O cosmopolitismo da Mulher do Pau-Brasil
Dieison Marconi*
Resumo: O objetivo deste ensaio é refletir sobre o cosmopolitismo na obra da cantora, compositora e instrumentista brasileira Adriana Calcanhotto. Argumenta-se que sua sensibilidade cosmopolita, isto é, as frequentes composições visuais que tematizam a viagem, a errância e o nomadismo, atravessam três eixos que são importantes para a compreensão do trabalho artístico de Calcanhotto: 1) o amálgama de uma estética modernista, antropofágica e tropicalista, incluindo a incursão literomuscal da artista em musicar a poesia modernista brasileira e portuguesa; 2) o frequente intercâmbio de sua voz e de suas composições com a erudição e com a cultura popular-midiática, inclusive quando suas canções são amplamente utilizadas como trilha sonora de telenovelas brasileiras; 3) a sensibilidade lésbica presente em seu cancioneiro, sobretudo a partir das cantadas de amor em que o eu-lírico da canção está em constante deslocamento geográfico, cultural e estético, o que oferece novos relevos para a antiga, porém pouco estudada, presença da sexualidade lésbica e/ou da bissexualidade feminina na música brasileira e na cultura popular-midiática.
Palavras-chave: Adriana Calcanhotto; Música Popular Brasileira; Cosmopolitismo.
Abstract: The aim of this essay is to reflect on cosmopolitanism in the work of Brazilian singer, songwriter and instrumentalist Adriana Calcanhotto. It argues that her cosmopolitan sensibility (her frequent visual compositions thematizing travel, wandering and nomadism) crosses three axes that are important for understanding Calcanhotto's artistic work: 1) the amalgam of a modernist, anthropophagic and tropicalist aesthetic, including the artist's literomusical foray into setting Brazilian and Portuguese modernist poetry to music; 2) the frequent interchange of her voice and her compositions with erudition and popular-media culture, including when her songs are widely used as soundtracks for Brazilian soap operas; 3) the lesbian sensibility present in her songbook, especially in the love songs in which the lyrical self of the song is constantly on the move geographically, culturally and aesthetically, which gives new relevance to the old but little-studied presence of lesbian sexuality and/or female bisexuality in music and popular media culture.
Keywords: Adriana Calcanhotto; Brazilian popular music; Cosmopolitanism.
Em dezembro de 1992, o escritor Caio Fernando Abreu, naquele momento vivendo em Saint-Nazaire (França), escreve uma carta à amiga Adriana Calcanhotto, que lançara seu segundo disco de estúdio em julho daquele mesmo ano. Trata-se do álbum Senhas, onde Calcanhotto explora com ênfase canções em diálogo com o cinema, a literatura e as artes plásticas:
“Deusa querida e distante, impossível não pensar em você bebendo literalmente litros de água Perrier todo o dia — o aquecimento seca horrores a pele! —, mas não só por isso. Também procuro as cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo (vi uma autêntica na Fiac, em Paris!), que aqui, neste porto de mar na Bretagne, entre Nantes e Brest, a cidade de Querelle, são bastante raras. São mais cores de Agnés Varda, cores de Gustave Klimt”1.
Na carta, Caio Fernando Abreu faz referência direta à duas composições presentes no álbum Senhas: “Água Perrier”, onde segundo o escritor sua amiga emitia “agudos de cristais”, e “Esquadros”, possivelmente uma das canções mais populares de Calcanhotto. Caio Fernando Abreu foi um sujeito errante. Nascido na cidade de Santiago, interior do Rio Grande do Sul, o autor passou boa parte de sua vida, em alguns momentos carregada de vulnerabilidade financeira, a transitar entre Londres, Paris, São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Saint-Nazaire. Antes de morrer de AIDS em Porto Alegre, cidade que chamava de “carroça”, ainda sonhava em visitar Peru, Nova York e Pequim. Caio “andava pelo mundo prestando atenção em cores” como um exilado, ora motivado por questões concretas, a exemplo da bolsa de incentivo à escritores estrangeiros que ganhou da Maison des Écrivains Étrangers, em Saint-Nazaire, ora por conflitos existenciais marcados, inclusive, pela sua homossexualidade.
A voz errante de Calcanhotto o acompanhava, visto que a trajetória de ambos os artistas também é semelhante: ambos nascidos no estado do Rio Grande do Sul, ele em Santiago, ela em Porto Alegre, ambos se mudaram para o eixo Rio-São Paulo a fim de prosseguir e ampliar as possibilidades de sobrevivência como escritor, no caso de Abreu, e cantora e compositora, no caso de Calcanhotto. Gaúcha recém-chegada no Rio de Janeiro no final dos anos 1980, Calcanhotto compôs a canção “Cariocas” para o álbum Fábrica do poema, lançado em 1994, onde a cantora canta, dando ênfase aos aspectos literários da canção, esse encontro com o outro de si mesmo, ainda que brasileiro.
Porém, em seu primeiro álbum, chamado Enguiço (1990), já era possível notar no trabalho da cantora não apenas uma atitude de trabalho autoral, misto de Bossa nova e Tropicália, que se inspirava nas deglutições à maneira antropofágica, como também já era possível perceber a forte presença da temática do deslocamento estético, geográfico e cultural em releituras inovadoras de canções como “Disseram que eu voltei americanizada”. No álbum em questão, esse clássico cantado originalmente pela voz luso-brasileira de Carmem Miranda, transforma-se em um samba acompanhado de piano, onde Calcanhotto emite palavras com sotaque francês, inglês e português lusitano.
No mesmo álbum, Calcanhotto canta “Caminhoneiro”, de Roberto Carlos e Erasmo Carlos. Nessa canção, a cantora e compositora fratura o recurso do eu-lírico masculino da versão original e investe no tom confessional de uma caminhoneira com a mão no volante e que não pensa em outra coisa a não ser voltar para os braços da mulher amada: “Todo dia quando eu pego a estrada/ Quase sempre é madrugada/ E o meu amor aumenta mais/Porque eu penso nela no caminho/ Imagino o seu carinho/ E todo bem que ela me faz”. Nos últimos segundos da canção “Caminhoneiro”, Calcanhotto canta baixinho e em voz suave “Não se reprima”, da boy band Menudo, presente no álbum “Mania” (1984). Com essa pequena inserção de “Não se reprima”, canção estandarte da cultura de massa dos anos 1980, estaria Adriana Calcanhotto germinando sua própria imagem futura que viria a ser associada à uma iconografia lésbica da Música Popular Brasileira?
Na verdade, a julgar pelo visual com o qual a cantora surgiu na cena musical do início dos anos 1990, pode-se dizer que Calcanhotto não se reprimia. Quando lançou o álbum Enguiço, a cantora posou na capa de seu primeiro disco com um cabelo curto, loiro platinado, e com roupas tradicionalmente codificadas como masculinas: paletó vermelho, lenço verde no bolso do paletó, calça amarela, camisa de gola roxa e sapato branco. A cantora posa em um fundo verde corpulento. Cores vivas, de Frida Khalo ou de Pedro Almodóvar, que constroem a imagem do que a pesquisadora Elisa Glick (2001) talvez chamasse de um “dândi feminino” ou, ainda, um “dândi queer” nos trópicos. Na ocasião de lançamento de seu primeiro disco, novamente ele, Caio Fernando Abreu, escreve para a antiga revista Around2, onde diz que Adriana Calcanhotto é a maior revelação musical do início dos anos 1990, e que seria impossível para o público esquecer a garota que emitia “agudos de cristais” com seus olhos verdes, cabelos platinados e cotê demi-punk.
