeno. Dificuldade semelhante àquela de pintar um duende com o barrete que o torna invisível: no exato instante em que o fenômeno se mostra, possibilitando sua visualização, nesse mesmo instante em que iniciamos a pintá-lo ele se retrai, se esconde. Isto, porém, é sinal de que nos movemos, ao tratar deste conteúdo, assim como do modo de acessá-lo, não no âmbito das ciências, mas sensu eminentiori no campo filosófico. Nos dias de hoje, na filosofia, isso é quase algo raro, quanto também soa estranho ter que isto afirmar.

A angústia, assim como o desespero, são tonalidades afetivas fundamentais para a determinação, ou fracasso do homem como espírito. Assim como o conceito de homem, pelo Idealismo alemão (Kant, Fichte, Schelling, Hegel), é tematizado como sendo determinado pelo espírito, da mesma forma Kierkegaard procura se manter neste diálogo filosófico, ainda que de forma crítica. Deste modo, o eu, o si-mesmo, o homem em Kierkegaard é determinado como espírito, mas este espírito não está dado ou já constituído, antes e radicalmente, precisa ser conquistado, apropriado. O como o filósofo de Copenhague explica essa determinação do homem como espírito será a marca que o diferenciará do Idealismo alemão. Mas, julgo importante salientar: Kierkegaard está dialogando com eles, quer dizer, está pensando a realidade, o real sob o prisma da filosofia. Isto significa que, desde seus escritos de juventude, Kierkegaard persegue uma compreensão do homem como sendo determinado pelo espírito. Em 1841-42, numa obra inacabada, Johannes Climacus ou É preciso duvidar de tudo, Kierkegaard define o homem assim: “consciência é espírito”15. E logo acrescenta os elementos constitutivos para poder compreender as determinações da consciência, do si-mesmo, diferenciando-as das determinações da reflexão, da tradição filosófica: “[...] as determinações da reflexão sejam sempre dicotômicas [...] as da consciência, ao contrário, são tricotômicas [...]”16. Essas indicações são preciosas porque justamente em O Conceito de Angústia e em A Doença para a Morte essa compreensão do homem determinado como espírito — e este enquanto terceiro (ou, em verdade, primeiro!) elemento da constituição do Selv — chegará à maturidade de seu desenvolvimento no sentido de tematizar explicitamente a questão. De fato, o jovem Kierkegaard já possui essa perspectiva de que o homem por ter de se determinar como espírito precisa passar pelos estádios existenciais. Já em Ou-Ou, de 1843, encontramos: “Ora, por maiores que pudessem ser as diferenças dentro do estético, todos os estádios [estéticos!] têm todavia uma semelhança essencial: o espírito não está determinado como espírito, mas sim determinado imediatamente”17. Quando o homem se determina, ou autodetermina-se como espírito significa, pois, que o espírito, desperto, em estado de vigília estabelece a síntese ontológica do si-mesmo, do Selv. O indivíduo (Individ) tornou-se, através de vários estádios, um Indivíduo Singular (den Enkelte), singularizando-se. Isso, porém, é uma descrição fenomenológica-existencial possibilitada pela própria “estrutura primitiva”18, pela constituição ontológica do Selv. Não é, pois, uma fixação de um estado de fato rígido e sem dinamismo vital. Não se trata de uma estratificação sedimentada de uma situação sub especie aeterni própria do pensamento abstrato19. O que equivale a afirmar que é possível de o Indivíduo Singular decair. Mas, também, tem sempre a possibilidade de poder retomar, repetir, reapropriando-se de si-mesmo. Quando o indivíduo não se singulariza, não estabelece a síntese, então o espírito está presente, como que sonhando, inconsciente, numa relação imediata com sua naturalidade. Qual o papel da angústia nisto? Como opera a angústia em sua relação com o espírito para que este torne-se desperto e, verdadeiramente, por assim dizer, venha à existência?

No “§ 5 O conceito de angústia” do Caput I, Vigilius Haufniensis/Kierkegaard examina o nascimento da angústia e do espírito. Vamos trabalhar essa relação na perspectiva de reconstruir uma Stemning propícia para tratar da “angústia da falta de espírito”.

Esse estado de imediatidade, em que ainda não há síntese dos elementos heterogêneos constitutivos do si mesmo, sem, portanto, vida relacional, é o estado de ignorância, de inocência. “A inocência é ignorância. Na inocência o ser humano não está determinado como espírito, mas determinado psiquicamente em unidade imediata com sua naturalidade. O espírito está sonhando no homem”20. Na inocência o homem não está determinado como espírito. Na inocência o homem não é, por assim dizer, homem; não sintetizou ou singularizou o si-mesmo. O que equivale a afirmar que na inocência o homem vive em algum estádio dos diversos estádios estéticos. Kierkegaard, através de diversas obras, recorrendo a pseudônimos, e, sobretudo, na primeira parte de Ou-Ou, analisando personagens, arquétipos do homem na literatura universal, mostrou, acenou para a descontinuidade das tonalidades afetivas tornando a vida volúvel. Já em sua tese de doutorado, em 1841, assim se expressava sobre o irônico: “Mas dado que não há nenhuma continuidade no irônico, assim se sucedem um ao outro os mais opostos estados de ânimo. Ora ele é um Deus, ora um grão de areia. Suas tonalidades afetivas (Stemninger) são tão casuais como as encarnações de Brahma”21. Assim, o irônico, o esteta conduz a existência atravessado por tonalidades afetivas que, por assim dizer, fornecem-lhe uma máscara para cada ocasião. Ele poetiza tudo para nisso sentir-se livre, mas, na verdade, é escravo de si mesmo, vive na não-verdade, na não-liberdade22. A única continuidade que o irônico possui é o tédio. “Mas o tédio é precisamente a unidade negativa assumida numa consciência pessoal, em que os contrários desaparecem”23. “Unidade negativa” será também a expressão utilizada por Anti-Climacus, em A Doença para a Morte, de 1849, para falar do indivíduo (Individ), do si mesmo que não realizou a síntese, não se singularizou (den Enkelte como Selv). É a existência do desesperado. “Unidade negativa” é, pois, o que Vigilius Haufniensis/Kierkegaard, ao descrever o estado de inocência, chamou de que o homem está “determinado psiquicamente em unidade imediata com sua naturalidade”. Aqui a relação com os elementos heterogêneos da constituição primitiva do homem se dá numa unidade imediata com sua naturalidade. Unidade sim, mas negativa, quer dizer, imediatamente, sem que a relação dos elementos se relacione com a própria relação. “O espírito está sonhando no homem”: está presente, inconsciente, mas não desperto. As tonalidades afetivas conduzem ora para a dimensão corpórea, ora para dimensão psíquica. Ora para a temporalidade, ora para a eternidade. A verdade, porém, não se encontra em nenhuma dessas polaridades. Essa descontinuidade revela que o espírito permanece esquecido como o elemento impensado da relação. Não obstante, é justo o espírito que possibilita a existência dos polos ou elementos heterogêneos da constituição do si mesmo. Compreender essa paradoxal relação dos elementos heterogêneos que constituem o si-mesmo só pode ser vista através da psicologia ou filosofia existencial. A Lógica só atrapalha fazendo-nos ver mais do que deveríamos! Não existe, pois, o espírito ou instante como resultado da relação corpo e alma, ou tempo e eternidade (corpo + alma = espírito; tempo + eternidade = espírito ou instante). Antes se dá o inverso24, a saber, é por causa do espírito ou instante que pode existir algo como o corpo ou temporalidade para se relacionarem com alma e eternidade. Mas, quando o espírito está sonhando, quer dizer, presente, mas ausente, ausente, mas presente, então o espírito é portador de um poder ambíguo atuando na relação.

