Carmélia Teixeira de Sousa
(Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil)
As possibilidades são para o homem assim como os anéis são para os dedos. É diante das escolhas que o homem tem a possibilidade de edificar seu si-mesmo2 (Selv). Na filosofia de Søren Aabye Kierkegaard, a definição do eu do homem abarca a totalidade, as determinações intermediárias3, a existência em sua realidade e suas dificuldades. Em vista disso, este trabalho tem por objetivo refletir, através da antropologia kierkegaardiana, conceitos relacionados ao si-mesmo e ao fenômeno do desespero (doença mortal). Destaca-se a necessidade e relevância do tema mediante o critério de que um pensamento filosófico não se restringe a época a qual foi colocado e, com isso, é sempre atual.
Kierkegaard é considerado um importante pensador no âmbito da fenomenologia e filosofia da existência, suas ideias tiveram grande contribuição para a época e serviram como influência para renomados filósofos da tradição: Karl Jaspers, Heidegger, Gadamer, Gabriel Marcel etc. Aliás, é justo o testemunho destes e de outros filósofos, reinterpretando determinado conceito kierkegaardiano que torna Kierkegaard merecedor de ser estudado e pesquisado na graduação, mestrado e doutorado. Com efeito, os filósofos clássicos da tradição reconhecem a importância de Kierkegaard enquanto filósofo tornando-o um clássico da filosofia.
Para conquistar o objetivo almejado nesta pesquisa e adquirir compreensão da forma como Kierkegaard entende o si-mesmo do homem e a forma como o desespero está atrelado a isso, é necessário um aprofundamento na leitura da obra A doença para a morte e um foco nas personificações do desespero, o que torna possível refletir sobre o existente e o problema existencial.
Há um eu sempre em construção, um eu em devir. Todos possuem um si-mesmo, entretanto, nem todos estão dispostos a edificá-lo, o que justifica a universalidade do desespero, pois este está como possibilidade para aqueles que possuem um si-mesmo. A partir desse ponto, é traçado o cerne que norteia todas as questões que surgem e a partir desta perspectiva é dado destaque para a ideia de que possuir um si-mesmo é um privilégio e uma tarefa. O desespero existe enquanto possibilidade de não efetivação desse eu, o que seria então pecado, o pecado de não ser si-mesmo.
O decorrer deste trabalho seguirá o roteiro da obra A doença para a morte, que apresenta três formas de desespero: o desespero de querer ser si-mesmo, o desespero de não querer ser si-mesmo e o desespero de não ter consciência de possuir um si-mesmo. A discussão se inicia apontando para o desespero de acordo com a discordância da síntese e se desdobra no desespero visto sob a dupla categoria do finito-infinito, da necessidade-possibilidade, mostrando a dialética do desespero, este visto enquanto desafio ou fraqueza. Em seguida, o desespero é colocado com relação a consciência do eu e observa-se que, quanto mais consciência de si, maior consciência do eu, mais intenso é o desespero.
Em análise, o desespero se configura como a desarmonia da síntese e ramifica-se em três tipos: o desespero de querer ser si-mesmo, o desespero de não querer ser si-mesmo e o desespero de não ter consciência de possuir um si-mesmo. O desespero é então demonstrado nas escolhas do indivíduo e percebido na síntese enquanto uma falha.
O desespero diante da síntese
O eu do homem se edifica frente a uma relação de síntese. É uma relação derivada de outro que, enquanto se relaciona consigo mesma, também se relaciona com o Poder que a criou, ou dito de outra forma, “A existência coloca o indivíduo diante das possibilidades, coloca-o em relação com o mundo, consigo mesmo e com Deus”,4 os últimos elementos citados dão ao homem os fundamentos para edificar as possibilidades do eu, as possibilidades de realizar a síntese. Considera-se que a síntese se efetiva diante das escolhas que se deve fazer na existência, em concordância com as tonalidades afetivas que o indivíduo possui.
Continuamente o indivíduo, visto em sua realidade efetiva, depara-se com possibilidades, escolhas, tribulações, angústias e desespero, são essas tonalidades afetivas, precisamente, que proporciona ao homem a possibilidade de construir-se, realizar o movimento de síntese, como reitera Araújo Silva: “O amor, o desespero, a angústia... são tonalidade afetivas (Stemniger) em que mediante elas e através delas entramos em com-cor-dância ou dis-cor-dância como o mais profundo de nosso ser […]”5. Ser si-mesmo, concretizar o si-mesmo que se possui, é estar em concordância com a síntese da qual se é constituído e a discordância na síntese configura-se como desespero. Concretizar o si-mesmo é uma atitude existencial, no entanto, Kierkegaard elucida que:
[...] tornar-se concreto não significa que alguém se torne finito ou infinito, pois o que deve ser feito concretamente é certamente uma síntese [...] o eu está em devir em todos e cada momento de sua existência visto que o eu Κατά δύναμον6 realmente não existe, senão algo que tem que ser feito. Por outro lado, o eu não é um si mesmo enquanto não se torna si mesmo, e não ser si mesmo é verdadeiramente o desespero7.
Tornar-se si-mesmo é a tarefa que o homem deve cumprir continuamente, não há um substancialismo que dita ou define o si-mesmo como pronto e acabado. O homem é um ser em devir e necessita de uma contínua realização, ser si-mesmo é uma tarefa de produzir e escolher a cada momento concretizar o si-mesmo, dito de outra forma, “O eu é ter potencialidade, poder ser que precisa realizar-se”8, é uma escolha que necessita ser sempre reafirmada. O eu não é concretizado em uma única ação eventual na temporalidade, é concretizado em todas as ações de escolha possíveis, como Araújo Silva afirma,
[...] o “eu” ou o “si-mesmo” (Selv) não tem uma constituição substancialista, não é uma coisa, um algo que existe pronto e acabado. Ele precisa ser conquistado, a-propriado, tornado próprio, feito e per-feito a si-mesmo (Selv) desde e a partir de si mesmo (Individ) e para si-mesmo (den Enkelt = Selv). Ele só é aquilo que vem a ser e só vem a ser aquilo que ele é9.