Calcanhotto fixou residência no Rio de Janeiro, porém, nunca deixou de ser uma andarilha, uma mulher que escreve, canta e caminha, reconfigurando o termo flâneur, este que é tão carregado de simbologias masculinas desde os escritos de Walter Benjamin (1989). Suas andanças sustentam, de fato, algumas adulterações de um dos aspectos mais tradicionais da palavra cosmopolita: o de “cidadão do mundo”. Depois de Enguiço, essa sensibilidade cosmopolita retorna em poesia e melodia nos álbuns seguintes (Senhas, 1992; Fábrica do poema, 1994; Cantada, 1995), nos quais a cantora e compositora emite versos autorais, a exemplo da própria canção “Esquadros” (1992), ou de composições melódicas regravadas, a exemplo de “O nome da cidade” (1992), canção de Caetano Veloso onde agora é Calcanhotto quem se pergunta: “Onde será que isso começa? /A correnteza sem paragem/O viajar de uma viagem/A outra viagem que não cessa”.
No álbum Marítimo (1998), quarto álbum da cantora, o título do disco é um jogo de palavras com as palavras "mar e ritmo". A capa do disco faz referência às criações do artista plástico Hélio Oiticica e do carnavalesco Fernando Pamplona ao apresentar uma fotografia de Calcanhotto vestida com um Parangolé, mas que também remete ao movimento das ondas do mar. Marítimo inaugurou uma trilogia continuada por “Maré”, lançado dez anos depois (2008), e finalizada com “Margem”, lançado em 2019. Nessa trilogia, o mar é a superfície, e não a estrada, por onde Calcanhotto se movimenta, seja por amor, seja pelo pungente desejo de outras paisagens, até emergir em outros continentes, sobretudo África e Europa. Nessa trilogia, a cantora novamente lança canções de amplo apelo popular, a exemplo da faixa “Vambora”, o remix pop de “Carioca”, agora com elementos sonoros de jazz, samba e marchinha de carnaval e, também, da faixa “Maresia”, onde a cantora incorpora o arquétipo do marinheiro machucado por amor.
Nesses trabalhos, Calcanhotto não apenas constrói paisagens sonoras multifacetadas, mas também “composições visuais” (Julião, 2021), brasileiras e estrangeiras, pelas quais o eu-lírico da canção se movimenta. Apesar disso, e diferente das canções compostas e cantadas por Milton Nascimento, obra frequentemente associada à world music e a uma fecunda sensibilidade cosmopolita (Souza, 2021), o trabalho de Adriana Calcanhotto é até hoje menos estudado sob esses aspectos. Mesmo o exílio bastante localizado de Caetano Veloso, e manifestado esteticamente nos álbuns Transa (1972) e Caetano Veloso (1971), ganharam mais atenção dos estudos sobre world music do que a assídua referência aos deslocamentos geográficos, estéticos e culturais presentes na música de Calcanhotto.
Durante o momento de imobilidade social provocado pela pandemia de coronavírus, a cantora lança o álbum Só. Diante do cenário de distanciamento social, em que muitos artistas deixaram por longos meses de fazer shows e turnês, uma das faixas do álbum, “Lembrando da estrada”, faz menção melancólica ao desejo de “levantar acampamento” e “deixar para trás o que tiver de deixar”. Em “Corre o munda”, Calcanhotto também lembra da cidade de Coimbra enquanto pede a deus que, apesar de não encontrar uma rima para a cidade, que ele não permita que a cantora morra sem voltar a flanar e vaguear pela cidade histórica. Se, nesse álbum, o desejo da estrada aparece de modo enlutado, no álbum de estúdio seguinte, intitulado Errante (2023), Adriana Calcanhotto expressa o epítome dos deslocamentos geográficos e culturais que a cantora produziu ao longo de mais de 30 anos de carreira, com ênfase em faixas-chave como “Larga tudo” e “Nômade”. A capa do álbum se assemelha a uma página de passaporte, rabiscado de vários vistos de viagem, e com uma foto 3x4 da cantora localizada no centro da imagem.
Calcanhotto sabe que emerge no “além-mar” como um sujeito nômade e clandestino, tal como cantava na regravação homônima da canção de Manu Chao, feita pela cantora para o álbum Público em 2000. Porém, em seu país natal, a voz e as composições da cantora, sendo ela mesma produtora da maioria de seus álbuns, também permanece em um constante entrelugar: entre a Bossa nova e a Tropicália, entre o popular e o erudito, entre o nacional e o estrangeiro, entre a intérprete e a compositora, entre o resgate de tradições melódicas brasileiras e estrangeiras e a rasura delas. Por esse motivo, o traço mais cosmopolita de seu trabalho não diz respeito somente à prática do deslocamento transnacional, mas, sobretudo, à consciência de uma “Mulher do Pau-Brasil” que está constantemente aberta à diferença.
Na canção A mulher do Pau-Brasil, lançada como single em 2018, Adriana parece recuperar sua própria biografia:
Nasceu no Sul
Foi para o Rio e amou como nunca se viu
Depois do Rio que tragou no além-mar onde emergiu
Chamou-se a mulher do Pau-Brasil
Trabalha no negócio da orgia
Trabalha no negócio da folia
Trabalha no negócio da poesia
Trabalha no negócio do ócio
Nasceu no Sul
Foi para o Rio e amou como nunca se viu
Depois do Rio que tragou pro além-mar onde emergiu
Chamam-lhe A mulher do Pau-Brasil
Chamam-me A mulher do Pau-Brasil
Cham- I'm a mulher do Pau-Brasil
Chamo-me a mulher do Pau-Brasil
Nas duas primeiras linhas melódicas, a cantora e compositora nos lembra que nasceu em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, mas que no final da década de 1980 migrou para o Rio de Janeiro, cidade a ser “tragada” por Calcanhotto, como se a metrópole à beira mar pudesse ser posta no banquete antropofágico da cantora. No Rio de Janeiro, cidade que carrega nos ombros o peso histórico, artístico e cultural de ter sido a capital do Brasil colonial, capital do Brasil imperial e depois capital da República, Calcanhotto afirma que “amou como nunca se viu”. Sempre discreta em relação à sua vida privada, o que não a deixou ilesa a uma série de buchichos sobre sua sexualidade, depreende-se que a expressão (“amou como nunca se viu”) poderia dizer respeito à longa relação amorosa que cantora nutriu com a cineasta Suzana de Moraes, de 1985 até 2015.
Na ocasião da morte da companheira em 2015, Adriana disse à imprensa uma frase tão maciça quanto a expressão “amou como nunca se viu", porém, e neste caso, fortemente enlutada: “morreu o amor da minha vida”. Porém, Calcanhotto, ou o eu-lírico da canção A Mulher do Pau-Brasil, “sabe que a vida deve continuar”. Desse modo, depois de tragar a cidade do Rio de Janeiro, a cantora emerge no além-mar e dá a si mesma a alcunha de A mulher do Pau-Brasil. Insisto, por mais algumas linhas, no aspecto autobiográfico dessa canção. Pois, também, pode-se supor que o “além-mar” ao qual a artista se refere se trata, de modo localizado, às suas frequentes estadas em Portugal, inclusive como embaixadora da Universidade de Coimbra, onde também lecionou cursos sobre composição musical. Já com as palavras “orgia”, “folia”, “poesia” e “ócio”, a compositora adjetiva seu próprio trabalho de forma aberta e contraintuitiva, visto que tais expressões, a depender de quem as emite, pode utilizá-las de modo elogioso ou depreciativo para ser referir à arte ou ao trabalho dos artistas.
Assim, também pode-se argumentar que foi só a partir da sua emersão no além-mar que o eu-lírico da canção tomou ainda mais consciência de sua identidade de Mulher do Pau-Brasil. É no jogo da identidade e da diferença, diz Stuart Hall (2006), que nomeamos o outro e a nós mesmos. Assim, Calcanhotto afirma que em terras estrangeiras as pessoas a reconhecem e a chamam de “A mulher do Pau-Brasil”, assim como ela mesma passa, então, a se chamar, em inglês e português, de “A mulher do Pau-Brasil”. O jogo aforístico de palavras é declaradamente inspirado no Manifesto da Poesia Pau-Brasil de Oswald de Andrade, que em 1924 sugeriu alguns roteiros para a estética da poesia modernista brasileira, antes vista como um recalque da literatura europeia.