Enquanto [o espírito] se acha então presente é, de certa maneira, um poder hostil, pois perturba continuamente a relação entre alma e corpo, que decerto subsiste sem, porém, subsistir, já que só receberá subsistência graças ao espírito. De outra parte, o espírito é um poder amistoso, que quer precisamente constituir a relação. Qual é, pois, a relação do homem com este poder ambíguo, como se relaciona o espírito consigo mesmo e com sua condição? Ele se relaciona como angústia25.

A relação corpo e alma, temporalidade e eternidade só existe de fato, na vera, por virtude, por força do espírito. É, portanto, o espírito que possibilita a relação. O espírito se relaciona consigo mesmo e com sua condição de inconsciência, de ignorância como angústia. É um poder hostil quando o espírito está sonhando, inconsciente projeta a realidade como possibilidade de liberdade. A tonalidade afetiva, por exemplo, da melancolia, aparece e toma posse do indivíduo (Individ). Este movimento é provocado pelo espírito que deseja se libertar e ganhar uma forma que lhe é mais própria. “Se tal não acontecer, o movimento interrompe-se, retrai-se, emergindo, então, a melancolia. [...] Se perguntarmos a um melancólico qual o fundamento dessa sua melancolia, que coisa se abate sobre ele, então, responderá: não sei o que é, não sei explicar”26. Assim, no estado de inocência, de ignorância o espírito perturba a relação atuando como angústia. A melancolia, assim como o desespero, é o negativo da angústia. Mas, ao mesmo tempo, como parte da ambiguidade psicológica, o espírito atua como angústia enquanto inclinação para constituir a relação. Angústia não se refere a um saber, mas ao nada. Kierkegaard não pensa o real sob o prisma da epistemologia ou teoria do conhecimento, mas pensa ou realiza uma ontologia-existencial-fenomenológica. O nada da angústia vincula-se às possibilidades (estética), ou à possibilidade (ético ou ético-religioso) enquanto um modo ou modos possíveis de viver, de existir. E estas estão atreladas ao advento da não-liberdade ou da liberdade. A existência sempre já está lançada num modo de existir, numa abertura existencial em que a não-liberdade ou a liberdade foram possibilitadas de acontecerem. Quando o espírito desperta, quer dizer, na vigília, em que a aurora anuncia o instante inicial-decisivo da vida ética, aconteceu, então, o evento da passagem da existência estética para a vida ética: “Na vigília está posta a diferença entre meu eu e meu outro”27. Isto deve significar que na vigília, no despertar consciente do espírito ocorre a síntese promovendo a singularização do si mesmo em si-mesmo, o “meu outro”. A angústia, pois, como atividade do espírito, inclina o homem para a relação com a relação dos elementos constituintes da estrutura primitiva do si-mesmo. Em uma palavra: a tonalidade afetiva da angústia como manifestação do espírito realiza a autorrelação da relação, engendrando o outro do si mesmo (imediato, esteta), como sendo, ou melhor, tornando-se si-mesmo (relacional, ético-religioso; o “meu outro”). A angústia como atividade do espírito faz o partejamento do espírito dando-lhe uma forma mais apropriada concretizando a sua possibilidade na existência do indivíduo (den Enkelte), singularizando-o. O indivíduo, assim, escolhe a si-mesmo em seu valor eterno. Não mais oscila de possibilidade em possibilidade protelando a decisão verdadeiramente decisiva de apropriar-se do eterno no tempo. Radicalmente diferente do modo como o irônico ou esteta se relaciona com as tonalidades afetivas. Aqui, no estádio ético ou ético-religioso, quando o homem está determinado como espírito, as tonalidades afetivas têm continuidade efetivando a seriedade da existência:

Mas numa vida saudável a disposição afetiva é afinal apenas uma potenciação da vida que de resto se agita e se move em alguém. Um cristão sério sabe muito bem que há instantes em que ele está tomado mais profundamente e de maneira mais viva pela vida cristã do que habitualmente; mas nem por isso ele se torna um pagão quando a disposição de ânimo passa. Quanto mais saudável e seriamente ele vive, tanto mais quer permanecer senhor de seu estado afetivo (Stemning), quer dizer, tanto mais quer humilhar-se sob este e com isso salvar sua alma28.

Angústia como tonalidade afetiva positiva tem esse sentido de “potenciação da vida”, quer dizer, potencializa, plenifica de poder a própria vida extraindo dela uma vida mais Vida; o “meu outro”. A angústia é o movimento existencial dessa atividade do espírito que se inclina até tocar e afetar um modo de ser, um poder-ser. É o espírito, através da angústia, que, paradoxalmente, parteja a si mesmo pata tornar-se si-mesmo. É a passagem do meu eu ao meu outro, “pois só no bem há unidade de estado e passagem”29!

De toda essa descrição fica e-vidente que a tonalidade afetiva da angústia é própria do homem. Nem um outro ente, animal, vegetal ou seres angélicos são passíveis de serem afetados e possuídos pela angústia. Só o homem pode ser tomado e afetado pela angústia por ter de se determinar como espírito. Ela é o caminho através do qual o espírito conduz o homem para si. A angústia é o “tesouro escondido” (Mt 13,44) descoberto por quem foi por ela educado e, por isso, pode até perder o mundo inteiro, mas ganhará o espírito! Sim, é possível e imprescindível ser formado pela angústia, “formado pela possibilidade”30, pois “sendo o indivíduo formado pela angústia para a fé, a angústia então há de erradicar justamente o que ela mesma produz”31. A angústia está intrinsecamente relacionada ao nada, às possibilidades. E, por isso, a liberdade passa pela angústia. Mas é preciso também informar que a angústia também pode desencadear a não-liberdade32.

