CÓMO CITAR ESTE ARTÍCULO: Bensadon, L. S. (2025). Enlaces entre cuidados e economia solidária: breve análise da assessoria a mulheres no setor da alimentação saudável, em Niterói/Brasil. Otra Economía, 18(33), 38-52.
Ligia Scarpa Bensadon
ligiasb@ufrrj.br
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ),
Niterói, Brasil
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6202-6033
Recibido: 10/09/2024 - Aceptado: 29/04/2025
Resumo: Este trabalho surge das reflexões junto das práticas de assessoria da Incubadora Tecnológica de Economia Solidária, sediada no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, do Rio de Janeiro, Campus Niterói (ITES - IFRJ - Niterói), no Brasil. Desde uma breve caracterização da ITES e do município de Niterói, descrevemos o apoio realizado junto a três empreendimentos de mulheres na área da alimentação saudável e articulamos a análise com referências no tema do cuidado, das leituras feministas e das críticas ao capitalismo. Para esta elaboração acessamos documentos e memórias internas da ITES, dados públicos online do município e realizamos estudos teóricos no campo da sociologia. Evidenciamos dilemas na articulação entre trabalho produtivo e reprodutivo, o que permitiu levantar lacunas, limites no trabalho sob a lógica de projetos, ao mesmo tempo que potencialidades da assessoria e da luta pela sobrevivência destas trabalhadoras. Assim, percebemos que a articulação da economia solidária com as lutas feministas e a atenção aos dramas vividos pelas mulheres deve ser um eixo de atuação de iniciativas de assessoria, na busca por sua transformação.
Palavras-chave: Mulheres, Cuidados, Assessoria
Resumen: Este trabajo surge de reflexiones sobre las prácticas de asesoría de la Incubadora Tecnológica de Economía Solidaria, con sede en el Instituto Federal de Educación, Ciencia y Tecnología de Río de Janeiro, Campus Niterói (ITES - IFRJ - Niterói), en Brasil. A partir de una breve caracterización del ITES y del municipio de Niterói, describimos el apoyo prestado a tres emprendimientos de mujeres en el área de alimentación saludable y vinculamos el análisis a referências sobre el tema del cuidado, lecturas feministas y críticas al capitalismo, destacando dilemas en la articulación entre trabajo productivo y reproductivo, lo que nos ha permitido identificar lagunas y límites en el trabajo bajo la lógica de proyectos, al mismo tiempo que el potencial de la asesoría y la lucha por la supervivencia de estas trabajadoras. Por ello, somos conscientes de que vincular la economía solidaria a las luchas feministas y prestar atención a las tragedias vividas por las mujeres debe ser un eje de acción para las iniciativas de asesoramiento, en su búsqueda de transformación.
Palabras clave: Mujeres, Cuidados, Asesoramiento
Abstract: This paper arises from reflections on the advisory practices of the Technological Incubator of Solidarity Economy, based at the Federal Institute of Education, Science and Technology of Rio de Janeiro, Campus Niterói (ITES - IFRJ - Niterói), in Brazil. From a brief characterization of ITES and the municipality of Niterói, we describe the support provided to three women’s enterprises in the area of healthy food and articulate the analysis with references on the theme of care, feminist readings and criticisms of capitalism, highlighting dilemmas in the articulation between productive and reproductive work, which allowed us to raise gaps, limits in working under the logic of projects, at the same time as the potential of advice and the struggle for survival of these workers. Thus, we realize that linking the solidarity economy with feminist struggles and paying attention to the dramas experienced by women must be an axis of action for advisory initiatives, in the search for their transformation.
Keywords: Women, Care, Consultancy
O presente artigo é fruto das reflexões desde uma experiência de assessoria realizada pela Incubadora Tecnológica de Economia Solidária do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, no Campus Niterói (ITES - IFRJ1 - Niterói) na imbricação entre trabalho e cuidados. Abre-se aqui uma relação que não foi objeto específico da atuação realizada pela ITES, mas nem por isso ausente nos casos relatados, que têm então potencialidade de articular teoria e prática desde a perspectiva dos cuidados, aprimorando também a atuação da própria ITES e de outras assessorias semelhantes.
Metodologicamente para este texto acessamos documentos da assessoria realizada (como relatórios, atas de reuniões e anotações); memórias internas, dado que a presente autora foi a coordenadora do referido projeto em análise; pesquisas em dados públicos online do município para uma breve caracterização do mesmo; e ainda, realizamos estudos teóricos no campo da sociologia que dialogam com a proposta de articular criticamente a experiência em análise, em especial nos estudos dos cuidados2 e da crítica ao capitalismo.