Por isso, o que inicialmente poderíamos depreender unicamente como apenas um traço biográfico do nomadismo da própria cantora ganha, na verdade, outras camadas de sentido: como a Mulher do Pau-Brasil que emerge no território estrangeiro, Calcanhotto entende que faz parte, ela própria, de uma cultura de exportação cultural, tal como desejava o manifesto escrito por Oswald de Andrade ou, ainda, tal como a árvore Pau-brasil, planta nativa brasileira que foi amplamente exportada para países estrangeiros, sobretudo para países europeus. Outro aspecto do manifesto de Mário de Andrade diz respeito, por um lado, ao argumento de que a poesia brasileira não devia em nada para a literatura do Norte Global, podendo, inclusive, vir a influenciar a cultura europeia. O argumento cosmopolita a partir da periferia não para por aí, visto que o manifesto argumenta, em acréscimo, que os brasileiros devem ver o Brasil de “dentro para fora” e não apenas de “dentro para dentro”. As letras e as melodias de Calcanhotto são resultado de uma lição aprendida, tendo em vista que, a exemplo de A Mulher do Pau-Brasil, elas também se mantêm fiel ao segundo manifesto escrito por Oswald de Andrade, o Manifesto Antropofágico (1928), onde o autor complementa, amplia e radicaliza as propostas do primeiro.
O Manifesto Antropofágico tende a ressaltar com maior ênfase a necessidade do Brasil, na condição de periferia geográfica e cultural, deglutir e devorar as técnicas e referências artísticas e culturais imperialistas e colonizadoras do Norte Global, tendo em vista que estas técnicas já haviam sido constitutivas das nossas identidades e das nossas culturas, inclusive “hibridizando-se” com as culturas ameríndias, afrodescendentes, eurodescendentes e asiodescendentes. Utilizo aqui a expressão “culturas híbridas” de Nestor Garcia Canclini (2011) em seu sentido mais crítico e autônomo, isto é, uma consciência híbrida que não ignora as relações de poder instauradas pelos processos de colonização, a exemplo de quando Calcanhotto canta “Negros/Aquarela do Brasil” (1992), uma canção de protesto desfeita de qualquer tom messiânico e, na qual, Calcanhotto vê, de fato, o Brasil de dentro para fora, pois percebe tanto as relações de poder entre negros e brancos quanto os férteis e criativos hibridismos culturais e artísticos legados por essas interações conflituosas.
Nas palavras do poeta Waly Salomão, o mais atraente diferencial do trabalho de Adriana Calcanhotto em um cenário pós-tropicalista, é
essa arte combinatória e ousada de incorporar no trabalho dissonâncias culturais de tal modo que, longe de tentar harmonizá-las, enfatiza seus choques, suas fendas e suas brechas, como se fosse um DJ, a arranhar e samplear sonoridades reconhecíveis da música comercial e erudita, da poesia canônica e de clichês liricistas entremeados de sugestões de frases musicais cantaroladas...Trata-se de uma recusa à fusão convencional, a palatáveis colchas de retalhos e à empolada polenta caipirocosmopolita3.
Da análise de Salomão, depreende-se que a música de Calcanhotto não se rende a uma mera fusão de elementos distintos que eliminaria as tensões estéticas e culturais provocadas pela diferença. Nesse sentido, o trabalho da cantora não busca resolver questões como cópia e autenticidade, cosmopolitismo e provincianismo, centro e periferia, nacionalismo e transnacionalidade, colonialidade e contra colonialidade, pureza e mestiçagem, tensões centrífugas que nunca deixam de ser aglutinadas quando se fala de uma arte brasileira cosmopolita, sobretudo quando essa se inspira da “fonte antropofágica”. Ainda que essas mesmas tensões não tenham impedido investidas artísticas interessantes, como é o caso do próprio trabalho de Calcanhotto, invenções artísticas como essas correm o risco de serem eclipsados pela forte tendência atual, percebida em discursos contemporâneos autodenominados progressistas, de “olhar cada vez mais para dentro das nossas próprias culturas”.
De tão mobilizados que estamos pelas políticas de identidade reificadas, pelos essencialismos dos lugares de fala e pelo recrudescimento nacionalista em diferentes lugares do globo, um termo como cosmopolitismo pode parecer uma expressão inimiga de tais projetos aparentemente democráticos e progressistas, pois, se por um lado o cosmopolitismo pode fazer alusão acrítica às relações de poder antes associadas às práticas culturais eurocêntricas, globalizadas e elitistas do “cidadão do mundo”, do outro, pode desvelar a perspectiva monocultural, substancialista e ingênua da busca pela autenticidade da cultura brasileira. Assim, a nuance, a interculturalidade, os hibridismos e o entrelugar (Bhabha, 2002), os quais, queiram ou não, fazem parte das culturas brasileiras a mais de cinco séculos, deixam de ser utilizadas como ferramentas críticas e criativas para lidar com nosso passado e nosso presente lesionado em favor de políticas essencialistas ou de falsa pureza e autenticidade cultural.
Embora a expressão Mulher do Pau-Brasil só tenha vindo ao mundo em forma de música em 2018, tendo no mesmo ano nomeado uma turnê nacional da cantora, ela já havia sido utilizada por Calcanhotto em 1986, quando ainda não havia ganhado projeção nacional e nem havia se mudado do Sul para o Rio de Janeiro, mas que já prenunciava uma obra marcada pela inspiração antropofágica e tropicalista. No show de 2018, segundo Jairo Ferreira4, a cantora elabora o luto pessoal pela morte da companheira, as dores coletivas da fratura social brasileira e deixa a porta entreaberta para uma saída ainda nebulosa para os problemas do país, roteiro marcado pela intensa presença da cor vermelha no palco e alguns adereços do movimento tropicalista, sobretudo aqueles utilizados na capa do disco Tropicália ou Panis et Circencis (1968).
Na medida em que o roteiro do show é consumado, Calcanhotto entoa o poema “A dor tem algo de vazio", canção de Cid Campos sobre o poema da norte-americana Emily Dickinson que foi inicialmente traduzido pelo poeta e tradutor brasileiro Augusto de Campos. Há, ainda, interpretações novas para canções como “Mortal loucura” (2005), composição de José Miguel Wisnik sobre poema barroco do português Gregório de Matos e “Noite de São João” (2007), composição de Fred Martins sobre poema de Alberto Caeiro (pseudônimo de Fernando Pessoa). Na verdade, a obra de Calcanhotto é marcada por um grande banquete de incorporação e deglutição da poesia canônica brasileira e portuguesa, a exemplo do poema “7”, escrito pelo poeta português Mário de Sá Carneiro, e que no álbum Público (2000) foi gravado com o título “Outro”. Na voz da cantora, este poema metrificado em três estrofes de quatro versos parece descrever o próprio entrelugar da estética de Calcanhotto, na medida em que a entoação melíflua da cantora, acompanhada de acordes minimalistas, diz versos como “Eu não sou eu nem sou o outro/ Sou qualquer coisa de intermédio”. Mário de Sá Carneiro está para Adriana Calcanhotto como Fernando Pessoa está para Maria Bethânia, tendo em vista que a artista se tornou, inclusive, embaixadora da obra do poeta português no Brasil. De Sá Carneiro, Calcanhotto ainda musicou, todavia em versões ainda não discografadas, poemas como “Vislumbre” e “Roupagem”.