O que de positivo se destaca na tonalidade afetiva da angústia é a abertura existencial que é ofertada ao homem. Essa abertura se abre diante do nada e das possibilidades. Vigilius/Kierkegaard – aquele que não dorme, mas está desperto, em estado de vigília justo quando a maioria dos homens estão inconscientes – é claro em afirmar que a angústia não tem um objeto determinado. A angústia, propriamente, não se revela diante de qualquer objeto. Não tem relação com o medo, por exemplo. A angústia nasce diante do nada. A experiência com o nada provoca a angústia. Diante de um objeto real ou imaginário, que me provoca medo, por exemplo, sou possuído por uma tonalidade afetiva que me imobiliza e me deixa emocionalmente instável. Estou preso e dependente deste objeto. Não sou livre. Quando sofro por algo ou alguém, estou amarrado a este algo ou alguém de modo a não conseguir uma distância de meu sofrimento. A dor do sofrimento sempre é renovada porque não consigo manter distância do que me causa sofrimento. Estou en-volvido, literalmente voltado em direção do que me causa sofrimento. Não sou livre. Na tonalidade afetiva da angústia, entretanto, o que se mostra é uma experiência de separação, um pathos da distância — afirmaria Nietzsche — a partir do qual consigo ver a totalidade de minha existência. Nessa distância existencial vejo o fenômeno em sua verdade. É uma dor que liberta. Tudo perde seu valor, revelando-me a relatividade do que antes se apresentava como absoluto. Há uma experiência de nadificação do real. As coisas, por assim dizer, se afastam, mostrando-se como são e, por isso mesmo, aproximam-se com outro pathos, com outra tonalidade. Agora, elas perdem sua força sobre mim. Sou afetado e tomado por elas desde um pathos da distância, desde a angústia. Isso significa que na tonalidade afetiva da angústia experimentamos a estranheza frente ao mundo e a si mesmo. Experimentamos uma disposição de ad-miração por ver as coisas com outro olhar. Diante do nada experimentamos a possibilidade de poder-ser. Aqui reside a liberdade que a angústia oferece. O nada são as possiblidades que aparecem em meu horizonte de existência que, por assim dizer, revelam todo poder sedutor do desbravamento de um modo de ser. Na possibilidade da liberdade a angústia, por assim dizer, arranca, desenraiza o homem de um determinado estado de fato possibilitando-lhe um novo modo de ser. Eis o sentido filosófico dos estádios existenciais: são modos possíveis de existir para que o si mesmo chegue a ser si-mesmo. É a via sacra da existência, a potenciação da vida, o partejamento do meu outro, a singularização do si-mesmo!

A definição de Vigilius/Kierkegaard da angústia é muito precisa em capturar este fenômeno. A angústia não se reduz a um sentimento psicológico, volúvel, passageiro, de alguém instável psicologicamente. Angústia não é caracterizada como uma patologia, um distúrbio. Nada disso! A angústia é tratada como tonalidade afetiva fundamental e, por isso, como sendo o fundo ontológico do Selv. Vigilius/Kierkegaard inclusive vê na angústia a marca da espiritualidade do homem: ‘’[...] quanto mais profundamente se angustia, tanto maior é o ser humano”33. Mas isto deve ser corretamente compreendido, não como situações ou estados no qual o homem está metido, mas, antes, como “[...] uma relação com um estado que ainda não se deu”34. Assim, nesse pathos da distância, nesse afastamento do objeto no qual mantenho com ele uma relação de possibilidade, e não mais de um estado de fato, a angústia revela a espiritualidade de um homem, quer dizer, a possibilidade da determinação do homem como espírito. Por esta razão o homem jamais foi, é ou será um animal. O homem é espírito!

A angústia enquanto tonalidade afetiva, como fundo ontológico do Selv, é assim esculpida em palavras: “[...] a angústia é a realidade da liberdade como possibilidade antes[para] da possibilidade”35. A angústia é este fundo ontológico do si-mesmo, esta tonalidade afetiva primitiva, originária, na qual e a partir da qual o espírito se relaciona com a sua condição acenando para a possibilidade da liberdade. Na experiência da angústia é revelado, no horizonte existencial do homem, a realidade da liberdade, mas esta realidade da liberdade apenas como possibilidade. É significativo a imagem que Vigilius/Kierkegaard evoca: o sonho. No sonho, ou para que este seja possível, pressupõe um estado de sonolência, de inconsciência em alguém que é ou pode vir a ser consciente. Nesse estado onírico algo do inconsciente aparece na consciência do sonho, quer dizer, sem uma consciência ou decisão de domínio sobre se o sonho acontecerá, ou o que se sonhará no sonho. Simplesmente acontece! Subitamente o sonho, sonha! Neste acontecer o homem não é autor, senhor, dono do que aparece e como aparece no sonho. Ele não controla, não pode dominar. Pura gratuidade, absoluta doação! O espírito, nele, é quem acolhe a dádiva e, assim, suscita, evoca o acontecer do sonho em que a realidade da liberdade aparece como possibilidade. Esse aparecer da possibilidade pode despertá-lo. O poder da possibilidade de poder-ser poderá chacoalhá-lo de tal forma, excitá-lo com tal intensidade que o despertar se faz brusco: acorda como que assustado decidido a se pôr no encalço disto que se mostrou para ele. Essa possibilidade de poder-ser na qual o espírito acenou como sendo a possibilidade de sua liberdade aparece-lhe com o poder de desenraizá-lo de qualquer situação ou estado de fato, estratificado, sedimentado. Aqui, visualizamos o sentido da segunda parte da definição da angústia: “[...] a angústia é a realidade da liberdade como possibilidade antes[para] da possibilidade”. Se o homem em seu despertar, obediente ao espírito, escolhe a sua possibilidade no singular, ele singulariza-se. E, assim, sua existência se mostrará plenificada pela continuidade das tonalidades afetivas como amor, fé, resolução, paciência, mansidão etc, alcançará, então, a vigília da seriedade da vida. Se não tiver o brio de se manter fiel na escuta do espírito vivenciará diversas possibilidades, dispersando-se, fragmentando-se e, então, nivelando-se, retornará a cochilar sendo acalentado pelas tonalidades afetivas do tédio, da melancolia, do desespero. O que o espírito ao se comunicar com a angústia revela, enquanto “a realidade da liberdade como possibilidade”, é como que o impulso para o salto “para a possibilidade”, quer dizer, para um modo de existir que, ao ser realizado, realiza-me, ao ser feito, faz-me.