A ITES tem como objetivos fortalecer, apoiar e desenvolver iniciativas de economia solidária, tanto no âmbito econômico e produtivo, para geração de trabalho e renda de grupos e redes, quanto no âmbito social, político e cultural junto das iniciativas de trabalhadores/as em situação de vulnerabilidade social, colocando-se como uma entidade articuladora no território, desde atividades com extensão-pesquisa-ensino (Bensadon e Araldi, 2020). Este trabalho ocorre sob três princípios que são também metodologias de trabalho: a educação popular, a autogestão e as tecnologias sociais.
A educação popular é base central do trabalho da ITES, entendida como um processo de reconstrução do saber social necessário, como educação da comunidade, em um trabalho político permanente que busca a emancipação dos sujeitos, democratização e justiça social, fortalecendo o poder popular. Essa criação de novos saberes demanda também a luta contra as estruturas de opressão e se coloca a todo momento como ato pedagógico que necessita da experiência prática (Gadotti, 2009). Esta abordagem é oposta a reprodução e a transferência de conhecimentos, mas um processo de criação articulada a sujeitos e contextos.
A autogestão é outro pilar da ITES enquanto exercício constante da gestão participativa e do poder de forma horizontal, de forma que “participar das discussões e decisões do coletivo, ao qual se está associado, educa e conscientiza, tornando a pessoa mais realizada, autoconfiante e segura” (Singer, 2002: 21). Isso se opõe diretamente à maior parte das práticas de gestão tradicionais e verticais, entre aqueles que mandam e que obedecem. Essa mudança de paradigma, com a necessidade de envolvimento e responsabilização, não se faz imediatamente, mas passa por um processo pedagógico, o que resulta na economia solidária como práxis pedagógica (Gadotti, 2009). Esse processo contínuo, então, educa todo o coletivo envolvido nas experiências da ITES, estudantes, professoras e trabalhadoras.
Ainda, as tecnologias sociais também são outro tema estruturante da ITES, partindo da perspectiva crítica sobre a construção social das tecnologias, desenvolvendo a base material e cognitiva de uma sociedade mais justa, solidária, democrática e ambientalmente sustentável (Dias, 2013). O desafio que se coloca é desenvolver produtos, técnicas e/ou metodologias reaplicáveis, desenvolvidas na interação com a comunidade e que representem efetivas soluções de transformação social, que atendam aos quesitos de simplicidade, baixo custo, fácil aplicabilidade e impacto social comprovado.
Nessa trajetória iniciada no final de 2018, a ITES já promoveu e apoiou práticas de economia solidária, bem como cursos e formações dentro e fora do campus em temas diversos. Também desenvolve assessoria junto ao Grupo de Trabalho de Formação do Fórum Municipal de Economia Solidária (FMES) de Niterói e integra o Conselho Municipal de Economia Solidária de Niterói, enquanto entidade de apoio e fomento, procurando fortalecer o movimento social de economia solidária no território. De forma mais recente, a ITES também integra articulações e espaços políticos no âmbito nacional, a saber: a Rede Universitária de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (Rede de ITCPs), representando-a no Conselho Nacional de Economia Solidária (CNES), e ainda, atua na rede formada no âmbito dos Institutos Federais, a Rede IF Ecosol.
Em específico, o FMES reúne trabalhadores, trabalhadoras, assessorias e gestores públicos que atuam com economia solidária na cidade, articulando práticas e políticas por uma outra proposta de sociedade, calcada na justiça, na coletividade e na sustentabilidade. O Fórum é protagonizado por mulheres, sendo um exemplo de resistência em termos do trânsito da esfera do social para o político e econômico, inserindo as mulheres como sujeitos políticos, como abertura a uma desalienação possível (Ávila, 2004).
O FMES têm articulado centenas de pessoas, movimentando milhares de reais a cada ano, cuja pressão e organização coletiva obteve, em 2020, a aprovação da Política Municipal de Economia Solidária (lei 3473/2020) e, em 2021, a constituição de uma Secretaria de Assistência Social e Economia Solidária, que vem implementando uma série de políticas públicas no município. Dentre elas, a política de redistribuição de renda por meio da moeda social Araribóia3, iniciada no período da pandemia covid-19.