Já dos poetas canônicos da literatura brasileira modernista e contemporânea, ainda é possível lembrar não apenas do poema “Traduzir-se”, de Ferreira Gullar, mas sobretudo da discreta inserção do título de um dos livros de Gullar (Dentro da Noite Veloz, 1975) em uma canção carregada de lirismo romântico como “Vambora”, um dos maiores sucessos comerciais de Calcanhotto: “Ainda tem o seu perfume pela casa/ Ainda tem você na sala/ Porque meu coração dispara/ Quando tem o seu cheiro/Dentro de um livro/ Dentro da noite veloz”. Na mesma canção, a compositora ainda faz menção ao título de uma das obras de Manuel Bandeira (Na cinza das horas, 1917). Com canções líricas como esta, a música de Calcanhotto se descola de uma possível imagem erudita e hermética de uma “obra literomusical”, isto é, um trabalho artístico que funde o gênero literário e musical (Aragão, 2015), para alcançar públicos mais amplos por meio de sua intensa reprodução em veículos de comunicação como rádio, televisão e internet, a exemplo do álbum “A fábrica do poema”, no qual
A artista faz um trabalho com ênfase no aspecto literário das composições. Calcanhotto põe música no poema A fábrica do poema, pretensamente anti-musical de Waly Salomão, e musica uma entrevista, Por que você faz cinema? concedida pelo cineasta Joaquim Pedro de Andrade para o jornal Libération”. (Aragão, 2015, p. 6).
Além de poesias e entrevistas musicadas, nesse mesmo álbum, na faixa “Portrait of Gertrude”, Calcanhotto faz uso da voz da poeta norte-americana, lésbica e modernista, Gertrude Stein, acrescentando o teclar de uma máquina de escrever. Ao lado da poesia modernista norte-americana, brasileira e portuguesa, Calcanhotto também entoa os versos bossanovistas de Vinícius de Moraes, reinventa o som da Jovem Guarda e alegoriza o tropicalismo de Caetano Veloso, convertendo o cantor baiano em um objeto antropofágico agora deglutido e recomposto por uma nova geração em canções como “Vamos comer Caetano”, também nomeando o cantor baiano como o “Homem do Pau-Brasil”.
Em entrevista5 ao jornal português Expresso, Adriana Calcanhotto conta que conheceu poetas como Fernando Pessoa, Vinícius de Moraes, Ferreira Gullar, Florbela Espanca e Carlos Drummond de Andrade, do qual musicou o poema “Jornal de Serviço” para o álbum “Cantada”, por meio do rádio. Foi através do rádio que ela ouviu, pela primeira vez, poemas musicados por Raimundo Fagner e Maria Bethânia. Na mesma entrevista, Calcanhotto também explica que foi por meio do consumo de músicas radiofônicas que percebeu que a divisão entre alta e baixa cultura é uma “perda de tempo” e que essa divisão estanque já havia sido abalada pelo samba e pelo tropicalismo. Por isso, uma canção de protesto como “Senhas”, onde a cantora diz “Eu não gosto do bom gosto/Eu não gosto de bom senso/Eu não gosto dos bons modos”, dá a ver, justamente, uma crítica contra conservadorismos estéticos.
No álbum Só, por exemplo, Calcanhotto compõe e canta um funk em parceria com Dennis DJ, o que foi entendido por alguns críticos como uma forma de branqueamento do funk brasileiro (Tenório, 2022). Ao passo que essa crítica unilateral perde de vista as características do amplo cancioneiro da cantora que coloca em diálogo gêneros e formatos conflituosos, outro exemplo dessas combinações dissonantes é a reinvenção da canção “Music”, de Madonna. Extraindo do complexo arranjo da canção original apenas um único acorde, quando canta a canção de Madonna, Calcanhotto praticamente recita os versos originais da canção e acentua propositalmente o som das vogais e consoantes do português brasileiro.
Além de beber de referências literárias e modernistas, bem como da cultura pop, do movimento antropofágico e da Tropicália, Daniela Andrade Aragão (2015) lembra que a performance da voz e do corpo de Calcanhotto tende a ser, na maior parte das vezes, de referência bossanovista. Trata-se de uma emissão vocal marcada por um canto afastado de malabarismos vocais, vibratos e outros recursos que podem exceder a ordem da canção, a exemplo do virtuosismo musical da cantora Elis Regina. Contudo, embora o minimalismo vocal de Calcanhotto a aproxima da tradição de cantoras intimistas, do banquinho e violão, a exemplo de Nara Leão, esse mesmo minimalismo bossa novista é fraturado pela presença cênica do seu corpo: “uma inflexão de ombro, um desvio de cabeça, um sorriso irônico” (Aragão, 2015, p.7). Na verdade, Adriana Calcanhotto também tensiona a herança cênica minimalista da Bossa nova ao fazer uso tanto de figurinos elaborados quanto pelo constante uso de adereços no palco, como se estivéssemos, então, acompanhando uma instalação de arte em uma galeria, a exibição de um videoarte ou uma cena de novela.
3. Canção de novela
Sobre “Canção de novela”, música que integra o álbum Olhos de onda (2014), o comentário de Rafael Barbosa Julião (2022) traduz bem a impressão que mantive a respeito desta canção nas inúmeras vezes em que a escutei: a impressão de que estamos, nas palavras do pesquisador, “diante de um apartamento capturado em quadros que é o cerne de uma disjunção amorosa instalada no agora” (Julião, 2022, p. 155) e que as estrofes, prossegue Julião, “compõem-se de termos sequenciados que vão recuperando o todo pelos fragmentos (Julião, 2022, p. 155):
Toalha molhada
Lâmpada acesa
Cidade parada
Tudo é você
Vento na saia
TV ligada
Espelho d'água
Tudo é você
Sol na janela
Canção de novela
Já passa da hora
E eu preciso
Do seu beijo agora
A luz na cozinha
Toda azulejada
Madrugada afora
Tudo é você
Nuvem de chuva
Guitarra plugada
Noite estrelada
Onda que quebra
[...]
Da mesma forma como revisita Julião (2022), ouvimos (e vemos) fragmentos de uma paisagem íntima, um apartamento e seus objetos (“toalha molhada”, “lâmpada acesa”, “TV ligada”, “a luz na cozinha, “toda azulejada”, “guitarra plugada”), até construir paisagens urbanas e naturais como (“cidade parada”, “nuvem de chuva”, “a noite estrelada”, “onda que quebra”). No entanto, a presença da televisão no seio da canção parece se referir tanto àquilo que está fora do apartamento quanto àquilo que ocorre ali dentro, na medida em que o objeto se confunde com seu sinônimo metafórico de “espelho d’água”: disjunções amorosas na ficção televisiva e disjunção amorosa no presente do eu-lírico que encara seu próprio reflexo na TV.
Canção de novela enuncia, em seus próprios versos, a fratura dos relacionamentos romântico-amorosos que o cancioneiro de Calcanhotto acompanhou como trilha sonora de inúmeras telenovelas, sobretudo nos folhetins televisivos da Rede Globo de Televisão dos quais fez parte desde o início da década de 1990. Embora as inspirações antropofágicas e tropicalistas, ou mesmo a constante intertextualidade de suas canções com a cultura cinematográfica, literária e das artes plásticas, confiram ao cancioneiro de Calcanhotto uma palheta erudita, muitas dessas mesmas canções são dotadas de um intenso apelo romântico que as tornaram grandes sucessos comerciais após se tornarem trilha sonora de telenovelas.
Nesse sentido, se meu argumento neste ensaio gira em torno de um cancioneiro cosmopolita, é porque ele não diz respeito somente às constantes referências de paisagens e deslocamentos geográficos transnacionais, nem mesmo unicamente ao gesto sonoro e visual de olhar o Brasil “de dentro para fora”, tal como sugeriram os manifestos modernistas. O cosmopolitismo se trata, também, de uma forte capacidade dessas canções em dialogar com públicos diversos, incluindo o amplo público de consumidores de novelas exibidas na televisão aberta, o qual, durante a segunda metade do século XX e início do século XXI, foi constituído exponencialmente por espectadores inseridos nas classes trabalhadoras, média e baixa, da população brasileira.