O poder que criou a síntese no homem deixa que por escapar de suas mãos a responsabilidade para edificá-la e, com esse propósito, ao homem é dada a tarefa de efetivar ou não sua síntese. Não há um predeterminismo quanto às formas de edificar-se, mas há uma síntese anteriormente posta, que necessita ser realizada. Ser si-mesmo é poder escolher, mais que isso, é escolher realizar-se de forma autêntica continuamente.
Quando há a fuga para a inautenticidade, há desespero. O desespero pode assumir determinadas posições dependendo dos níveis de consciência. O homem possui um eu, isso é universal, entretanto, nem todos são conscientes de possuir o si-mesmo, se não se tem consciência de possuí-lo, não há consciência da presença ou ausência de desespero, no entanto, não saber que se é desesperado não significa não o ser. Não ter a consciência do desespero é ocultar também a consciência do eu, como afirma Kierkegaard:
Em geral, a consciência, quer dizer, a autoconsciência, sempre é o decisivo com relação ao eu. Quanto mais consciência, mais eu; quanto mais consciência, mais vontade, mais eu. Um homem que não tem vontade não é um eu; mas quanto maior seja sua vontade, tanto maior será também a consciência de si mesmo10.
Ter consciência é sinônimo de ter clareza sobre si mesmo, reconhecer-se enquanto um ser de vontades e possibilidades, ser si-mesmo é escolha. Para efetivar seu eu, o homem necessita ter consciência de si, pois “[...] o conteúdo mais concreto que a consciência pode ter é a consciência de si”11, a saber que a realização da possibilidade mais própria de si-mesmo implica em autoconhecer-se para realizar. O que diferencia qualitativamente entre as formas de desespero é o fato de ser ou não consciente.
O desespero, como já afirmado, está ligado a síntese ao passo que este é a possibilidade de desarmonia na síntese. Já que o eu não é algo pronto, o desespero necessita ser afastado a cada momento, nas palavras do filósofo dinamarquês, “[...] para que se possa dizer com toda verdade de um homem que não está desesperado, é necessário que em cada momento esteja eliminando a possibilidade”12. Quando o homem acredita se desesperar de algo, antes se desespera de si-mesmo, é como se o indivíduo buscasse uma fuga, fugisse da tarefa de ser autêntico, no entanto, [...] tal peso ou prisão não é nada externo, mas um reflexo invertido da própria interioridade”13, com efeito, o desespero se desvela diante das possibilidades e de-cisões. Por ser composto de categorias que necessitam de síntese e autorrelação, quando não ocorre a síntese, mas sim a sobreposição de alguma dessas categorias, o desespero se manifesta.
Para adentrar nas personificações do desespero, visando uma melhor compreensão desse fenômeno, analisar-se-á a princípio o desespero visto sob a dupla categoria do finito e infinito. Na relação de infinitude e finitude, o eu do homem sintetiza-se sob a justa medida destas categorias. Não se trata de tornar-se alheio ao que lhe é natural e vagar diante da abstração do ser, afastando de si o si-mesmo, também não se trata de mergulhar na imensidão rasa e finita apartando-se do eterno que permanece presente em cada um, em ambos os casos se configuraria o desespero, visto que “O eu pode existir fora da consciência sem se apropriar de si como a relação que ele é. Neste caso, o eu existe oscilando entre os fatores de síntese, ora na finitude, ora na infinitude [...]”14. É observável também a dialética do desespero em suas personificações, a saber que:
O eu, sendo uma síntese precária que não pode colocar a si mesma e precisando tornar-se está sempre em devir e é impelido para a infinitude e para as possibilidades que o constituem. Mas está, também, cerceado pelas limitações em seus movimentos. Não é possível, diz AC15, sem considerar o seu contrário, e sempre que a existência carece desta relação, ou seja, carece do movimento (dialético), ela é desespero16.
Compreende-se que existe um movimento dialético entre os constituintes da síntese. O vir a ser necessita de movimento e tornar-se o eu que se é, não é, no entanto, uma tarefa simples. É paradoxal o vir a ser si-mesmo, pois implica que se tem um eu e, ao mesmo tempo, não se tem. O si-mesmo só o é mediante a efetivação do si-mesmo que está em potência em todos os momentos da existência.
Ao analisar o desespero visto sob a categoria da infinitude ou carência de finitude se percebe o imaginário, o fantástico. Apesar do imaginário está ligado primeiramente à imaginação, pode atingir também o sentimento, conhecimento e vontade, de modo que, se há sobreposição do imaginário é criado um afastamento da parte humana do homem, a infinitização pode chegar a tal ponto que a realidade posta não condiz mais com a fantasia elaborada. O homem não pode subtrair a parte finita de seu eu e, para Kierkegaard:
É verdade que o fantástico diz principalmente relação à fantasia; mas a fantasia, por sua vez, está relacionada ao sentimento, conhecimento e vontade, de modo que um homem possa ter um sentimento, um conhecimento e uma vontade fantásticos. A fantasia é, em geral, o meio de ‹‹infinitização››; isso não é uma faculdade como as outras faculdades, mas é – se se quer se expressar – a faculdade instar omnium [o maior de todos]. Em suma, o sentimento, o conhecimento e a vontade que há em um homem dependem da fantasia que ele tem, por assim dizer, de como todas essas coisas são projetadas reflexivamente na fantasia17.