Agora já posso encaminhar a conclusão deste artigo analisando a Angústia da Falta de espírito na obra O Conceito de Angústia. Destaquei o termo “angústia” justamente porque Kierkegaard dedica o § 1 do Caput III a este fenômeno, a saber: “Angústia da falta de espírito”. São apenas três páginas! (SKS, 4,397-399; tradução brasileira, p. 101-103). Apenas na obra O Conceito de Angústia aparece a expressão “Angústia da Falta de espírito” (Aandløshedens Angest). O que é mais frequente é apenas a designação de “falta de espírito” (Aandløshedens). Em Quatro Discursos Edificantes de 1844 Kierkegaard o designa como “conceito da falta de espírito” (Aandløshedens Begreb, SKS 5,328), assim como em A Doença para a Morte: (Begreb Aandløshed; SKS 11, 160). No Discurso Edificante, O aguilhão na carne, aparece, também, a expressão “conceito da falta de espírito”, mas embora explique o fenômeno não existe um desenvolvimento sistemático do conceito. O que aparece na descrição do fenômeno é a caricatura da autenticidade, seu falseamento. O conceito da falta de espírito como querendo ter a autoridade do espírito para compreender a seriedade da vida, a vida mais alta, sem, porém, alcançar seu sentido36. Em A Doença para a Morte, cinco anos mais tarde, acredito que o conceito ganha um melhor desenvolvimento sendo investigado como desespero e não como angústia. Inclusive Anti-Climacus faz referência a Vigilius Haufniensis como sendo o autor que investigou a ideia do paganismo dentro do cristianismo37. A ideia central, aqui, é justo essa, a saber, mostrar que o cristianismo na sociedade dinamarquesa da época – essencialmente não muito distinta da nossa em relação ao Crístico, à essência do cristianismo – produz a falta de espírito, a traição do espírito, o afastamento deste.

Nos dois primeiros Caput do livro, Vigilius/Kierkegaard trata da síntese do homem como corpo, alma, espírito. No Caput III trata da síntese do homem como temporalidade, eternidade, instante. Mas Vigilius/Kierkegaard logo adianta-se para afirmar que embora diferente é a mesma síntese. “A síntese do temporal e do eterno não é uma outra síntese, mas é a expressão daquela primeira síntese, segunda a qual o homem é uma síntese de alma e corpo, que é sustentada pelo espírito. Tão logo o espírito é posto, dá-se o instante”38. O Caput III tem uma introdução de umas doze páginas (SKS 4, 384-396) antes de chegar no § 1 (SKS 4, 396-399), de apenas três páginas, na qual tratará da “angústia da falta de espírito”. Os §§ 2 e 3 tratarão da questão do destino e da culpa, dialogando com os gregos e o judaísmo. O Caput III avança, pois, a investigação analisando a síntese da constituição do homem não mais, digamos, no âmbito individual, mas no campo histórico. Essas doze páginas iniciais do Caput III procuram mostrar como devem ser compreendidas a temporalidade e a eternidade para que possa se dar o instante e, portanto, o espírito. O leitor (a) certamente sente uma estranheza, um desconforto por buscar o sentido desse § 1 do Caput III, com apenas três páginas, inserido após doze páginas de introdução do capítulo. Essas doze páginas tratam da segunda síntese do homem e, portanto, da correta compreensão da questão da temporalidade. Qual relação dessa introdução, pois, sobre a questão da segunda síntese, na qual trata de compreender filosoficamente e não vulgarmente a questão da temporalidade, com o § 1 intitulado de “angústia da falta de espírito”?

Não devemos compreender o tempo vulgarmente a partir da “sucessão infinita” porque isso significaria estabelecer uma base de apoio para estabelecer o tempo presente, passado e futuro. Assim “espacializamos um momento” e, então, representamos “em vez de o pensarmos”39. Como pensar filosoficamente a questão do tempo para não ser tomado pela compreensão vulgar de tempo como sucessão infinita?

O eterno, pelo contrário, é o presente. Pensado, o eterno é o presente como sucessão abolida (o tempo era a sucessão que passa). Para a representação, ele é uma progressão, porém progressão que não sai do lugar, porque o eterno para a imaginação é o presente infinitamente pleno de conteúdo. No eterno, por sua vez, não se encontra separação do passado e do futuro, porque o presente é posto como sucessão abolida40.

Pensado, quer dizer, compreendendo a questão do tempo filosoficamente, não prevalece a sucessão infinita, mas a sucessão abolida. O eterno é a plenitude do tempo. Pensado, o eterno é o presente sem que haja separação entre passado e futuro. O instante é este conceito ambíguo em que atravessa, toca o eterno no tempo e engendra a temporalidade41. Vimos que é o espírito quem sustenta e, portanto, estabelece a síntese do anímico e do somático, “[...] mas o espírito é eterno, e por isso a síntese só ocorre quando o espírito põe a primeira síntese junto com a segunda, a do temporal e do eterno”42. Na primeira síntese a possibilidade da liberdade é a possiblidade do espírito manifestando-se como angústia. Na segunda síntese a possibilidade da liberdade é a possibilidade do eterno revelando o futuro como angústia. Com a temporalidade “o pecado é posto, a temporalidade passa a ser pecaminosidade”43. Com a pecaminosidade a situação muda em relação ao estado de inocência. Nas anotações, em seu Diário, sobre O Conceito de Angústia, Kierkegaard escreve:

O exposto aqui também poderia ir no capítulo 1, porém assinalei este lugar precisamente porque só em razão do pecado existe, em sentido próprio, o tempo (assim como em sentido inverso, só em razão da reconciliação se cumpre o tempo). Daqui que a inocência em sentido próprio não exista44.

Após a análise do sentido filosófico do tempo vinculado a constituição mesma do homem, passa a analisar a modernidade filosófica, a falta de espírito (§ 1), passando pela questão do destino, com os gregos (§ 2), e concluindo o Caput. III, em seu terceiro parágrafo (§ 3), com a análise da culpa no judaísmo. Tanto no § 2, quanto no § 3 Vigilius/Kierkegaard discute a questão do gênio no interior do cristianismo. É genial, na análise do gênio, dentro do cristianismo, ele não aparecer como estando determinado pelo espírito!