A atuação do Fórum e as dinâmicas de economia solidária são fundamentais em um município marcado por desigualdades e segregações. Niterói integra a Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ) e, de um lado, detém o maior índice de desenvolvimento humano municipal (IDHM/2010), uma das maiores rendas médias mensais do Estado e uma elevada proporção de pessoas ocupadas em relação à população total do município. De outro lado, mais de 30% da população local vive com algum benefício social, a exemplo da moeda social municipal Araribóia, é o município com a maior proporção de carros por habitante do estado4 e 37% da população reside em assentamentos precários e informais (Prefeitura Municipal de Niterói, 2022). Com relação a RMRJ, Niterói é o sétimo5 município com a menor cobertura de atenção básica do Sistema Único de Saúde (SUS), o que espelha a concentração de renda e a grande presença de estabelecimentos de saúde privados na cidade, e ainda, detém uma grande desigualdade racial, a exemplo de ter a maior diferença de idade média ao morrer entre brancos e negros da RMRJ, chegando a 12 anos (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2023; Associação Casa Fluminense, 2023; Betim, 2020).
É então nestes quase seis anos de atuação da ITES, de 2018 a 2024, integrando estudantes, ex-estudantes e servidoras que tecemos uma breve reflexão sobre um trabalho de assessoria realizado. Destacamos de forma preliminar o protagonismo tanto de mulheres assessoras na ITES, quanto do público externo atendido. Para a presente reflexão recortamos6 algumas situações que estabelecem conexões entre o trabalho de assessoria com os estudos dos cuidados e das críticas ao capitalismo, analisando seus desdobramentos e limites. Assim, este texto se organiza do seguinte modo, além desta introdução, partimos da contextualização do momento de realização do trabalho da ITES, durante o isolamento social na pandemia da covid-19, seguimos pela apresentação da experiência realizada, tecendo reflexões desta caminhada em conjunto com a literatura crítica feminista e dos cuidados e, por fim, lançamos algumas reflexões finais desde os aprendizados deste caso.
Corroboramos com Fraser (2020) diante da constatação de uma crise do cuidado que reflete uma crise econômica, ecológica e política, as quais se entrecruzam e se exacerbam mutuamente. Isso gera, entre outros, resistências e a busca por soluções de sobrevivência, como as expressões de economia solidária, submetidas sob várias formas ao modelo explorador e expropriador do capitalismo. É na economia solidária que uma ampla gama de mulheres busca encontrar espaço para seus afazeres domésticos, de cuidados e a geração de renda, sem que isso signifique equilíbrio, mas na maior parte dos casos sobrecarga e precarização, diante de uma cultura que delega, prioritariamente às mulheres, as tarefas de limpar, alimentar e cuidar, na sustentação das dinâmicas da sociedade capitalista.
Isso porque as mulheres ingressam no mercado de trabalho em condições mais desvantajosas que os homens, ocupando posições e profissões mais precarizadas e recebendo remunerações menores, em média 70% da masculina, a exemplo da sua maior ocupação no serviço doméstico remunerado, setor que menos contribui para a previdência oficial no país (Sorj, 2013). Além disso, as mulheres têm seis vezes menos chance de ingressar no mercado de trabalho em comparação aos homens, sendo um aspecto de desigualdade estruturante (Macedo e Pinheiro, 2022). Tal situação generalizada se explica, por exemplo, pela sobrecarga com a maternidade, que fragiliza a posição da mulher no mercado de trabalho, de forma que as soluções privadas nos conflitos entre trabalho e família refletem e reproduzem as diferenças e desigualdades de gênero no mercado de trabalho, o que se amplia nas classes populares e nas famílias negras (Sorj, 2013: 484).
Na pandemia essa situação de desigualdade se intensificou no Brasil, em especial diante de um governo federal negacionista e que desmontou inúmeras políticas públicas, tendo como resultado a morte de mais de 700 mil pessoas por covid-19, muitas das quais poderiam ter sido evitadas (OXFAM Brasil, 2021). No mercado de trabalho, esse impacto se deu com a maior intensificação das atividades domésticas e reprodutivas que não são remuneradas, acentuando a sobrecarga das mulheres e o aumento das disparidades de gênero, também presentes na escala global e articuladas a recuos na escolaridade feminina e no aumento da violência de gênero (Flor et al, 2021). Além do impacto da inflação que afetou a população mais pobre, com o IPCA (Índice de Preços ao Consumidor) acumulado acima de 10%, ao final de 2021 (Agência IBGE Notícias, 2022). Estes aspectos se relacionam diretamente com o aumento da fome no país, com mais de 50% da população passando por algum tipo de insegurança alimentar e 33,1 milhões sem ter o que comer em 2022, conforme o II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 (II VIGISAN). Nesta pesquisa, mostrou-se que “a fome tem gênero e cor e que os momentos de crise são marcados pelo aprofundamento das desigualdades que já estruturam historicamente o país” (Rede PENSSAN, 2023, p. 14), sendo que a maior vulnerabilidade à insegurança alimentar estava nas famílias brasileiras chefiadas por mulheres negras.