O indivíduo possui imaginação, entretanto, não se vive apenas na imaginação, a realidade concreta se fecunda na esfera da existência, no entanto, “A imaginação é o fator decisivo, pois é a imaginação que torna presente para o eu seu passado (finito), assim como o futuro (infinito), e viver sem imaginação é não aprender com o conteúdo transcendente que as situações existenciais carregam consigo”18. Nessa perspectiva, é a imaginação que move e direciona o eu, é através dela que o eu se coloca no presente do seu ser. É preciso projetar, por um lado, as possibilidades que se apresentam, e, por outro lado, deve-se efetivar as possibilidades. Dessa forma, apresenta-se a dinâmica que mostra no eu sua temporalidade e infinitude, um eu que tem passado, projeta seu futuro e situa-se no agora, que é o presente da sua concretude.
A imaginação não limita o homem, o ponto negativo presente está no desesperado que pode perder-se apenas em sua reflexão, infinitizando-se e não conseguir voltar para si mesmo. É como alguém que faz uma viajem para longe da realidade, uma abstração de si, da qual o indivíduo não consegue mais regressar para seu próprio eu, vive assim na inautenticidade, um ser que não se apropria. Aquela escolha nunca concretizada, não escolhida, jamais pertencida.
Dentre as categorias as quais a imaginação pode direcionar a um afastamento de si-mesmo, ver-se-á o sentimento que, quando se volta apenas para o campo da imaginação, por exemplo, toma para si a ideia radical de que os fins justificariam os meios e, dessa forma, tomaria por conta a insensibilidade com o que lhe é alheio. Há uma grande dificuldade quando se universaliza algo sem considerar os pormenores da existência, o existir concretamente. É como se fosse desenvolvido uma sensibilidade impessoal, a ideia geral não toca o indivíduo. Seria como universalizar a ideia de amor e ser incapaz de amar seu próximo, ou mais precisamente, o indivíduo particular se dissolve na universalidade, dito de outra forma,
[...] uma vez que o sentimento se torna imaginário, o eu evapora gradualmente, até que no final é apenas uma espécie de sensibilidade impessoal, que não pertence mais a qualquer homem, mas sim desumanamente e como se diz de um modo sentimental, participa do destino de uma ou outra abstração, por exemplo: humanidade em abstrato19.
A imaginação como preponderante dá ao homem um sentido abstrato da existência. Da mesma forma que o sentimento, o conhecimento na preponderância da imaginação mostra ao homem a possibilidade de adquirir saberes acerca de tudo que lhe cerca, sem, no entanto, conhecer o que lhe é mais próprio, seu si-mesmo. Por esse viés, todo o conhecimento adquirido não é senão um amontoado de informações que nada acrescentam na edificação de seu si-mesmo. É como o erudito, aquele que sabe muito, lê de tudo, conhece e reconhece, mas não é saciado, pois o que lhe falta é, precisamente, conhecer seu próprio eu. O conhecimento considerado apenas pela imaginação, afasta o homem de si-mesmo, pois
A lei do progresso do eu em referência ao conhecimento, na medida em que deve ser verdade que o eu tem um si mesmo, não é outra coisa senão que o grau ascendente do conhecimento corresponde ao grau de conhecimento de si mesmo, é dizer, que o eu, quanto mais conhece, mais conhece a si mesmo. Caso contrário, o conhecimento se converterá, na medida de sua ascensão, em uma forma de conhecimento desumano, na consecução da qual o eu do homem será destruído […]20
Assim, quando o imaginário não se relaciona com a própria realidade, quando não se efetiva a possibilidade, tudo o que se apresenta ao eu não lhe traz a si-mesmo. Ao relacionar a imaginação com a vontade, essa vontade fica somente no campo da imaginação, e, então, o eu em-si não se concretizará. “Uma vontade assim imaginária tem o infinito como fim, assim como regressa a si em infinitos e irrealizáveis detalhes, de forma que se ampliam as intenções do fazer na mesma medida em que se distancia a disponibilidade para torná-las real”21. Somente a vontade enquanto imaginação não torna real a possibilidade e assim o eu se afasta, desvanecendo-se sem concretizar-se, vivendo apenas na possibilidade de ser.
É provável que o homem não se dê conta, não seja consciente de estar a viver sob o desespero da infinitude, “[...] um eu assim infinito perde contato com a realidade, desconhece seus contornos, seus possíveis, suas responsabilidades, ou seja, nada sabe da fugacidade e da temporalidade de sua própria existência”22. Sua desumanidade é tão comum – é mais cômodo – e esse desespero passa por despercebido, entretanto, “[...] todo e qualquer momento em que uma existência humana se julga infinita, ou simplesmente finge, é um desespero”23, e é um desespero justamente porque o homem, apesar de possuir uma parte infinita, é uma síntese e uma síntese não se dá apenas por meio de uma de suas partes. No tudo é possível da infinitude, o eu não realiza nenhuma possibilidade e tudo e nada se tornam a mesma coisa.
Assim como há o desespero visto através da infinitude, há também o desespero da finitude, caracterizado pela carencia de infinitude, de imaginação. Quando a imaginação se sobressai numa infinitização do eu, o homem não efetiva sua possibilidade mais própria, apenas abstrai pouco a pouco a sua consciência de si. De outro modo, quando o eu dá maior relevância a sua parte finita, julga que não há outra opção a não ser a que se apresenta momentaneamente, falta, nesse caso, imaginação. O eu fica preso e perde-se e assim: “Carecer de infinitude significa viver em desesperador reducionismo e estreiteza, sem imaginação e numa existência determinada pelo mundo, pelos preceitos morais da lei das normas compartilhadas”24. São as regras do mundo que determinam o eu que antes já é determinado também através de sua eternidade. Dito de outra forma, o desespero da finitude é afastar o eterno existente no eu.