Estamos, pois, no tempo do cristianismo. O fenômeno da falta de espírito é, pois, paganismo cristão. Só com o cristianismo o homem conheceu o pecado. O grego não atingiu a profundidade do pecado muito embora essa inconsciência seja ela mesmo pecado. No primeiro parágrafo gramatical do § 1 do Caput III, Vigilius/Kierkegaard conclui o parágrafo: “Este estado, não é, entretanto, o estado da inocência, mas sim, do ponto de vista do espírito, justamente o da pecaminosidade”45. A inocência é caracterizada por Kierkegaard como ignorância. Aqui, na angústia da falta de espírito, existe um saber que, porém, não tem a força do espírito. Este fenômeno é muito semelhante à crítica que Schopenhauer e Nietzsche faziam em relação a erudição. A falta de espírito, ou a-espiritualidade, conhece muito, mas esse saber não se conserva na forma do espírito e, por isso, tem odor fétido de dissimulação, de algo artificial. Tem algo de imitação dissimulada, não proveniente de uma conquista própria. Um saber que tem origem do espírito, mas não é comunicado com o mesmo espírito! Vem à memória a analogia que Schopenhauer faz dos eruditos com a peruca por se rejubilarem de algo que não lhes é próprio, sem raiz, sem espírito, sem fundamento:

A peruca é o símbolo bem escolhido do puro erudito enquanto tal. Adorna a cabeça com uma boa quantidade de cabelo alheio, por falta de próprio, da mesma forma a erudição consiste em equipar-se de uma grande quantidade de pensamentos alheios que, por suposto, não ficam nem tão bem nem tão naturais46.

A angústia da falta de espírito é “o paganismo no interior do cristianismo”47. É o paganismo cristão que, não obstante, se julga como autêntico cristianismo. Servindo-se, inclusive, de todo conhecimento e estruturas institucionais cristãs! É preciso separar o paganismo do paganismo cristão. Aqui, na angústia da falta de espírito, é um fenômeno genuinamente pagão dentro do cristianismo. É, portanto, vida de pecado. Não está determinado pelo espírito, pelo eterno, e, assim, uma vida que não apropriou o eterno no tempo, no instante. Vive o instante de fugacidade, da abstração do eterno e do tempo. O pecado está em justamente conhecer o espírito, mas não corresponder existencialmente ao espírito. Vigilius/Kierkegaard cita inclusive a Carta de Paulo aos Efésios: “os que perderam toda sensibilidade” (Ef 4,19). Falta de espírito é a-espiritualidade, a insipidez espiritual, uma carência ou falta de espírito que precisa ser bem compreendida para diferenciá-la da ausência de espírito no paganismo, como já visto, ao diferenciarmos o paganismo do paganismo cristão.

O paganismo é, pois, pode-se dizer, ausência do espírito [Aandsfraværelse], e como tal muito diferente da insipidez espiritual [Aandløsheden]. Neste sentido, o paganismo é bem mais preferível. A a-espiritualidade é a estagnação do espírito e a caricatura da idealidade. Por essa razão, a a-espiritualidade não é, propriamente, embotada quando se trata de engrolar ladainhas – porém ela é embotada no sentido em que se fala do sal que perde o sabor, com o que há de salgar, então? – é que nada compreende de modo espiritual, nada concebe como tarefa, ainda que seja capaz de tudo manipular com sua umidade impotente48.

Destaco, na citação acima, o elemento de manipulação justo por saber ou dominar a cultura, a religião, tudo, enfim, do âmbito da exterioridade, de cargos sociais, mas sem possuir interioridade, sem possuir o espírito.

Na análise do fenômeno da angústia da falta de espírito, no §1 do Caput III, existem três informações importantes nessas três páginas. A primeira é a de que este fenômeno é: “a vida do paganismo cristão [...] não conhece propriamente nenhuma diferença entre o que é presente, passado, porvir, eterno”49. Então, este fenômeno impossibilita da segunda síntese ser efetivada. Esta, para ser singularizada, exige a correta compreensão e apropriação do tempo, da eternidade, do instante. Segundo, paradoxalmente, na falta de espírito, afirma Vigílius/Kierkegaard, “não há nenhuma angústia, para tanto é por demais feliz, é por demais contente, por demais carente de espírito”50. É paradoxal porque está sendo analisado a “angústia da falta de espírito”, mas é consequente com a lógica da síntese constitutiva do homem. Na falta de espírito tanto a angústia quanto o espírito estão excluídos precisamente por burlá-los, caricaturá-los numa apropriação indevida e, por isso, falsa do espírito. O homem nessa situação, possuído por este fenômeno da falta de espírito, não estabeleceu a síntese, não singularizou-se. Serve-se do espírito, sem ser dele proprietário. Mesmo não sendo o real proprietário do espírito, fala, discursa, conhece, age como se proprietário fosse. Posseiro do espírito, sem ser seu real proprietário. A falta de espírito, então, como paganismo cristão, se coloca numa diferença essencial em relação ao paganismo. Aqui reside o problema ou a negatividade deste fenômeno da falta de espírito: não podendo, pois, ser identificado com o paganismo, mas, antes, a falta de espírito enquanto paganismo cristão, se situa como inferior ao paganismo. Isso porque o paganismo “se dirige para o espírito, e essa [a falta de espírito ou paganismo cristão] se afasta do espírito”51. No paganismo, embora não possua o espírito, está no seu encalço. No paganismo cristão, isto é, na falta de espírito ou a-espiritualidade, ocorre um afastamento, um distanciamento no sentido de não só não promover o espírito como seu procedimento é de o impossibilitar! Por fim, como terceira informação que podemos extrair da análise da “angústia da falta de espírito”, aparece a informação, o dado de que mesmo não tendo a angústia e o espírito, mesmo assim a “angústia não deixa de estar aí, apenas que latente”52. Isso porque o espírito sempre está presente mesmo que não esteja determinado como espírito. “A partir da perspectiva do espírito está, pois, a angústia presente na a-espiritualidade [falta de espírito], ainda que escondida e disfarçada”53. Após essa frase segue mais duas e acaba o §1. Nessas duas frases, Vigilius/Kierkegaard procura ilustrar essa presença escondida da angústia da falta de espírito comparando-a com a morte: tal como a morte, se a angústia fosse desvelada, em toda sua verdade, o homem seria tomado por um “profundo pavor”54. Como a angústia está latente, disfarçada, sem que o homem veja sua real figura, então, o falto de espírito sente-se a vontade para viver esteticamente como se ético ou religioso fosse.