Tal quadro é o que enfrentamos na ITES em 2021, no contexto pandêmico, quando realizamos de forma remota (totalmente online) 5 assessorias em atendimento à chamada do edital (05/2021) da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação, intermediado pela Fundação de Apoio ao Desenvolvimento da Extensão, Pesquisa, Ensino Profissionalizante e Tecnológico (SETEC/MEC/FADEMA) de apoio a iniciativas impactadas pela pandemia, com a realização do projeto “Incubando esperanças: assessoria e apoio econômico, social e ambiental a pequenos negócios”. O edital era voltado ao atendimento, apoio e orientação a micro pequenos empreendedores, que no caso da proposta da ITES teve sua orientação sob o prisma metodológico e socioeconômico da economia solidária. Ou seja, ao invés de reforçar o aspecto individual, a maximização do lucro, a lógica privada e de mercado das iniciativas, a orientação no trabalho da ITES se dava sob o prisma do coletivo e dos movimentos sociais, do preço justo, das políticas públicas e dos direitos sociais, além da qualidade de vida das pessoas.
Nas orientações do edital não havia qualquer exigência sobre a forma de seleção e escolha das iniciativas que seriam assessoradas. No caso da ITES, realizamos uma seleção pública por meio de uma chamada pública simplificada, divulgada de forma online. Nesta chamada explicamos as condições do apoio remoto, priorizando as iniciativas de trabalhadoras/es negras/os das classes populares de Niterói, sendo que por conta do edital todas as iniciativas apoiadas precisavam ser formalizadas, ou seja, ter CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas). De 19 iniciativas inscritas, selecionamos então dois empreendimentos protagonizados por homens na área da reciclagem e coleta seletiva e outras três iniciativas protagonizadas por mulheres7 na área da alimentação saudável, sendo que todas as iniciativas eram sediadas em Niterói. Essa escolha buscou também convergir esforços na formação de redes e trocas entre as duas áreas socioeconômicas que então passávamos a interagir.
Especificamente no caso das iniciativas da área alimentar, duas delas eram geridas individualmente por mulheres negras e com filhos [A e B], ambas na produção de refeições, e uma outra gerida por um casal de mulheres [C], com a produção de salgados assados. Um ponto em comum no perfil das três iniciativas é que todas as mulheres rompiam com a heteronormatividade sexual.
O trabalho da assessoria, de apenas 6 meses, seguiu um roteiro de reuniões semanais com cada empreendimento para, em um primeiro momento, levantar um diagnóstico social, econômico e ambiental e, após esse quadro, desenhar e priorizar os apoios necessários e viáveis. Nesse processo, a formação ocorria tanto com as pessoas contempladas com a assessoria, quanto com toda a equipe8 da ITES, em especial os 6 bolsistas contratados, na maioria mulheres, sendo 3 do ensino médio técnico, 2 do ensino técnico concomitante/subsequente e 2 da pós pós-graduação lato sensu em Gestão de Projetos Ambientais, além de 4 docentes e 3 estudantes voluntários.
Resumidamente, a formação da equipe, em especial dos bolsistas, passou pela provocação de estudos e apresentação de temas elencados como importantes para o intenso trabalho que viria a ser feito, começando pelo histórico e proposta da economia solidária; redes, comércio justo e solidário e finanças solidárias; tecnologias sociais; análise de viabilidade econômica e educação popular. Ao longo do processo a equipe de bolsistas foi exercitando a capacidade de mediar e sistematizar reuniões participativas e, conforme o contato com as iniciativas assessoradas, fomos especificando o estudo e a preparação dos temas de formação, como reciclagem e coleta seletiva, segurança alimentar e nutricional (SAN); alimentação saudável; vigilância sanitária; educação ambiental; formalização de cooperativas e comunicação e redes sociais. Algumas destas formações também contaram com apoiadores externos, especialistas nos temas, como a ONG Capina na metodologia de Estudo de Viabilidade Econômica (EVE) e o Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Alimentação e Saúde do Escolar da Universidade Federal Fluminense (GEPASE/UFF) no apoio à orientação nutricional.
Em todos os 3 casos das iniciativas protagonizadas pelas mulheres presenciamos situações que explicitavam os dilemas dos cuidados e a relação das mulheres com o trabalho, dentre eles citamos: a criação da iniciativa como tentativa para a saída do desemprego e inserção no mercado de trabalho; a escolha de um setor produtivo em proximidade com o lar e suas habilidades; a avaliação da realização pessoal com o trabalho; a pressão para a viabilidade do negócio e geração adequada de renda, ao mesmo tempo que arcando com as responsabilidades no trabalho do cuidado de crianças, jovens e da casa; a constatação dos baixos rendimentos dos empreendimentos frente ao contexto de crise, inflação e isolamento social, e ainda, a sobrecarga de trabalho. Também em comum, a construção das três iniciativas não havia obtido, até então, apoio público ou fomento externo, apesar das mulheres terem articulação com o movimento de economia solidária e outras redes no município que geravam, por exemplo, novos contatos e apoio para clientela. Nos três casos, a assessoria da ITES era o primeiro suporte com recursos públicos acessado.