É bem provável que não se note também esse tipo de desespero, pois esse indivíduo pode muito bem se adequar ao que o mundo lhe pede – casar, ter filho, um emprego fixo – é possível até dizer que se é feliz, contrário a isso, não se pode afirmar ser um si-mesmo, quer dizer, alguém cuja autenticidade afirmada é vivida na realidade, um eu particular e não apenas a repetição de uma sequência.
No desespero do finito o eu não se perde porque evadiu-se de si na imaginação, mas por carência de originalidade, de fé em si mesmo e no “tudo é possível” da continuidade, sem atrever-se a ser si mesmo e sem coragem de atender ao único chamado, o de ser si mesmo em sentido eterno (divino)25.
O homem que carece de infinitude não vê que há mais possibilidades, torna-se uma imitação. Para ele, o que se ecoa é “ser César ou não ser nada”, o que significa também querer ser o eu de sua própria invenção. Não se pode nunca possuir um si-mesmo que não seja o que lhe foi dado, por mais que se assemelhe ao outro, não há como concretizar outro eu que não seja o próprio eu. O desespero de finitude volta-se para a imitação. O indivíduo não se atreve a ser particular e se esvai diante da multidão, como uma dízima periódica, nada mais é que uma repetição, como dito pelo filósofo dinamarquês,
[...] com tanto olhar para a multidão de homens ao seu redor, com tanto barulho em todos os tipos de negócios mundanos, com tanta vontade de tornar-se prudente no conhecimento da marcha de todas as coisas no mundo ..., nosso sujeito está esquecendo de si mesmo e esquecendo – compreendendo-o no sentido divino da expressão – o que é chamado, sem ousar ter fé em si mesmo, achando ser muito difícil ser si mesmo, é infinitamente muito mais fácil e seguro ser como os outros, isto é, um macaco de imitação, um número no meio da multidão26.
Por assim dizer, é como um coro onde todos se esforçam para reproduzir uma mesma melodia, um mesmo som ou como uma multidão sem propósito, onde esse eu inautêntico se mostra como mais um. O desesperado desacredita da própria capacidade e perde-se em meio ao todo, este todo não é nada para o si-mesmo. É bem provável que a existência desse eu, desse indivíduo, se resuma nos prazeres do estético, nas coisas momentâneas, sob as coisas que estão em destaque no momento, vivências que não o tocam necessariamente enquanto indivíduo particular, temporal e eterno.
Assim como a infinitude e finitude são necessárias na síntese, há também outra dupla categoria: a necessidade e da possibilidade, onde o eu, na carência de uma das duas, também sofre desarmonia na síntese. O desespero da possibilidade evidencia a falta da necessidade. A necessidade no si-mesmo é o que se refere ao seu eu propriamente, já sua parte da possibilidade é o realizar-se, como podemos analisar, “A necessidade é, então, o elemento que dá a medida do eu”27. Nota-se na realidade concreta que há uma tensão entre o que se pode ser e o que se é.
O desespero do possível se constrói à medida em que, diante da imensidão de possibilidades, o eu não consegue voltar para si-mesmo e encontrar-se: “O possível contém uma multiplicidade de ofertas, que o eu pode perseguir sob a forma de desejo, numa volúpia e ansiedade até não saber mais como regressar a si próprio”28. Este eu inautêntico se firma em um falso centro. Para melhor explicar, é como se ele acumulasse diversas funções e nenhuma delas fizesse parte de seu real inter-esse, é ter várias nomeações, mas não ter uma individualidade, não ser ou responder ao chamado para ser autêntico. Suas possibilidades não são necessárias, o que se pode ilustrar em um estudante prestes a entrar em uma universidade, sua nota servirá para diversos cursos e ele terá que escolher um deles. No entanto, nenhum dos que fora ofertado é realmente o desejado. Os possíveis não o tocam, “Seu mundo é o do interessante”29. Em contraposição a esse tipo de desespero, é necessário possuir consciência de si-mesmo, pois, é a necessidade que faz a ligação entre o possível e a realidade. Pode-se dizer desse desespero que
A infelicidade de semelhante sujeito tampouco consiste em que não tenha chegado a ser nada no mundo, senão que sua infelicidade consiste em não ter caído a ficha de si mesmo, em não ter percebido que o eu que é representa algo completamente determinado e, enquanto tal, uma necessidade. O único que se tem é perder-se a si mesmo, desejando que seu próprio eu se projete fantasticamente no mundo da possibilidade30.
Em contrapartida, o desespero da categoria da necessidade se desvela à medida que tudo se tem transformado em desesperanças. “Carecer de possíveis é carecer de devir é sucumbir ao contingente. E tomar a realidade como se ela não pudesse ser de ouro modo”31. Na realidade concreta, o homem precisa de possibilidades para que o que é necessário se realize, já que: “[...] a existência humana é desesperada sempre que lhe falta a possibilidade, sempre que se tem conduzido ao limite de tal carência, e aquela nunca deixa de ser desesperada em nenhum dos momentos que lhe falta a possibilidade”32. É quando o indivíduo não consegue enxergar a luz no fim do túnel, não há para ele possibilidades para escolher. Ele se fecha em uma caixa sem saída, não consegue libertar-se para ser si-mesmo, para ele, o que há é somente o que se mostra . Em todos os casos de desespero afigura-se o afastamento do Poder que cria a síntese:
[...] o que caracteriza os fatores da síntese fora da consciência é uma nebulosidade indefinida que não chega a ganhar a si mesma e a ganhar duração. Existir como síntese de finitude e infinitude, de possibilidade e necessidade, sem consciência do seu sentido, corresponde a considerar a existência como um todo ou boa parte dela como resultado de um acaso33.