A utilização da música em produtos audiovisuais, especificamente na televisão brasileira, suplantou a presença de outros formatos de inserção musical na grade da televisão aberta, a exemplo de clássicos programas de auditórios como O fino da Bossa ou a exibição de festivais como o Festival da Canção brasileira. Do mesmo modo, a música como trilha sonora teve sobrevida à exibição de videoclipes em canais pagos como a antiga MTV brasileira pois, segundo Beatriz Faria (2018), sobretudo a partir dos anos 1970, a música passou a integrar o contexto das dramaturgias televisivas como um recurso cênico e dramático indispensável. Segundo a autora, compreendeu-se que a trilha sonora enriquece a narrativa e ajuda a manter um vínculo de identificação entre personagens e telespectadores, além de divulgar o intérprete das canções presentes na trilha sonora, alavancando a carreira de artistas nacionais ou mesmo tornando artistas internacionais conhecidos em território nacional. Ao reconhecer, também, que o som possui faculdades distintas da imagem e do texto falado, a inserção de músicas como trilhas sonoras das telenovelas brasileiras ganhou, em seus próprios termos, uma “dramaturgia sonora” (Righini, 2004) que, além de contribuir para o desenvolvimento narrativo do produto, criou e amplificou um mercado de venda de discos de trilhas sonoras de telenovelas, tanto em versão nacional quanto internacional.
Laços de Família (Manuel Carlos, 2000-2001), teve uma trilha sonora diversificada por nomes como Daniela Mercury, Lara Fabian, Deborah Blando, Skank, Cássia Eller, Hanson, Toni Braxton, Faith Hill e Adriana Calcanhotto. Desta, a canção “Devolva-me” foi utilizada como tema da personagem Clara (Regiane Alves), que acabou sendo traída pelo marido Fred (Luigi Baricelli), quando este se envolveu com outra mulher, a garota de programa Capitu (Giovanna Antonelli). “Devolva-me”, composição de Renato Cosme Vieira Barros e Silvia Lilian Barrie Knapps, figura no cancioneiro da cantora como um estandarte da cultura popular e midiática, na medida em que a canção tristonha com arranjo minimalista do violão repete, em suas seis estrofes, os mesmos versos de uma relação amorosa fracassada:
Rasgue as minhas cartas
E não me procure mais
Assim será melhor, meu bem
O retrato que eu te dei
Se ainda tens, não sei
Mas se tiver, devolva-me
Deixe-me sozinho
Porque assim eu viverei em paz
Quero que sejas bem feliz
Junto do seu novo rapaz
O retrato que eu te dei
Se ainda tens não sei
Mas se tiver, devolva-me
[...]
A canção dialoga, diretamente, com um imaginário do sofrimento romântico e amoroso consolidado pela cultura popular e midiática. Logo, ao falar da grande popularidade que as canções de Adriana ganharam ao se tornarem trilha de telenovelas, não se pode perder de vista que essa popularidade se deve, também, pelo imaginário romântico tanto enquanto fonte nascente das próprias canções, como também pelo fato de encontrarem junto ao público um receptáculo afetivo e cognitivo já preparado para amplificá-las.
À época do lançamento de seu primeiro álbum (Enguiço, 1990), Adriana Calcanhotto fazia sua estreia nas novelas da Rede Globo de Televisão, onde integrou a trilha sonora da novela Rainha da Sucata. “Naquela Estação”, composição de Caetano Veloso, foi utilizada como música-tema de Mariana, personagem romântica e intimista interpretada por Renata Sorrah, a qual, tal como na canção interpretada por Calcanhotto, dá adeus a mais uma idealização amorosa. Já em 1993, a música “Mentiras”, composição de Calcanhotto, integrou a trilha sonora da novela Renascer, do autor Benedito Ruy Barbosa. A canção foi tema da mocinha/protagonista Mariana, personagem inicialmente vingativa e depois apaixonada, interpretada pela atriz Adriana Esteves.
Em 1994, “Metade” foi utilizada como trilha sonora na novela Quatro por Quatro. A canção foi tema para o romance dos protagonistas da história, Raí e Babalu, interpretados por Marcello Novaes e Letícia Spilller. Em 1999, Adriana Calcanhotto emprestou “Mais Feliz” para servir como música-tema da personagem Maria Regina (Letícia Spiller), a vilã de Suave Veneno, escrita por Aguinaldo Silva. Já nos anos 2000, além da novela Laços de Família, Calcanhotto permitiu que “Mulher Sem Razão” integrasse a trilha sonora da novela A Favorita (2008), escrita por João Emanuel Carneiro. A canção foi música-tema dos protagonistas Donatella e Zé Bob, interpretados pelos atores Cláudia Raia e Carmo Dalla Vecchia.
Tanto essas canções românticas de Calcanhotto quanto a presença melodramática das histórias de amor em telenovelas já contam com uma gramática amorosa secular, desde as peças literárias e teatrais do fim do século XVII até a poesia romântica do século XIX, gramática esta que também foi incorporada aos modelos de relacionamentos das conservadoras classes médias europeias e americanas do século XIX com o propósito de se distinguir moralmente das “promiscuidade sexual” das classes aristocratas e do “sexo animalesco” das classes baixas (Katz, 1996). Parte desse ideal de amor puro e romântico, antes restrito à literatura, à ópera e às peças teatrais, foi, ao longo do século XX, incorporado pela cultura popular-midiática e pela indústria cultural, desde filmes voltados ao público infantil até os filmes adultos hollywoodianos.
De acordo com Irving Singer (2009), a história estética e cultural do amor como sentimento romântico é fruto de um complexo encadeamento de diferentes roteiros e saberes, ora com ênfase na castidade até o casamento, ora com ênfase no prazer erótico como realização máxima da consumação amorosa a despeito de qualquer mecanismo de controle. E se durante muito tempo o amor em sua faceta romântica foi vastamente associado aos relacionamentos heterossexuais, inclusive atravessado por elementos sociais e estéticos dramatizados como raça e classe, contemporaneamente o amor romântico ganhou vasto espaço em narrativas convencionais sobre relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo. A respeito desse último ponto, a emblemática “Vambora”, composta por Calcanhotto, integrou a trilha sonora nacional da novela Torre de Babel (Sílvio de Abreu, 1998). A música foi tema do casal de lésbicas Leila e Rafaela, duas personagens que incorporaram o arquétipo “lesbian chic”, brancas, femininas e de classe média alta, vividas respectivamente pelas atrizes Silvia Pfeiffer e Christiane Torloni. As personagens fizeram parte apenas dos primeiros 45 episódios da trama, pois houve forte rejeição da opinião pública contra um “explícito” casal de mulheres. Fernanda Nascimento (2015) lembra que a campanha de rejeição contra as personagens foi feita inicialmente por igrejas e escolas particulares da cidade de São Paulo. Porém, tendo em vista a amplitude que a campanha ganhou, o casal acabou sendo retirado da novela por meio de um recurso dramático drástico: morreram juntas na explosão de um shopping center.
Apesar dessa morte simbólica das personagens, o que também resultou na retirada da canção da trilha sonora nacional, “Vambora” tornou-se um dos maiores sucessos radiofônicos de Calcanhotto na década de 1990. Em outras palavras, “Vambora” tornou-se uma dessas canções pop melancólicas e açucaradas que possuem a capacidade de encapsular uma época, uma atmosfera, uma memória nostálgica, um sentimento amoroso cantado em um karaokê. Em caso mais particular, a canção ainda hoje é associada à imagem da “sapatão emocionada”, alegoria manipulada nas redes sociais para se referir ao arrebatamento amoroso entre casais de mulheres lésbicas e/ou de sapatonas. E, de fato, os versos de “Vambora” traduzem com facilidade esse intenso arroubo amoroso: “Entre por essa porta agora/ E diga que me adora/ Você tem meia hora/ Pra mudar a minha vida”. Na segunda estrofe, a canção evoca materialidades visuais e olfativas em versos como “Ainda tem o seu perfume pela casa/ Ainda tem você na sala/ Porque meu coração dispara/ Quando tem o seu cheiro/ Dentro de um livro”.