Diante da tensão entre trabalho e cuidado resultava uma situação generalizada da falta de tempo ou de controle do tempo diante do acúmulo de tarefas, o que se replicava na assessoria, com diversas reuniões realizadas no período noturno, exemplificando a sujeição das mulheres na falta de tempo, inclusive das assessoras. Estas mulheres reproduziam o dilema, no contexto neoliberal capitalista, entre ficar desocupadas ou ficar sobrecarregadas (Ávila, 2004).
Seguindo o percurso da assessoria, após o diagnóstico das três iniciativas, realizamos formações e debates coletivos sobre temas de interesse comum, todos formulados e mediados pelos bolsistas, como: segurança alimentar e nutricional, vigilância sanitária, estudo de viabilidade econômica e comunicação em redes sociais. Os momentos de troca, de compartilhar problemas e soluções foram percebidos pelas participantes como tendo saldo positivo, bem como no amadurecimento da gestão/decisão sobre os empreendimentos e o estímulo para que pudessem promover ações coletivas. No entanto, em nenhum momento trabalhamos especificamente e diretamente os dilemas entre as esferas produtivas e reprodutivas, bem como das desigualdades de gênero, embora fosse uma questão comum entre todas as três iniciativas. Essa naturalização dos papéis de gênero e a constatação de diversos problemas no cotidiano destas mulheres é um ponto que refletimos neste trabalho e que, posteriormente, percebemos como lacuna na assessoria realizada. Isso se aprofundou também diante do não planejamento do projeto em trabalhar com os temas de gênero e cuidados, tanto na formação dos bolsistas quanto dos empreendimentos, o que, diante de um projeto curto, ficou inviabilizado, apesar da tensão ser evidente e cotidiana.
Relatamos a seguir um caso específico dos dilemas nos cuidados e no autocuidado junto ao empreendimento [C], gerido pelo casal de mulheres, ambas de meia idade, trabalhando com salgados assados, artesanais e por encomenda.
O empreendimento surgiu em 2017 diante da necessidade de fornecimento de alimentos para as atividades de uma ONG, que trabalhava com a temática ambiental. As duas integrantes do empreendimento assumiram então a produção de alimentos, sendo que uma delas vinha de uma “família mineira”, segundo ela com “gosto” pela culinária e, na época, também estava desempregada.
A trajetória de trabalho da dupla teve vários momentos, desde iniciar a produção em casa, limitado ao espaço doméstico, em especial na infraestrutura da cozinha. Depois, cresceram a produção com encomendas de maior porte, ao atender a demanda de pessoas jurídicas, como cafés, eventos e lanchonetes, o que gerou a necessidade de um espaço maior para a produção, contando com mais pessoas trabalhando no empreendimento. Nessa fase, elas passaram a alugar um espaço específico para a produção, separado do espaço doméstico. No contexto da pandemia, como grande parte dos pequenos negócios, elas sofreram com os impactos do isolamento e da crise socioeconômica, com uma grande redução nas encomendas e, consequentemente, na produção e nas receitas financeiras.
O cotidiano destas duas mulheres era intensivo, na época em que realizamos a assessoria, em 2021, na maior parte dos dias da semana elas dormiam no local de trabalho, sem retornar para casa devido a longa jornada diária e ao cansaço correspondente. Uma das mulheres era especializada na produção e a outra tratava da parte comercial e financeira, buscando cursos e apoios externos, tendo em vista o impacto da pandemia na queda das vendas. O estresse mental era sempre relatado pelas duas, sendo que a responsável pela produção tinha continuamente lesões por esforço repetitivo, além de haver pouco entendimento da dupla sobre o seu fluxo financeiro mensal.