Diante do que até então foi exposto, percebe-se que o desespero está presente e se efetiva sempre que há uma desarmonia na síntese e, com isso, o eu do homem não pode concretizar-se. O indivíduo, por ser compostos de polaridades distintas, necessita encontrar o caminho que o faz mergulhar em sua interioridade para estabelecer assim o eu que lhe foi dado. É na certeza de que não se pode tender apenas para um dos extremos da síntese – seja infinitude ou finitude, necessidade ou possibilidade – que o homem deve mirar suas escolhas. É em sua realidade concreta e perante as determinações intermediárias que fazem com que o homem edifique o seu eu, o seu si-mesmo. O indivíduo deve possuir consciência de si para que possa ser autêntico e, continuamente, com clareza, mergulhar em si mesmo e, estando em si-mesmo, entrar em concordância com Deus – o poder que o criou – afastando-se assim do desespero.
Dentre as formas que o desespero pode se afigurar a depender da desarmonia da síntese que estiver atrelado, é necessário considerá-lo principalmente sob a categoria da consciência. Quanto mais consciência, mais nítido fica o desespero. Da mesma forma que só é possível identificar as sombras perante a claridade, é através da consciência que se identifica o desespero.
O desespero recai de forma mais intensa para aquele que insiste em permanecer conscientemente nele, visto que, dessa maneira, o torna mais aparente para o desesperado. Em contrapartida, ignorar que se está desesperado não aniquila o desespero existente, apenas o afasta mais ainda da cura. Estar desesperado é uma negação do eu, negar que se está desesperado é permanecer no desespero, “Portanto, tão pouco importa que o desesperado não saiba que seu estado é propriamente o de desespero, visto que de todo modo é um desespero”34. É como se fosse abordado dois indivíduos, o primeiro vê os sintomas de uma doença aparecendo e mesmo assim não busca o tratamento, este, ao sentir e ver a cada dia seu próprio definhar-se sofre mais do que o que acorda toda manhã sorrindo sem saber que possui um câncer silencioso, mesmo assim, é indiscutível que ambos estejam doentes, como afirma Kierkegaard:
[...] somente em um sentido, no da pura dialética, se pode afirmar que está mais longe da verdade e da salvação o que ignora seu desespero do que o que sabendo, permanece nele. Por outro lado, se se considera a coisa em outro sentido, no sentido ético-dialético, então há de dizer que o que consciente do desespero se mantém desesperado, está muito mais longe que ninguém da salvação, já que seu desespero é mais intenso. Porém, a inconsciência neste caso pode ser a forma mais perigosa do desespero, tendo em conta que por não saber, não faz nada para sair dele, e até confunde o desespero com o não-desespero. Na ignorância, e para sua própria perdição, o desesperado está seguro e não se dá conta de seu estado, ou melhor, está completa e seguramente a mercê do desespero35.
Por não ter consciência de possuir um eu, não se tem consciência do desespero existente e por isso não se procura a salvação. Neste caso, percebe-se no desespero inconsciente um existente que permanece no estético, seu eu não se efetiva, pois não avança para concretizar as possibilidades que lhe são próprias, apenas repete dia a dia escolhas vazias que não o tocam, até vangloria-se de feitos, mas não se relaciona com seu si-mesmo, não há uma medida para seu eu, não compreende que “Todo homem é uma síntese de corpo e alma dispostos naturalmente para ser espírito”36. É justamente essa a maior dificuldade de edificar-se: “existindo no imediato, na temporalidade de sua existência, ter de conquistar a eternidade na afinação com a realidade histórica de seu tempo”37. Em outras palavras, não há a passagem do estádio estético para o estádio ético-religioso e “Os homens, por mais vaidosos e enfatuados que sejam, muitas vezes formam uma ideia muito pequena sobre si mesmos, isto é, que não têm ideia de que são espírito, que é o absoluto que um homem pode ser”38. Ao não se dar conta de possuir um si-mesmo, o homem desespera. Até mesmo aquele que aparenta possuir uma vida coberta de alegrias possui a possibilidade de desesperar-se, pois o desespero não está na riqueza nem na pobreza, na fama ou na impopularidade, a possiblidade de desespero está no fato de possuir-se um eu, um espírito.
Frente a isso, também não se pode chegar para o outro e afirmar que ele possui ou não desespero, esse tipo de acepção deve ser percebida pelo próprio doente – estratégia utilizada por Kierkegaard em suas obras pseudonímicas “[...] uma ilusão nunca é dissipada diretamente, só se destrói radicalmente de uma maneira indireta”39, é indiretamente que se pode trazer de volta o homem para a luz da verdade, a verdade sobre si-mesmo.
A primeiro ponto, na concepção vulgar sobre o desespero, qualquer que ouça sobre o desespero negará que esteja acometido por esta enfermidade, no entanto, não há existência completamente livre do desespero, “[...] embora haja diferentes níveis e gradações de desespero, de algum modo todas as pessoas estão em desespero, trata-se de um fenômeno universal”40. É desconsiderado a universalidade do desespero e com ela é desconsiderado também o privilégio de ter a possibilidade de desesperar-se, pois a possibilidade de desespero é um privilégio, só pode desesperar aquele que possuí um eu, um espírito.