Do exposto o que causa espanto é essa afirmação de que a a-espiritualidade, a falta de espírito não possui angústia nem espírito, mas, ao mesmo tempo, estão presentes sendo que de forma disfarçada, latente. Mas Vigilius/Kierkegaard não intitulou este parágrafo justamente de Angústia da falta de espírito (Aandløshedens Angest)? A angústia é a manifestação do espírito. A falta de espírito implica, por coerência lógica, melhor, psicológica, em não haver angústia. Isso porque na angústia é o espírito que se manifesta. Não tendo angústia nem espírito, significa que eles não estão ativos e atuantes. Estão latentes, adormecidos, melhor, insensíveis.

Vigilius/Kierkegaard não traz nenhum outro elemento para que possa desenvolver e esclarecer essa situação. Aliás, o dado ou informação de que embora não tenha angústia e espírito, eles estão, não obstante, presentes, mas latentes, aparece no último parágrafo gramatical do §1. Não há, pois, um maior desenvolvimento deste fenômeno da “angústia da falta de espírito”. Acredito que Kierkegaard é consciente disto e em A Doença para a Morte levará este fenômeno da falta de espírito ao elemento que lhe é próprio: o desespero. De fato, em todo o corpus Kierkegaardiano o fenômeno da falta de espírito terá mais ocorrências de vezes e melhor trabalhado na obra A Doença para a Morte. A expressão “angústia da falta de espírito” só aparece aqui, em O Conceito de Angústia.

Outro ponto merece ser esclarecido ou destacado na diferença entre paganismo (ausência de espírito) e paganismo cristão (falta de espírito, a-espiritualidade, insensibilidade espiritual). Paganismo é ausência de espírito (Aandsfraværelse) sendo muito diferente da falta de espírito, a-espiritualidade, insensibilidade ou insipidez espiritual (Aandløshedens). Hifenizando as palavras, elas fornecem uma indicação da questão. Aand-s-fraværelse, diz, literalmente, ausência de espírito. Uma ausência, entretanto, por assim dizer, positiva, pois está na direção do espírito. O espírito, no paganismo, não está posto, determinado como espírito, mas tem essa possibilidade de vir-a-ser. Ao contrário, na experiência fenomenológica-existencial da “angústia da falta de espírito”, quer dizer, do paganismo no interior do cristianismo, existe um afastamento do espírito, seu falseamento, sua caricatura. Acontece um como se o espírito estivesse sido posto, mas, na verdade, do espírito está carente. Em dinamarquês, falta de espírito é Aandløshedens. Aand-løshedens, diz, literalmente, frouxidão, sem tensão, do espírito. Frouxidão do espírito, falta de espírito e, por isso, o fenômeno se dá num movimento de afastamento do espírito. É uma disposição que se comporta como se possuísse a plenitude do espírito e, de fato, conhece a produção do espírito, a cultura, a religião, a política, mas não possui o espírito. Por isso, Vigilius/Kierkegaard afirma: “A a-espiritualidade é a estagnação do espírito e a caricatura da idealidade”55. O espírito não está em seu elemento, em sua plenitude. A falta de espírito é estética, é pecado, é desespero, não obstante todo conhecimento que esbanja em toda sua vaidade de “sabedoria de cátedra56”.

A falta de espírito pode dizer absolutamente o mesmo que disse o espírito mais rico, só que não o diz pela força do espírito. Determinado como sem espírito, transforma-se o homem numa máquina falante [o erudito?!, o docente?!], e não há nada que impeça que ele possa aprender de cor tão bem uma cantilena filosófica quanto uma confissão de fé e um recitativo político57.

Ao concluir esse artigo tratando da questão da “angústia da falta de espírito” no contexto da obra O Conceito de Angústia ficou manifesto que a análise de Vigilius/Haufniensis do fenômeno precisa de um aprofundamento. Isso será feito por Anti-Climacus/Kierkegaard em 1849 na obra A Doença para a Morte. Aqui, o fenômeno da falta de espírito será examinado em seu elemento próprio, a saber, o desespero. Esse era o limite, acredito, que Vigilius/Haufniensis esbarrou, quer dizer, na descrição do fenômeno da angústia da falta de espírito. O fenômeno da falta de espírito precisa, porém, de uma melhor categoria para descrevê-lo com mais profundidade. A própria limitação em não desenvolver de forma mais extensa e mais detalhada este fenômeno na obra O Conceito de Angústia é sinal de que o fenômeno analisado na perspectiva da angústia esbarra em algumas limitações. O fenômeno da “angústia da falta de espírito” não é do âmbito da inocência na qual está em questão a angústia como possibilidade. Aqui o espírito se manifesta como angústia enquanto um acenar, mostrar a possibilidade para a possibilidade. No fenômeno da “angústia da falta de espírito” não nos encontramos mais na inocência, mas na pecaminosidade. Como a angústia, que está latente no fenômeno da falta de espírito, se manifesta? Qual o papel da angústia, ou como ela opera apesar de sua presença disfarçada, escondida? Vigilius/Kierkegaard não esclarece. A não ser se tomarmos a ideia desenvolvida no Caput IV de que com o salto qualitativo o pecado entrou no mundo e, assim, poderia parecer que a angústia foi abolida, mas, na verdade, quando o pecado está posto, a angústia reaparece relacionando-se com o pecado, com a realidade posta, como “uma realidade indevida”58. Mas se o fenômeno seguir esta lei de formação, muito embora fique justificada que a “falta de espírito” seja um fenômeno da “angústia”, a dificuldade ainda permanece. Isso significa que no fenômeno da “angústia da falta de espírito” a angústia e o espírito estão presentes, mas às espreitas, escondidos, latentes. Com efeito, a falta de espírito, enquanto uma realidade efetivamente posta como pecado, pode se ver abalada pela angústia na medida que esta relaciona-se com a realidade posta, com os feitos, como sendo uma realidade indevida, injustificada, charlatã. Assim a angústia possibilitaria uma relação de liberdade relacionando-se com a realidade dada, posta, como sendo indevida. A angústia possibilitaria para o indivíduo tomado pela falta de espírito enquanto afastamento do espírito, um retorno ao espírito e, portanto, eliminaria a falta de espírito, efetivando a síntese de si-mesmo. Desta forma, o indivíduo livre da falta de espírito, estaria no bem enquanto “unidade de estado e passagem”59. Mas esse possível movimento de retorno ao espírito é precisamente o que na maioria das vezes e dos casos não ocorre. Não ocorre porque o indivíduo falto do espírito está nas garras do desespero instalando-o, aprisionando-o nesse estado. Mas, em virtude da ambiguidade de todo fenômeno psicológico, a angústia pode de fato aparecer por estar à espreita, escondida, mas presente.