Este caso retrata também o estereótipo da naturalização da sobrecarga na figura do “empreendedor” e o almejado sonho de chegada ao “sucesso”, inclusive porque elas incorporaram estes discursos, a exemplo de postagens no seu Instagram profissional, como: “o sucesso da noite para o dia leva anos para acontecer”, “começar um negócio é como saltar de um penhasco e construir o avião durante a queda”, além de várias postagens reforçando o foco na qualidade dos produtos, a razão do trabalho ser a satisfação do cliente, e também de compartilharem as aprendizagens do trabalho e das articulações desenvolvidas. Essas justificações morais podem ser lidas como um suporte e engajamento na situação do trabalho, o que corresponde a “esquemas ideológicos [que] são mobilizados para justificar a adaptabilidade nas relações de trabalho e na mobilidade da vida afetiva” diante das dinâmicas do capital (Boltanski e Chiapello, 2009, p. 25). De forma contraditória, um trabalho em que se esperaria realização pessoal se reverteu também em perda de autonomia e auto exploração, refletindo as adaptações nas dinâmicas capitalistas.
Ao longo da assessoria, percebemos conjuntamente que elas operavam no prejuízo, ou seja, tinham mais despesas do que receitas ao final do mês e, para sair desta situação, uma das soluções seria aumentar o preço final dos produtos, repondo o valor da inflação do período. Por outro lado, destacamos também que várias foram os diálogos nas reuniões conjuntas sobre a importância e as conquistas da dupla, em anos de atuação na produção e na comercialização de alimentos saudáveis e com qualidade, aspecto muito valorizado por elas. Fazer os alimentos ganhava sentido ao conhecer os destinatários dos produtos, os consumidores, como um pequeno café, um evento ou diretamente para uma família, bem como adquirindo alguns insumos direto de agricultores locais sem uso de agrotóxicos. Elas também comparavam seus salgados com de outros concorrentes, em lanchonetes e padarias, percebendo que a qualidade e o frescor eram seus diferenciais, uma delas comentou que “percebia a necessidade de ter melhores opções de alimentação na rua”. O que de fato se justifica diante da massificação de alimentos ultraprocessados em comércios locais, com o uso excessivo de alimentos com alto teor de sal, açúcares e gorduras, refletindo o poder dos grandes grupos empresariais do setor na alimentação da população brasileira (Caivano et al, 2017).
O ato de relatar seu cotidiano a terceiros, no caso, a ITES, permitiu que a dupla refletisse e repensasse sua realidade, ou seja, produziu uma racionalidade, dando novos sentidos ao seu fazer. Isso porque a realidade não é dada, mas o ato de narrar conferiu uma produção de realidade a estas mulheres, também ao conjunto da equipe da ITES (Alberti, 2004). A vivência destas mulheres foi contada seguindo determinadas perguntas formuladas pela assessoria, o que não apenas deu uma direção e interferência na narrativa, mas refletiu esse fazer coletivamente. Nesse fazer, o sentido do trabalho da dupla, entre o amor e a dor, ficava cada vez mais evidente.
Foi grande a frustração delas em perceber que trocavam “seis por meia dúzia”, seu saldo negativo real, o que demandou um trabalho intenso da assessoria sobre seus fluxos numéricos, a principal demanda apontada pela iniciativa. Esse processo fez com que elas repensassem toda sua dinâmica profissional, o que infelizmente gerou riscos antevistos, como: a perda de clientes diante do aumento no preço final dos produtos, a redução na qualidade do produto para baratear o custo e, no pior cenário, a suspensão das atividades do empreendimento, o que veio a ocorrer cerca de um ano após o término da assessoria, diante também de problemas de saúde da responsável pela produção. Nesse sentido, o processo de reflexão e narrativa do trabalho não representou a realidade, mas produziu uma nova compreensão da realidade que interferiu no curso dos acontecimentos seguintes do empreendimento.
Neste aspecto, a precariedade da própria assessoria, dependente do edital em execução, de apenas 6 meses e de forma remota, não permitiu um apoio mais aprofundado e, inclusive, psicológico no processo desencadeado, apesar de que ciente à todas aquelas envolvidas em sua realização. A lógica de projetos foi imperativa na sua organização e execução em rede, com engajamento, flexibilidade, instantaneidade, pressão por resultados e a abertura a um circuito interminável a reprodução de novos projetos, ou a finalização e descontinuidade dos trabalhos (Boltanski e Chiapello, 2009). Aponta-se aqui a contradição do próprio projeto, mesmo buscando apoiar as iniciativas fragilizadas, procurando subverter as lógicas de exploração e expropriação, também reproduziu as lógicas que procurou transformar.
Além disso, a demanda urgente da dupla por entender e atuar sobre o seu fluxo financeiro concentrou as energias da assessoria nesta pauta, o que reforçou um viés mais produtivista e economicista do apoio que, de outro lado, não se dá isoladamente, mas em articulação com as outras esferas socioambientais, de gênero e territoriais do empreendimento. E ainda, se somava como sua relação constitutiva com o contexto político e econômico que, no caso, era extremamente adverso.