Na existência concreta, há diversas situações onde o indivíduo é acometido por inquietude e desarmonias, nem sempre é possível identificar o desespero e, quando é percebido, é deixado de lado. É como uma virose não tratada, seus sintomas aparecem e desaparecem, acaba acostumando-se com a presença do vírus e só é notado com mais clareza quando as crises são mais severas. Com o desespero não é diferente, ele está presente e só é perceptível que o eu está se perdendo, uma vez que surge um problema que foge da rotina. O algo que provoca desespero na verdade é apenas sinal e manifestação do desespero já presente e, assim, do eu que não se encontra na autenticidade. Nem todos estão dispostos a se tornarem autênticos e, por muitas vezes, a correria cotidiana retira a vontade de concretizar o eu que se é.
O desespero pode passar despercebido, em meio a distrações e ocupações. Outras vezes, ainda que possua claridade de seu estado, não há paridade com o fazer e o desesperado segue em sua trilha dissonante. Assim, é sempre difícil definir se alguém é ou não desesperado, e ainda mais o quanto ele o é41.
É a consciência de possuir um si-mesmo que intensifica o desespero. Mesmo sabendo que o eu é uma síntese de finitude e infinitude, necessidade e possibilidade, posta por outro, o homem quer desfazer-se do eu que lhe foi dado e realizar-se sob sua própria medida. Quando o homem se desespera por querer ser si-mesmo, esse eu pelo qual ele luta para ser é o eu de sua invenção, não haveria então desespero se ele buscasse ser o eu que lhe foi dado pelo Poder criador. Ao desesperar por não querer ser si-mesmo, o indivíduo tenta se afastar do eu que se deve ser e perde-se pouco a pouco. O desespero, presente em potência na síntese, se sobrepõe a qualquer doença corpórea por atingir aquilo, a saber, o eu, do qual não é possível se desfazer mesmo que assim deseje.
Perante a isso, quando se fala a respeito do desespero de não querer ser si-mesmo, pode-se dividi-lo entre o desespero temporal, ou por algo temporal, e o desespero do si-próprio quanto à eternidade. Com relação ao desespero do temporal, o indivíduo encontra-se sob o imediato, em uma realidade desprovida de reflexão e seu desespero é algo que provém de fatores externos. Vive de acordo com o que lhe é ou não agradável. O que lhe falta é a consciência de possuir um eu que também é eterno. Nesse caso, a vida em si é dispersa entre sorte, desgraça e destino. O desespero se resumisse ao sofrimento passivo do eu, “Neste caso não se dá nenhuma consciência infinita em torno do eu, ou acerca do que seja o desespero, nem tampouco do estado de desespero a que se está”42. Portanto, o indivíduo tem a ilusória noção de eternidade, entretanto, vive de acordo com a materialidade do mundo. Todo esse movimento é visto em cada homem que esquece de si-mesmo e comprime-se de acordo com o que lhe é alheio. Não vive seu eu, como podemos verificar no exemplo abaixo:
O jovem desespera do futuro, temendo o que lhe possa acontecer; o velho desespera do passado, na lamentação, sem, no entanto, se aprofundar no temor e no esquecimento. Esquece a si próprio permanecendo onde está, sem atrever-se a tomar uma decisão, seguindo a vida pautando-se no imediato, ou na ética, no dever – perde-se de si próprio porque se torna totalmente esquecido de si mesmo43.
Mostra-se tanto no jovem quanto no idoso, a falta de autenticidade, uma vida limitada a ganhos e perdas, acompanhando o progresso do mundo e pairando, perdendo, esquecendo de si-próprio. “A imediatez da vida não comporta propriamente nenhum eu, nenhum conhecimento próprio e, consequentemente, tampouco compreende nenhuma capacidade de conhecimento de um eu”44. O eu que desespera no imediato quer desmanchar-se de seu si-mesmo e efetivar-se em um si mesmo que ele próprio criou. Não são as escolhas do seu si-mesmo, é querer escolher um si-mesmo. Tanto vale os prêmios, a popularidade, o encontrar-se dentro do padrão social do momento, a mudar de acordo com a tendência, ser um ser para o mundo, se desfazer a tal modo que não se consegue mais regressar para sua interioridade, arruinar-se de maneira que não quer possuir o seu si-mesmo,
[...] aquela parte de vida interior a que se sente especialmente vinculado lhe é arrebatada ‹‹por um golpe do destino›› e chega a ser – para usar a própria expressão – um desgraçado; é dizer, que a imediatez o tem fragmentado de tal forma que já não se pode regressar e não tem mais remédio que desesperar45.
É o ser exterior que o define, suas contingências são ele próprio e, dessa maneira, ao não querer ser si-mesmo, ao despedaçar seu próprio eu, o desespero torna-se mais visível nas perdas temporais, mas o fator de desespero é nada mais que a perda do eterno. Um fato isolado como perder as chaves de casa ou atrasos no salário podem sim tornar-se um grande infortúnio e despertar todo o desespero já presente no indivíduo. Mas estes fatos de per si não são o que causa o desespero.
Há de se observar que um desesperado dessa natureza pode encontrar-se mediante a pura imediatez ou possuir uma mínima reflexão sobre si próprio. Se há reflexão, se avança um pouco, pois, dessa forma, o desespero não é apenas voltado para os fatores externos, ele já se desponta em uma autorreflexão. Todavia, ao passar os momentos em que o desespero se aflora, o desesperado recua para o mesmo ponto e não mantém a consciência com relação ao desespero. Há um progresso do desespero do imediatismo para este que possui uma certa reflexão, mas quanto mais o desespero se mostra presente em uma reflexão, menos se enxerga o eu. Nesse caso, ao desesperado, parece que é uma má escolha não querer ser o si-mesmo que possui, não há segurança ou outra alternativa para que se possa abandonar esse eu. No entanto, este vive entre a reflexão e o imediato, não se edifica e continua a desesperar.