Com referências à literatura de Manuel Bandeira e Ferreira Gullar em versos como “Nas cinzas das horas” e “Dentro da noite veloz”, a canção possui sete estrofes com versos insistentemente repetidos pelo eu-lírico, como um pedido ou uma súplica amorosa. Fazendo jus a letra, no videoclipe da canção, Calcanhotto se encontra solitária em uma casa tingida de cores “quentes e inflamadas”, um ambiente à meia luz, do qual saltam objetos como estantes de livros, violão e abajures. Na ausência do objeto amoroso, Calcanhotto ora canta para as paredes, canta para o nada e para tudo, ora canta encarando o espectador enquanto entoa sua súplica a despeito do tempo que queima seus amores e os transforma em cinzas.
Ao mesmo tempo em que a canção se insere e atualiza a tradição de uma sensibilidade estética e social como a do amor romântico, vendida à exaustão pela indústria cultural do século XX ou mesmo explorada em toda a sua dor lancinante pela poesia romântica do século XIX, canções como “Vambora” contribui para caracterizar o trabalho da cantora como uma sonoridade orbicular, isto é, capaz de circular por sensibilidades românticas tradicionais e circular pela experiência estética de grupos minoritários antes excluídos dessa iconografia amorosa, uma vez que o cancioneiro de Calcanhotto interpela, sobretudo, “a dor de cotovelo” enquanto uma experiência afetiva que independe de orientação sexual ou identidade de gênero. Assim, seja para heterossexuais, bissexuais ou gays, o cancioneiro de Calcanhotto pode simplesmente orientar a abraçar esse sabor melancólico: se o amor romântico não sobrevive enquanto paradigma realizável de relação amorosa, há em seu cancioneiro um sem-fim de poesia para mantê-lo vivo ao menos enquanto experiência estética.
Adriana Calcanhotto ainda teve, já nos anos 2000, outra música utilizada como canção-tema de uma personagem que, se não explicitamente lésbica ou bissexual, abriu margem para questionamentos da sua sexualidade. Trata-se da personagem Letícia, interpretada pela atriz Paola Oliveira, na novela Ciranda de Pedra (2008), livremente inspirada no romance homônimo de Lygia Fagundes Telles. No livro da escritora, lançado pela primeira vez em 1954, a personagem Letícia era, de fato, lésbica. No entanto, ao passo que no livro a sexualidade de Letícia é importante, especialmente para a narradora Virginia repensar a visão que possui de sua própria família, a novela dirigida por Denise Saraceni tornou, inicialmente, a outrora personagem lésbica em uma tenista “aparentemente heterossexual” que vive um romance cheio de idas e vindas com um homem. A novela também suavizou a narrativa densa do livro de Telles para uma atmosfera adaptada para o horário das 18h, além de eliminar outro tema delicado para os espectadores brasileiros, como a eutanásia, que fazia parte da narrativa original.
A música-tema de Letícia foi “Três”, de autoria da cantora Marina Lima e do poeta Antônio Cícero, a qual já foi gravada pela própria Marina Lima e por Ana Carolina, duas cantoras amplamente associadas à sensibilidade sáfica e/ou bissexual na música brasileira. Na novela, é Adriana Calcanhotto que dá voz a canção que entoa versos como “Eu quero tudo que há/ O mundo e seu amor/Não quero ter que optar/Quero poder partir/Quero poder ficar/Poder fantasiar/Sem nexo e em qualquer lugar/Com seu sexo junto ao mar”. É com essa canção libertária e libidinosa que algo “inesperado” acontece no último capítulo da novela: Letícia parte para o exterior acompanhada de Joyce, sua “treinadora”, uma personagem interpretada pela atriz Ana Furtado que adentrou na narrativa apenas nos últimos capítulos da telenovela. Já no aeroporto, o olhar fixo entre as duas personagens, acompanhado do diálogo abaixo, deixa entrever uma sutil eletricidade homoerótica correr nas entrelinhas:
Joyce: “Desculpem, peguei um congestionamento. O trânsito estava parado.”
Letícia: “Pensei que tivesse desistido. Estava pensando até em arrumar outra treinadora.”
Joyce: “Humm, sei, até parece que você vai arrumar outra treinadora”.
Os personagens que circundam as duas mulheres, especialmente Elzinha (interpretada pela atriz Leandra Leal), percebem o que está acontecendo entre Letícia e Joyce. Em seguida, Joyce beija a mão de Letícia e as duas seguem em direção ao portão de embarque de mãos dadas. Apesar da timidez retardatária com que a relação de ambas é mostrada, não deixa de ser interessante como a voz nômade de Calcanhotto é utilizada como canção-tema de uma “personagem queer” que decide partir, se deslocar ou se exilar em terras estrangeiras para viver a sua sexualidade. Pois, entre tantos outros aspectos que podem distinguir o trabalho de Calcanhotto de outras cantoras e compositoras associadas às culturas lésbicas e bissexuais, está o fato de que suas canções possuem a especial particularidade de muitas vezes apontar para o constante trânsito do próprio eu-lírico apaixonado.
Não tenho lembrança da canção “Devolva-me” como trilha sonora da novela Laços de família, exibida pela primeira vez entre junho de 2000 e fevereiro de 2001. Em função da minha idade, na época eu era uma criança de 9 anos, eu não costumava ficar acordado até tarde para assistir à novela. Ainda assim, a canção me parece que esteve sempre ali, de maneira onipresente. Foi só na adolescência que prestei maior atenção em sua letra e melodia. E isso aconteceu porque, sendo eu um adolescente gay já ciente da minha sexualidade, interpretei, sem sombra de dúvida, que aquela canção onipresente abordava uma disjunção amorosa entre rapazes.
Na época, para mim, era evidente que o eu-lírico da canção, aquele que diz ao outro “deixe-me sozinho” e “quero que seja bem feliz junto do seu novo rapaz”, falava de um momento em que ele fora deixado para trás pelo amante que se apaixonara por um “novo rapaz”. A minha interpretação “enviesada”, ou mesmo “enviadada”, encontra justificativa na existência desses três sujeitos/personagens e no emprego dos artigos masculinos para se referirem a eles: o primeiro personagem trata-se do eu-lírico, o rapaz que a contragosto diz “deixe-me sozinho”; o segundo personagem é o “o novo rapaz”, aquele que passa a ser o objeto amoroso do terceiro personagem subjacente da canção. Em minha interpretação, esse terceiro elemento subjacente é o rapaz que abandona o primeiro ao se apaixonar pelo segundo. É a quem o rapaz eu-lírico endereça a canção:
Deixe-me sozinho
Porque assim eu viverei em paz
Quero que sejas bem feliz
Junto do seu novo rapaz
Na verdade, eu não havia me dado conta que a canção é aberta no que diz respeito ao gênero do terceiro sujeito/personagem. Este poderia, também, ser uma mulher que abandonou o rapaz eu-lírico da canção ao se apaixonar por outro rapaz. Porém, quando fui me dar conta disso, já era tarde demais. A canção já era minha. E como disse, o fato dessa canção ter sido utilizada como música-tema de um triângulo heterossexual na novela de Manuel Carlos não teve nenhum efeito sobre minha recepção da música. Nem mesmo a voz feminina de Calcanhotto quebrou a ansiedade homoerótica da minha adolescência que me fez identificar, nessa música, uma clara disjunção amorosa entre três rapazes.