Em seu Diário, nas anotações sobre a obra O conceito de angústia, a dificuldade também aparece. Sobre o fenômeno da “angústia da falta de espírito” Kierkegaard registra apenas dois pequenos parágrafos gramaticais. Neles não encontramos nada de mais esclarecedor do que o desenvolvido nas três páginas de O conceito de angústia.

Essa dificuldade de desenvolver o fenômeno da falta de espírito sob a perspectiva ou categoria existencial da angústia julgo que levou Kierkegaard para a necessidade de uma maior clareza do fenômeno. A falta de espírito é melhor apreendida a partir de outra categoria, a saber, o desespero. De fato, em sua análise de Uma Recensão Literária analisa diversos fenômenos existenciais que se aproximam da falta de espírito. Esses fenômenos, em 1846, Kierkegaard designou de “o lado sombrio da época”60. Em 1849, em A Doença para a Morte, estes fenômenos do desespero, da não-liberdade, e, sobretudo, da falta de espírito, serão melhor explorados.


  1. Na obra de Kierkegaard o termo Aandløshedens aparece: Em Ou-Ou de 1843 (SKS 3: 176; trad. port., Segunda Parte, p. 192), em Migalhas filosóficas, em ilusão acústica [Et akustisk Bedrag] (SKS 4: 253; trad. bras. p. 77), O conceito de angústia § 1 do Caput III (SKS 4: 396; trad. bras. p. 101-103; este parágrafo de três páginas é objeto deste artigo), Dois discursos edificantes de 1844 (SKS 5: 200; trad. esp. p. 206), Quatro discursos edificantes de 1844 (SKS 5: 328; trad. esp. p. 329), Pós-escrito às Migalhas Filosóficas (SKS 7, 514; trad. bras., vol. II, p. 280), Dois pequenos tratados ético-religiosos (SKS 11, 89; trad. port. p. 173), A Doença para a Morte (SKS 11: 156-161. 177. 214. 227-228; trad. esp. p. 62-69. 87. 132. 150-151), Como Cristo julga o cristianismo oficial (SKS 13: 174; trad. bras. p. 62), Isto precisa ser dito, então que seja dito! (SKS 13: 124), Julga por ti mesmo! Para um exame de consciência recomendado aos contemporâneos (SKS 16: 239). Mas, a ocorrência da expressão “angústia da falta de espírito” aparece apenas em O Conceito de angústia.↩︎

  2. Ferro, Nuno, Estudos sobre Kierkegaard, São Paulo, LiberArs, 2012, p. 18, nota 9, grifo do autor.↩︎

  3. No final do § 4 do Caput I de O conceito de angústia: Cf. Kierkegaard, Søren, O conceito de angústia: uma simples reflexão psicológico-demonstrativa direcionada ao problema dogmático do pecado hereditáriode Vigilius Haufniensis, trad. Alvaro Valls, Editora Universitária São Francisco, Rio de Janeiro, 2010, p. 44.↩︎

  4. Kierkegaard, Søren, O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates, trad. Alvaro Valls, Editora Universitária São Francisco, Rio de Janeiro, 2005.p. 26.↩︎

  5. “Categorias” não deve ser entendido na perspectiva da Lógica, ou na forma que um pensamento formalizado pensa o real. Aqui, no pensamento de Kierkegaard, a forma de pensar o real pelo pensador subjetivo, como defenderá Climacus no Pós-escrito, não deve ser fortuita, mas deve encarnar a dinâmica do devir. As “categorias existenciais” não são propriedades de entidades substancializadas, mas expressam e capturam o caráter de vir-a-ser de um tipo, de um modo de existir, mesmo que único, e, por isso, as categoriais existenciais, as determinações intermediárias ou tonalidades afetivas carregam a paradoxalidade de sua constituição.↩︎

  6. Utilizo, em português, o “si-mesmo” hifenizado para designar o fenômeno do Selv que se singularizou, ou que se mantém na tensão da singularização, possuindo uma vida relacional, integrada, diferenciando-se do “si mesmo”, sem hífen, caracterizando-o como fenômeno do homem fragmentado, estético que não alcançou a autodeterminação como espírito.↩︎

  7. Kierkegaard, Søren, O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates, op. cit., p. 236.↩︎

  8. É justamente este aspecto mais positivo da tonalidade afetiva do desespero que aparece, por exemplo, em 1843, na obra Ou-Ou, particularmente, na segunda parte. Kierkegaard/Juiz Guilherme desenvolve a ideia de que é preciso experimentar o desespero, enquanto último estádio dentro dos vários estádios estéticos, precedido da tonalidade afetiva da melancolia, para que seja possível escolher a si-mesmo em seu valor eterno. Essa escolha ou resolução caracteriza o estádio ético por que singulariza a possibilidade aniquilando o poder sedutor e desagregador das infinitas possiblidades própria do estádio estético. Em A Doença para a Morte, de 1849, o desespero ganha um tratamento mais bem desenvolvido por parte de Kierkegaard/Anti-Climacus. O desespero aparece, então, na analítica existencial do Selv como sendo o fenômeno que perturba, ou impossibilita a síntese do si mesmo para o si-mesmo, do Individ para o den Enkelte. Portanto, no fenômeno do desespero o que é mais marcante é a experiência negativa da dor de não se tornar si-mesmo. O desespero é a doença do si mesmo, é o pecado, o mal. Na angústia, por outro lado, a tonalidade afetiva mais marcante é a experiência positiva da dor de ter de tornar-se si-mesmo.↩︎

  9. Ricœur, Paul, “Kierkegaard e o mal [1963]”, en Leituras 2: a região dos filósofos, trad. Marcelo Perine, e Nicolás Nyimi Campanário, São Paulo, Loyola, 1996, p.19, grifo meu.↩︎

  10. Aqui, no desespero, a única positividade está em sua possibilidade, quer dizer, em ser possível de decair em alguma forma de desespero. Isso mostra, para o próprio indivíduo, sua determinação enquanto espírito e, portanto, de ter em seu poder a possibilidade do desespero. Mas o efetivar, o concretizar essa possibilidade tornando o desespero como sendo real consiste isto em sua negatividade, a saber: impossibilitar a singularização do si-mesmo.↩︎