O fenômeno do desespero ocorre sempre em dialética com seu contrário: se há o desespero da ausência do eterno, há também o desespero onde o eterno tem predomínio na síntese. Enquanto desesperar de algo, o desespero temporal, se constitui entre o imediatismo e os fatores que são externos ao eu – mesmo que nesse desespero, ao desesperar de algo, é do eterno que se desespera – existe também o desespero do si-mesmo quanto à eternidade, este é visto como o desespero propriamente dito. Nesse caso, o eu quando se desespera com relação à eternidade, se desespera precisamente de si-próprio, melhor explicado por Kierkegaard:
Deste modo evoluímos cada vez mais. Nesse ponto, na consciência do eu, pois é impossível desesperar sobre o eterno sem ter ideia do próprio eu, de que tem algo eterno nele, ou que contém em si algo eterno. Já que para desesperar por um eu é preciso que tenha consciência de possuir um si mesmo, que é o que na realidade desespera e não pelo temporal ou por algo temporal46.
Como já dito, esse desespero é mais profundo que o da temporalidade, suas raízes estão voltadas para o próprio eu, o desespero não vem de algo exterior, vem de dentro. É o incômodo de ser o si-mesmo que se é e possui de fato a consciência de ter um eu, ter um eu eterno. Esse tipo de desespero não é tão comum quanto o da temporalidade. Dentre os riscos aos quais o desesperado quanto à eternidade está exposto, o principal é o suicídio. Esta forma de desespero sempre se volta para si-mesmo, conhece seu eu e o desespero que nele possui. Nesse movimento de voltar para si-mesmo não realiza-se, no entanto, sabendo que as possibilidades se efetivam na existência, insiste em sonhar com a eternidade.
Quando o indivíduo possui a consciência de ter um eu e percebe que seu desespero não está nas coisas temporais, pois estas são apenas formas onde o desespero se mostra, este desesperado compreende a existência do desespero em sua própria fraqueza e por mais que tente disfarçar, o desespero não dá trégua. Não é um simples mergulhar para si-mesmo tendo consciência de ser um si-mesmo, mais que isso, é estar em um lago profundo, com pedras amarradas aos pés e, por mais que tente voltar a superfície, não consegue. Ao mergulhar, afunda em si-mesmo. Pode-se dizer que, nesse caso, por pior que seja o desespero, é mais provável encontrar a cura, pois o eu tem mais clareza e consciência de si.
Percebe-se que o fator decisivo dessas formas de desespero é o querer dar a medida de seu próprio eu. Busca afastar-se do Poder que dá a síntese, não quer necessitar dele, é querer um eu de sua própria invenção. A partir daí cabe analisar também o desespero de querer ser si-mesmo. O eu se concretiza nas escolhas das possibilidades autenticas, uma síntese que se faz na concretude da existência.
Ao desesperar por querer ser si-mesmo, o homem acredita ser o próprio criador de seu eu e, esse eu que ele desespera para ser é um eu de sua invenção, pois se a vontade de ser si-mesmo se dirigisse para o eu dado pelo Poder criador, não haveria então desespero já que se constituiria assim o eu que nasceu para ser. “Esse desesperado quer dar a medida de sua existência, um eu à medida do ser humano, e ilude-se acreditando poder criar a si próprio […]”47. O eu quer se determinar no espaço do “tudo é possível” e acaba perdendo-se nessa infinitude. O acometido por esse tipo de desespero se rebela contra o seu próprio autor e luta para ter poder sobre seu si-mesmo. Assim como nas outras formas de desespero, este não quer nem ao menos ouvir falar desse estado, pois para ele seria a própria ruína.
O eu quer desesperadamente gozar da plena satisfação de fazer a si mesmo, desse desenrolar próprio, desse típico ser si mesmo, e quer também que todo mundo o honre por essa admirável disposição poética com a que tem chegado a compreender-se a si mesmo. E, no entanto, toda essa compreensão não é no fundo mais que um enigma, e muito bem pode ocorrer no mesmo momento em que este eu se cria, no momento em que se tem terminado o enorme edifício que este venha abaixo como por ensalmo48.
Por mais que o desesperado por querer ser si-mesmo lute para afastar-se do seu real dado pelo Poder criador, ao simples descuido, o eterno volta e todo o esforço se esvai. O homem nessas condições se perde por achar que pode se encontrar sozinho, por acreditar que não necessita, ou melhor, por crer que seu si-mesmo é por ele feito. Por mais que o indivíduo deseje, não provém dele seu si-mesmo, é dele apenas a tarefa (grandiosa tarefa) de tornar esse eu, esse si-mesmo, algo concreto. Cabe dar importância ao fato de que essa concretude não é uma escolha que o tornará sempre um eu concreto, é um constante movimento de tornar-se. Não há como afastar o eterno do si-mesmo (Selv), pois todo eu é composto de temporal e eterno, uma síntese do temporal e eterno.
Diante da discussão proposta, acentua-se o desespero como uma doença mortal e a possibilidade de desespero como algo universal, podendo ser considerado de acordo com a desarmonia da síntese e o grau de consciência. A saber que o não ter consciência de possuir desespero não aniquila o desespero existente e quanto mais consciência de si, mais intenso será o desespero. Assim como todos possuem individualidade, um eu, todos também possuem a possibilidade de desesperar. Verificou-se que a universalidade da possibilidade de desespero é uma vantagem e sua efetividade uma grande desgraça. Só pode desesperar quem possui um eu, entretanto, desesperar-se é a maior miséria espiritual, é não ser autêntico, não estar em correspondência com o fundamento que fundamenta o si-mesmo. Ser si-mesmo é um grande privilégio e um grande dever, é como se, ao criar o eu do homem o Poder deixasse que por escapar de suas mãos e tornasse tarefa do próprio indivíduo edificá-lo. A dificuldade está em manter em todas as escolhas a autenticidade e, em meio as dificuldades da existência, não oscilar entre as polaridades da síntese.