Porém, é fato que a cantora atualizou uma iconografia homoerótica na Música Popular Brasileira mais associada à homossexualidade feminina e menos associada à homossexualidade masculina, inclusive compartilhando, queira a própria cantora ou não, das alegorias da “lésbica emocionada”, da “lesbian cult” ou da sapatão que canta com seu banquinho e violão em um bar qualquer. Nesse sentido, Calcanhotto reescreve, junto à outras cantoras lésbicas e bissexuais brasileiras, uma atitude bossanovista que, se anteriormente foi associada à masculinidade remansada de João Gilberto ou da feminilidade de musa de Nara Leão, agora é popularmente associada a cantoras lésbicas da MPB. Do mesmo modo, Calcanhotto contribui, a exemplo de Angela Ro Ro, para fraturar uma linha imaginária e antiga que demarcava que os homens compõem enquanto as mulheres interpretam. Adriana Calcanhotto faz os dois, na medida em que projeta a imagem da lésbica que transita, viaja, ergue paisagens visuais e recontextualiza distintas referências melódicas, outro campo também carregado de simbologia heterossexual masculina.
Para Rodrigo Faour (2006), a música popular no Brasil é vivamente lésbica, ainda que uma historiografia oficial não reconheça a forte presença dessa sensibilidade sáfica no cancioneiro nacional. Segundo o autor, desde o final da primeira metade do século XX, houve cantoras apontadas pela opinião pública como lésbicas, como Aracy de Almeida e Dora Lopes. No entanto, é com o desbunde de Maria Bethânia e Gal Costa, a partir dos anos 1960, que se firma a interpretação de mulheres lésbicas e bissexuais capazes de reinventarem o eu-lírico masculino heterossexual das composições na medida em que passam a cantar “trovas”, elogios ou confissões amorosas de uma mulher para outra mulher. De tal modo que, como recordam Karlla Trindade e Elisa Nóbrega, em breve ensaio de 2008, no ano de 1969 Maria Bethânia já cantava versos que abordavam o preconceito contra sexualidades não normativas em versos como “Por que você me olha com esses olhos de loucura? / Por que você diz meu nome? / Por que você me procura? / Se as nossas vidas juntas vão ter sempre um triste fim/ Se existe um preconceito muito forte separando você de mim” (“Preconceito”, composição de Antônio Maria e Fernando Lobo).
Há muitas outras canções de Bethânia associadas ao imaginário erótico lésbico, a exemplo de “Mel”, “A falta que você me faz”, “Eu não sei quase nada do mar”, “Minha namorada”, entre outras. Já Gal Costa, musa tropicalista, fratura o eu-lírico masculino em canções como “Índia” (1973) e “Tigresa” (1977). Na primeira, inicialmente composta por Samuel Peter Mccarthy e Jordan Eugene, Gal toma a música para si e se transforma na mulher cheia de desejo: “Índia da pele morena sua boca pequena eu quero beijar”. No caso da segunda, essa composta por Caetano Veloso, Gal faz o mesmo em emissão cristalina e sensual: “Uma tigresa de unhas negras e íris cor de mel/Uma mulher/Uma beleza que me aconteceu/Esfregando a pele de ouro marrom/Do seu corpo contra o meu/Me falou que o mal é bom e o bem cruel”. No entanto, ainda de acordo com Karlla Trindade e Elisa Nóbrega
Gal Costa e Maria Bethânia não ousaram apenas quando fizeram de músicas reconhecidamente masculinas uma nova arte de falar sobre o amor, ousaram também na nudez de seus corpos, na forma como eles interagiam nos palcos, causando furor na cena cultural carioca. Um dos registros dessa bela parceria é na música “Esotérico”, do compositor e amigo Gilberto Gil, quando ao cantarem “não adianta nem me abandonar”, com roupas diáfanas, se aproximam, e sem desgrudar os olhos, fazem “amor” no palco – como anunciou a imprensa de época (Nóbrega, Trindade, 2008, p. 2).
Em “Tudo em volta está deserto: encontros com a literatura e a música no tempo da ditadura (2017), Eduardo Jardim lembra que shows emblemáticos de Gal Costa, como o de “FA-TAL - Gal a todo vapor”, era lotado por gays e lésbicas -, e que algumas dessas mulheres lésbicas presentes na plateia costumavam se masturbar diante de uma Gal ora sexy e enérgica, ora melancólica e obscura. Na década de 1980, essa “tradição” de cantoras lésbicas e bissexuais se atualiza já em um contexto muito mais amplificado na cultura de massa, década em que não apenas Gal Costa alcança o ápice de visibilidade comercial, mas também onde outras cantoras como Marina Lima e Angela Ro Ro se firmam no cenário cultural e atualizam de modo explícito a presença sáfica na música popular com composições próprias. Exemplo disso são as letras irônicas e galhofas da moderna e descolada Marina Lima, que na letra de “Difícil”, canta: “Ela é bela/ Por que não comê-la? /Sexo é bom!
Para Rodrigo Faour (2006), a década de 1980 e 1990 viu emergir, na cena musical, um incisivo aparecimento de cantoras e compositoras lésbicas e/ou bissexuais que o autor chama de “emergência das entendidas”. Essa emersão contava com a abertura democrática do país e com a ampliação da cultura de massa no Brasil, o que em parte teria encorajado essas cantoras a falarem mais abertamente dos desejos lésbicos e bissexuais. Concomitante a esse cenário, também é necessário apontar para um fortalecimento contingente dos movimentos sociais organizados em torno de uma gramática dos direitos civis de pessoas LGBT no contexto de uma democracia sexuada e generificada, apesar da fantasmagoria da AIDS. Foi nesse contexto que cantoras como Ana Carolina, Isabella Taviani, Mart'nália, Zélia Duncan, Cássia Eller e Adriana Calcanhotto apresentaram seus primeiros trabalhos, no início da década de 1990, ao passo que também contribuiu para a manutenção do trabalho de veteranas como Leci Brandão, Simone, Marina Lima, Angela Ro Ro, Gal e Bethânia.
Há que se destacar, também, que essas “cantoras entendidas” ou “cantoras sapatonas” que iniciaram carreira na década de 1990 e início dos anos 2000 ainda puderam contar com uma produção musical associada ao advento da internet, com a criação de um mercado de consumo artístico e cultural específico para a comunidades LGBT+ e a ascensão, não sem problemas e desafios, de personagens LGBT+ em novelas, séries televisivas e filmes mainstream, o que tornou os nomes dessas cantoras e compositoras
Os mais citados nas redes de sociabilidade lésbica, seja nos espaços físicos de interação, nas redes sociais, nos sites e blogs sobre cultura lésbica, nas páginas de fãs, entre outros. Também são as cantoras que mais fazem sucesso entre uma geração, incluindo homossexuais e heterossexuais, que acompanhou e vivenciou as mudanças ocorridas no país dos anos 90 em diante” (Procópio, Muller, Lago, 2018, p.25).
No entanto, e como afirmei inicialmente, os aspectos que podem distinguir o trabalho de Calcanhotto dessas outras cantoras e compositoras sáficas e/ou entendidas que surgiram entre a década de 1980 e 1990, para além de um trabalho muito consciente que dialoga com variadas tradições estéticas e linguagens artísticas, é o fato de que suas canções apontam constantemente para o trânsito do eu-lírico, ora em movimento e criando paisagens visuais, ora mirando o desejo amoroso que se afasta e se mistura à outras paisagens longínquas. Em “Depois de ter você” (1998), composta inicialmente para Maria Bethânia, é preciso concordar com a análise de Yago Rodrigues Alvim (2019), que percebe que Calcanhotto reescreve a paisagem inicialmente elaborada por Tom Jobim. Os versos “depois de ter você/ poetas para quê? / os deuses, as dúvidas/ para que amendoeiras pelas ruas? / para que servem as ruas?”, de Calcanhotto, encontram parentesco no processo de desorganização subjetiva da paisagem engendrada por Jobim na letra de “Inútil paisagem”: “mas pra quê? pra que tanto céu? pra que tanto mar? pra quê? / pra que serve esta onda que quebra? e o vento da tarde? de que serve a tarde?”