Esse caso retrata, segundo Fraser (2020), as contradições entre capital e cuidado que se espelhava na própria lacuna de autocuidado na dupla, ou seja, a produção estava acima da sua própria reprodução pessoal, ainda que, é importante destacar, o trabalho e a construção do empreendimento eram uma realização pessoal para elas. O tempo válido era gerenciado como somente o tempo produtivo, entre diversos processos de compra de insumos, produção de salgados, organização do espaço e do estoque, comercialização, gestão financeira e comunicativa (Ávila, 2004). Se o trabalho era um ponto central para a vida destas mulheres, tampouco conseguia responder por todas as suas dimensões, pelo contrário, o trabalho aprisionava e ao mesmo tempo libertava essas mulheres. Essa dualidade na representação do trabalho era percebida nas reuniões da assessoria, visto que em todas elas a dupla estava extremamente animada com o apoio e as reflexões coletivamente realizadas, o que se refletiu de forma mútua com a equipe da ITES.
Nessa contradição, o trabalho reprodutivo que não era remunerado, a exemplo da limpeza, dos afetos e cuidados pessoais, sustentou o trabalho remunerado e, de modo mais ampliado, a própria reprodução do capital, mesmo na dinâmica autônoma de trabalho. Ou seja, exemplifica-se que “a reprodução social é uma condição de fundo indispensável à possibilidade da produção capitalista” (Fraser e Jaeggi, 2020: 59), em que “as zonas comodificadas do capitalismo dependem, para a própria existência, de zonas de não comodificação” (Fraser e Jaeggi, 2020: 87), o que resulta que práticas econômicas estão inter-relacionadas com outras práticas, enquanto tecido sociocultural.
Mesmo a mobilização para permitir uma maior vinculação entre esferas produtivas e reprodutivas, com autonomia na organização diária do trabalho, explicitou suas limitações diante da impossibilidade de romper com as pressões econômicas cotidianas, como: o valor dos custos, o preço final, as outras empresas concorrentes em lógicas predatórias e, ainda, a pressão na figura dos consumidores, imbricadas nas dinâmicas capitalistas em que todos nós estamos imersos. Mesmo sem a figura de um “patrão” externo, a iniciativa estava submetida a preços de mercado e a concorrências desleais no jogo capitalista, o que pressionava pela reprodução de lógicas de exploração para viabilizar a sua própria produção. Romper estas dinâmicas não necessariamente seria impossível, mas demandaria maior tempo de articulação, diálogo e, principalmente, cuidado nas relações e na costura com outras redes sociais e coletivas, por exemplo: de produção e consumo, no atendimento das necessidades básicas, no efetivo apoio público [por exemplo, para o espaço produtivo e nas vendas institucionais diretas a um maior valor] e no vínculo com outras organizações e movimentos sociais, inclusive para que a iniciativa deixasse de ser familiar para se tornar uma iniciativa mais forte social, econômica e coletivamente.
Desde a assessoria, o objetivo central do edital (FADEMA, 2021) em atendimento não permitia a adequada atenção para as esferas reprodutivas e condições para articulações mais ampliadas no contexto pandêmico, limitando-se ao apoio na produção capitalista em um contexto de crise que oculta as dimensões de cuidado, de raça e de gênero da qual ele mesmo depende e se apropria. Ainda assim, a construção coletiva do conhecimento foi elogiada por todas as participantes ao longo e ao final do projeto, em especial por perceberem que compartilhavam de dificuldades pessoais e profissionais, além de objetivos semelhantes. Além disso, também houve reflexões em torno das condições de trabalho, do que valia ou não a pena desenvolver e de quais decisões poderiam tomar a partir de uma maior apropriação do seu fazer. Mesmo com suas fragilidades estruturais, as reflexões permitidas pelo projeto, no entendimento e na avaliação do trabalho, geraram aprendizados para além do momento de execução do mesmo.
Esse fazer em reflexão permitiu, por exemplo, que elas repensassem a sua atividade cotidiana, em especial, compreendendo seus fluxos financeiros e a sua viabilidade naquele contexto, ou seja, se apropriando da matemática do seu trabalho. Isso também foi percebido junto das demais iniciativas acompanhadas no projeto.