Quando a síntese falha, falha por carência ou supremacia de uma das polaridades nela existentes. Constata-se que apesar de não admitir, não há nem um homem se quer que não tenha sido acometido por uma inquietude ou uma perturbação desarmônica. A medida em que, tanto com relação a necessidade e possibilidade, quanto a infinitude e finitude, o eu deixa de ser síntese e passa a ser um eu para o mundo, apesar de particular, converte-se em multidão. É como se perdesse a interioridade e os fatores externos prevalecessem em sua existência ou, ao contrário, perdesse-se na imaginação.
Verificou-se a preponderância da consciência como fator decisivo em relação ao desespero. Quanto mais consciência, mais intenso é o desespero, pois mais clareza se tem a respeito do eu que se pode perder. Considerou-se que, quando um indivíduo tem consciência de possuir um eu, percebe que seu desespero não está nas coisas, mas sim em sua interioridade. O eu com a mínima consciência de possuir um espírito, um eu que compreende em si um pouco de eternidade, desespera por querer ser si-mesmo, por não querer ser si-mesmo, ou então não tem ao menos a consciência de possuir um eu. Para finalizar a discussão aqui proposta, cabe salientar que negar a existência do desespero não aniquila o desespero existente, apenas afasta mais ainda da possibilidade de cura.
Fecha de recepción: 07/09/2020 Fecha de aceptación: 20/01/2021
1. A pesquisa aqui apresentada é um fragmento fruto do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (2018).
2. O termo “si-mesmo” e “eu” serão utilizados com o mesmo proposito na escrita, cuja significação está relacionada a síntese que constitui o homem. Apesar do sentido subjetivista que a tradição dá ao termo “eu”, em Kierkegaard, há correspondência com o “si-mesmo”. “Si-mesmo” hifenizado, demarcando uma auto relação.
3. Determinações intermediárias são afetações da existência, exemplo: amor, desespero, fé, etc.
4. Le Blanc, C., Kierkegaard, trad. Marina Appenzeller, São Paulo, Estação da Liberdade, 2003, p. 52.
5. Araújo Silva, M., A superação da metafísica na filosofia de Kierkegaard e Heidegger: as tonalidades afetivas (Stemninger, Stimmungen) como arché da filosofia, São Paulo, LiberArs, 2018, p. 158.
6. Palavra grega cujo significado é “em potência”.
7. Kierkegaard, S., La enfermedad mortal, trad. Demetrio Gutiérrez Rivero,, Madrid, Trotta, 2008, p. 51, tradução nossa.
8. Protasio, M., O si mesmo e as personificações da existência finita: Comunicação indireta rumo a uma ciência existencial. Rio de Janeiro, IFEN, 2015, p. 129.
9. Araújo Silva, M., op. cit., p. 162.
10. Kierkegaard, S., op. cit., p. 50.
11. Protasio, M., op. cit., p. 120.
12. Kierkegaard, S., op. cit., p. 36.
13. Ibid., p. 34.
14. Protasio, M., op. cit., p. 121.
15. Forma abreviada de Anti-Climacus, pseudônimo de Kierkegaard que assinou a obra A doença para a morte.
16. Protasio, M., op. cit., p. 121.
17. Kierkegaard, S., op. cit., p. 52, grifos do autor.
18. Protasio, M., op. cit., p. 123.
19. Kierkegaard, S., op. cit., p. 52.
20. Ibid., p. 53.
21. Protasio, M., op. cit., p. 125.
22. Idem.
23. Kierkegaard, S., op. cit., p. 52.
24. Protasio, M., op. cit., p. 126.
25. Ibid., p. 127.
26. Kierkegaard, S., op. cit., p. 55.
27. Protasio, M., op. cit., p. 131.
28. Ibid, p. 130.
29. Ibíd.
30. Kierkegaard, S., op. cit., p. 58.
31. Protasio, M., op. cit., p. 131.
32. Kierkegaard, S., op. cit., p. 59.
33. Protasio, M., op. cit., p. 133.
34. Kierkegaard, S., op. cit., p. 66.
35. Ibid., pp. 66-67.
36. Ibid., p. 65.
37. Protasio, M., op. cit., pp. 134-135, grifos do autor.
38. Kierkegaard, S., op. cit., p. 65.
39. Kierkegaard, S., Ponto de vista explicativo da minha obra como escritor, Lisboa, Edições 70, 2002, p. 39.
40. Roos, J., “Kierkegaard e a antropologia entre a angústia e o Desespero”, La Mirada Kierkegaardiana, Nº 1. p. 68-78. IV Jornadas Kierkegaard, Buenos Aires, de 24 a 25 de outubro de 2008, p. 70.
41. Protasio, M., op. cit., p. 138.
42. Kierkegaard, S., La enfermedad mortal, op. cit., p. 73.
43. Protasio, M., op. cit., p. 140.
44. Kierkegaard, S., La enfermedad mortal, op. cit., p. 76.
45. Ibid., p. 74.
46. Ibid., p. 86.
47. Protasio, M., op. cit., p. 144.
48. Kierkegaard, S., La enfermedad mortal, op. cit., pp. 94-95.