Se “Depois de ter você” engendra um arroubo amoroso em que o eu-lírico da canção questiona o sentido da paisagem na medida em que a essência da vida se instala na amada, quando esta canção torna-se um dueto entre Maria Bethânia e Adriana Calcanhotto, as especulações sobre a sexualidade de ambas as cantoras são momentaneamente encerradas por uma forte confirmação estética homoerótica, em que uma pergunta para a outra: “Depois de ter você/Pra que querer saber/Que horas são?” A intensidade amorosa torna-se ainda mais elevada tanto na letra da canção quanto nos olhares trocados entre as artistas. Em seguida, o flerte é selado com um beijo entre as duas cantoras diante de um público que vibra, gesto semelhante àquele que Maria Bethânia fazia com Gal Costa nos idos dos anos 1960 e 1970.
Calcanhotto dedicou seu primeiro álbum para Maria Bethânia e chegou a compor outras canções para a irmã de Caetano Veloso, a exemplo da canção “Âmbar”. Para escrever essa faixa, Calcanhotto conta6 que buscava inspiração enquanto dirigia pelas ruas do Rio de Janeiro, o que legou à canção uma forma de composição visual ou uma atmosfera de quem olha e conhece a geografia da cidade à sua volta:
Tá tudo aceso em mim
Tá tudo assim tão claro
Tá tudo brilhando em mim
Tudo ligado
Como se eu fosse um morro iluminado
Por um âmbar elétrico que vazasse nos prédios
E banhasse a lagoa até São Conrado
E ganhasse as canoas aqui do outro lado
Tudo plugado, tudo me ardendo
Tá tudo assim queimando em mim
Como salva de fogos
Desde que sim eu vim
Morar nos seus olhos
Já em “Inverno”, outra composição de Calcanhotto com o poeta Antônio Cícero, o eu-lírico da canção vê um avião se espelhar no seu olhar e, em seguida, confessa: “Caminho ao longo do canal/ Faço longas cartas pra ninguém/ E o inverno no Leblon é quase glacial”. Aqui, o frio glacial existencial em contraste com o imaginário do Leblon, ensolarado bairro da Zona Sul carioca, encontra eco nas paisagens que uma Ângela Ro Ro abandonada constrói em “Mares da Espanha”: “Nem que eu caminhasse às três da manhã/ Nem que eu me enganasse pra ver o que é bom/ Nem que eu caminhasse até o Leblon/ Não iria encontrar/ Você navegando os mares da Espanha/ Tecendo pra outra seu corpo com manha/ Você navegando o vazio da Espanha/ E eu no Leblon”.
Porém, na canção “Seu Pensamento”, Calcanhotto desfaz parcialmente as paisagens midiáticas da Zona Sul Carioca para buscar a atenção da mulher que ama, quando o pensamento desta parece vagar por terras europeias e africanas: A uma hora dessas/Por onde andará seu pensamento/ Dará voltas na Terra/Ou no estacionamento? /Onde longe/Londres, Lisboa/Ou na minha cama? [...] A uma hora dessas/Por onde passará seu pensamento/Por dentro da minha saia/Ou pelo firmamento? /Onde longe/ Leme, Luanda/Ou na minha cama?”
Se em “Seu pensamento” a eu-lírico do poema/canção deseja reter o pensamento de quem ama voltado para si, no caso da letra de “Margem”, Calcanhotto coloca-se novamente em movimento por meio da viagem e, no caminho, parece se desfazer de seu “nome”, seu “reino”, “senso”, “ego”, “credos”, à procura do beijo da mulher que ama”: Margem, sonhei com a viagem/Eu, menos meu nome/Menos meu reino/Menos meu senso/ Menos meu ego/Menos meus credos/Menos meu ermo/Querendo o teu beijo. “Margem”, em função desse sujeito que se desloca à procura da pessoa amada, encontra eco não apenas em “Caminhoneiro”, citada anteriormente, mas também se aproxima de outra releitura do eu-lírico de Roberto Carlos e Erasmo Carlos feita na canção “Por isso eu corro demais”, onde Calcanhotto repete o clichê lírico: “Eu corro demais/Sofro demais/Só para te ver”.
Todo esse excessivo romantismo lírico é cantado, às vezes sussurrado, por meio de uma voz mansa e doce, longe dos histrionismos de muitas das canções pop açucaradas, especialmente as norte-americanas. Mesmo expressões agressivas como “Eu vou escrever no seu muro/E violentar o seu gosto” (Mentiras, 1992), ou versos pagãos e desmedidos como “Fura o dedo/Faz um pacto comigo (Mais Feliz, 1998), contém em si mesmo uma ameaça afável de quem, mesmo que prometa, não consegue “fechar a porta e não olhar mais para trás” (Pra lhe dizer, 2023).
5. Margem, finda a viagem
Propus aqui uma breve viagem pela obra de Adriana Calcanhotto. Uma viagem que, apesar de terminar, permanece inacabada na medida em que também prefere a margem, o intermédio o entrelugar. É como ver tudo “enquadrado” pela janela de um ônibus ou pela janela de um trem que passa às vezes rápido demais. Resta, e sempre restará, uma nova viagem, ou um novo périplo, para extrair mais cores dessas paisagens cosmopolitas que são construídas a partir da própria margem na qual Adriana Calcanhotto se movimenta.
Recibido 8 de julio de 2024, Aceptado 25 de noviembre de 2024
* Dieison Marconi es investigador integrado en el Instituto de Historia del Arte (IHA), de la Facultad de Ciencias Sociales y Humanas (FCSH), Universidad Nova de Lisboa (NOVA). Es Investigador asociado al Grupo de Estudios de Arte Contemporáneo, donde co-coordina la Línea de Investigación Photography and Film Studies. Es Doctor en Ciencias de la Comunicación y de la Información por el Programa de Posgrado en Comunicación de la Universidad Federal de Rio Grande do Sul (UFRGS). Email: dmpereira@fcsh.unl.pt
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1 Carta escrita à Adriana Calcanhotto e posteriormente publicada no livro Caio Fernando Abreu - Cartas, organizado por Ítalo Moriconi (2016).
2 Dip, P. Para sempre teu, Caio F. Cartas, memórias, conversas de Caio Fernando Abreu. Rio de Janeiro: Record, 2014.
3 Depoimento disponível em: www.adrianacalcanhotto.com.br, recuperado posteriormente pelo texto “Sonho o poema de uma arquitetura ideal: o lirismo nas composições de Adriana Calcanhotto, escrito por Daniela Aragão. In: revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano VII - número 24 - teresina - piauí - outubro de 2015]
4 “Adriana segue os passos de dores pessoais e coletivas na rede modernista do Show A Mulher do Pau-Brasil”: https://g1.globo.com/pop-arte/musica/blog/mauro-ferreira/post/2018/08/23/adriana-calcanhotto-segue-os-passos-de-dores-pessoais-e-coletivas-na-rede-modernista-do-show-a-mulher-do-pau-brasil.ghtml
5 Adriana Calcanhotto e poesia portuguesa: uma paixão escutada na rádio”, entrevista disponível em: https://expresso.pt/cultura/2017-05-04-Adriana-Calcanhotto-e-a-poesia-portuguesa--uma-paixao-escutada-na-radio
6 Adriana Calcanhotto - Minha Música - Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3bqD2I-KiX0
Revista Ensambles Primavera 2024, año 11, n.21, pp. 59-80
ISSN 2422-5541 [online] ISSN 2422-5444 [impresa]
Dieison Marconi
REVISTA ENSAMBLES AÑO 11 | Nº 21 | PRIMAVERA 2024 | artículos PP. 59-80 |