  11. Clair, André, Kierkegaard penser le singulier, Paris, Les Éditions du Cerf, 1993, p. 85, grifo do autor.↩︎

  12. Ricœur, Paul, op. cit., p.20-21, grifo meu.↩︎

  13. Kierkegaard, Søren, La enfermedad mortal, trad. Rivero, Madrid, Trotta, 2008, p. 39.↩︎

  14. Kierkegaard, Søren, O conceito de angústia, op. cit., p. 32.↩︎

  15. Kierkegaard, Søren, Johannes Climacus ou É preciso duvidar de tudo, trad. Sílvia Saviano Sampaio e Álvaro Luiz Montenegro Valls, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 112.↩︎

  16. Ibíd., p. 111-112, grifos do autor.↩︎

  17. Kierkegaard, Søren, Ou – Ou: um fragmento de vida (Segunda parte), trad. Elisabete M. de Sousa, Lisboa, Relógio D’Água Editores, 2017, p. 192.↩︎

  18. Kierkegaard, Søren, La enfermedad mortal, op. cit., p. 55: “Porque todo homem em sua estrutura primitiva está natural e cuidadosamente disposto para ser um eu [...]”. No original: “Ethvert Menneske er nemlig primitivt anlagt som et Selv, bestemt til at blive sig selv [...]” (SKS 11. 149).↩︎

  19. Cf. Kierkegaard, Søren, Pós-escrito conclusivo não científico às Migalhas Filosóficas: coletânea mímico-patético-dialética, contribuição existencial, por Johannes Climacus. Vol. 2, trad. Alvaro Valls e Marília Murta de Almeida, Editora Universitária São Francisco, Vozes, 2016, p. 13.↩︎

  20. Kierkegaard, Søren, O conceito de angústia, op. cit., p. 44-45.↩︎

  21. Kierkegaard, Søren, O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates, op. cit., p. 246.↩︎

  22. Essa ideia de o indivíduo viver na não-verdade, na não-liberdade, por própria culpa, aparece já em Migalhas Filosóficas.↩︎

  23. Kierkegaard, Søren, O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates, op. cit., p. 246.↩︎

  24. Como na Capoeira Angola a lógica é a de estar no mais das vezes de cabeça para baixo e de pernas para o ar! Sem isto não se joga, não se entra no tom harmônico das tonalidades dos instrumentos que animam a roda e os jogadores. É preciso mobilizar corpo-alma para entrar na mesma tonalidade dos instrumentos e do camarada com quem jogamos para que afinados ao mesmo ritmo, na ginga singular de cada um, sem, porém, destoar do conjunto, poder desferir os golpes, de defesa e ataque, dentro do ritmo, obedientes ao tom, ao som do berimbau que comanda a roda, o jogo. Assim na roda, assim na vida! Vida de mandingueiro, vida com axé, com plenitude e superabundância no fazer do pouco, muito!↩︎

  25. Kierkegaard, Søren, O conceito de angústia, op. cit., p. 47, grifo meu.↩︎

  26. Kierkegaard, Søren, Ou – Ou: um fragmento de vida (Segunda parte), op. cit., p. 199-200.↩︎

  27. Kierkegaard, Søren, O conceito de angústia, op. cit., p. 45.↩︎

  28. Kierkegaard, Søren, O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates, op. cit., p. 245-246, grifo meu.↩︎

  29. Kierkegaard, Søren, O conceito de angústia, op. cit., p. 120.↩︎

  30. Ibid., p. 171.↩︎

  31. Ibid., p. 168, grifo meu.↩︎

  32. Não posso, neste artigo, explorar essa questão. Basta apenas acenar que a partir do Caput IV da obra O Conceito de Angústia, o nada da angústia torna-se algo concreto: o pecado é posto. Por culpa própria o indivíduo experimenta a não-liberdade. Entretanto, por mais sutil e difícil que seja, a angústia novamente aparece possibilitando uma relação de possibilidade, fazendo da realidade dada, uma realidade indevida.↩︎

  33. Kierkegaard, Søren, O conceito de angústia, op. cit., p. 163.↩︎

  34. Ibid., p. 163.↩︎

  35. Ibíd., p. 45.↩︎

  36. Cf. Kierkegaard, Søren, Discursos edificantes, trad. González, Madrid, Trotta, 2010, p. 329.↩︎

  37. Cf. Kierkegaard, Søren, La enfermedad mortal, op. cit., p. 69.↩︎

  38. Kierkegaard, Søren, O conceito de angústia, op. cit., p. 96.↩︎

  39. Ibíd., p. 93, grifo do autor.↩︎

  40. Ibíd., p. 94.↩︎

  41. Seria interessante desenvolver a ideia de tempo, do eterno e do porvir como sendo a possibilidade, a esperança como obra do amor em As obras do Amor, de 1847. Especialmente o Cap. III da segunda série: O amor espera tudo – e no entanto jamais é confundido.↩︎

  42. Kierkegaard, Søren, O conceito de angústia, op. cit., p. 98.↩︎

  43. Ibíd., p. 100.↩︎

  44. Kierkegaard, Søren, Diarios: volumen VI, trad. Binetti, México, Universidad Iberoamericana, 2020, p. 97.↩︎

  45. Kierkegaard, Søren. O conceito de angústia, op. cit., p. 101.↩︎

  46. Schopenhauer, Arthur. Parerga y paralipómena II, trad. Pilar López Santa María, Madrid, Trotta, 2009, p, 493, § 248.↩︎

  47. Kierkegaard, Søren. O conceito de angústia, op. cit., p. 101.↩︎

  48. Ibíd., p. 102-103.↩︎

  49. Ibíd., p. 101.↩︎

  50. Ibíd., p. 102.↩︎

  51. Ibíd.↩︎

  52. Ibíd., p. 103.↩︎

  53. Ibíd.↩︎

  54. Ibíd.↩︎

  55. Ibíd.↩︎

  56. Cf. Kierkegaard, Søren. Ou – Ou, op. cit., p. 224. Nessa mesma perspectiva, denunciando ou revelando “a sabedoria peculiar de papagaio” (p.63), Anti-Climacus escreve: “O pedantismo é uma falta de espírito, assim como o determinismo e o fatalismo eram um desespero espiritual; porém a falta de espírito é também um desespero”. Kierkegaard, Søren. La enfermedad mortal, op. cit., p.62; SKS 11, 156, grifo meu.↩︎

  57. Kierkegaard, Søren. O conceito de angústia, op. cit., p. 102.↩︎

  58. Ibíd., p. 119.↩︎

  59. Ibíd., p. 120.↩︎

  60. Kierkegaard, Søren. La época presente, trad. Svensson, Madrid, Trotta, 2012, p. 74.↩︎