Nesse aspecto, trazemos brevemente alguns desdobramentos da assessoria junto aos empreendimentos A e B, geridos por mulheres negras com filhos, produzindo refeições por encomenda. No primeiro caso, a produção de refeições estava imersa em uma rede de cultura e projetos na cidade, o que lhe permitia ampliar parcerias e conexões na sustentação de sua atividade, ao mesmo tempo que reduzir custos e ampliar receitas com as contratações por eventos de outros projetos culturais. A assessoria visivelmente permitiu uma apropriação de argumentos, valorizações, novos conhecimentos, contabilidades e decisões cotidianas que geraram frutos posteriores ao trabalho. Uma maior compreensão sobre a viabilidade econômica de encomendas e projetos de investimentos também esteve presente no caso B, que na época tinha o trabalho na cozinha como complementação da renda de outro trabalho, o que gerou sua decisão de descontinuidade da produção alimentar, diante da maior necessidade de dedicação para obter a renda almejada.
Além disso, mesmo que a assessoria não trabalhasse diretamente a formação reflexiva entre trabalho produtivo e reprodutivo, o que é visto aqui como lacuna, percebemos que as práticas protagonizadas pelas mulheres rompiam com a visão econômica restrita à lógica mercantil, racional, individual e impessoal. Elas administravam múltiplos conjuntos de relações sociais, como “cadeias de troca e solidariedade misturadas e entretecidas por fios invisíveis visando ao bem comum”, sem rígidas separações entre o econômico e o não econômico, percebendo práticas econômicas, no sentido do trabalho para atender necessidades, em práticas de cuidado entremeadas por vínculos e sentimentos (Zelizer, 2009: 243), mesmo que conflitivos e tensionados. Apesar das limitações estruturais e das desigualdades em que estas mulheres estavam inseridas, com a economia solidária elas poderiam tecer circuitos que conectavam símbolos, práticas e ideologias, criando novos arranjos econômicos e políticos protagonizados por elas. Vale destacar que as três iniciativas de mulheres aqui descritas, no momento da assessoria, não eram participantes dos espaços organizativos do movimento de economia solidária do município, passando a ter mais contato com o mesmo a partir da assessoria da ITES.
Tal quadro é o que se visualiza de forma geral no movimento de economia solidária, impulsionado diante das dinâmicas formais do mercado de trabalho que excluem as trabalhadoras não submetidas diretamente ao seu molde, na busca por desenvolver circuitos e outros arranjos que as auxiliem a sobreviver, ainda que também submetidas a formas próprias de precarização diante do contexto capitalista em que se inserem. Estas trocas entre trabalho e reciprocidade ganham projeção quando organizadas em escala, como é o caso do movimento de economia solidária em Niterói, a exemplo da pressão por políticas públicas e a auto organização de espaços de comercialização, como o Circuito Araribóia de Feiras9.
Na pandemia foram as mulheres que mais perderam postos de trabalho formais, acumularam as funções de cuidado e manutenção da casa e sofreram com a insegurança alimentar, em especial as mulheres negras. Nesse contexto, apoiar iniciativas de alimentação saudável protagonizadas por mulheres negras era algo mais que necessário. A assessoria às três iniciativas de mulheres, longe de reproduzir jargões de “sucesso ou fracasso” sobre o que essa experiência representou, efetivamente permitiu às suas participantes e à ITES uma mútua experiência e troca de aprendizados, diante de circunstâncias de trabalho extremamente desfavoráveis, na necessidade de distanciamento social e na limitação para acionar outras redes de apoio.
Desde esta breve análise da experiência da ITES e das mulheres que levaram a frente iniciativas populares e de economia solidária, podemos esboçar algumas reflexões mais gerais. Primeiro, destacamos que a própria criação e continuidade da ITES foi um caminho para atuação autônoma de servidoras, enquanto um espaço de aglutinação, confiança e proximidade para construção feminina coletiva, sob o tema da economia solidária.
Segundo, percebemos que se mantém na atuação da ITES e do movimento de economia solidária o desafio de construir um sistema que não submeta a reprodução pela produção, ou mesmo, a não polarização de duas faces que representam a continuidade da vida, como luta das economias feministas e de muitas mulheres que atuam na economia solidária e em outras economias possíveis (Fraser, 2020; Carrasco, 2018).
Apesar das mulheres serem as protagonistas em todas as situações retratadas e vários dos problemas no campo produtivo serem trabalhados pela ITES, os temas das desigualdades de gênero, do trabalho reprodutivo e dos cuidados não foram explícitos como chaves de problematização nas assessorias realizadas. Nesta avaliação, trazemos duas questões para aprimorar este trabalho: Como trazer a abordagem de gênero e dos cuidados para além da constatação de situações de desigualdade e do trabalho na mediação já realizada pela ITES? Como atuar para o rompimento de relações estruturais de desigualdade de gênero e desatenção aos cuidados?
De outro lado, se entendemos a mediação no coletivo como espaço para outras lógicas de fala, de escuta, de mobilização e de ação, o cuidado entra como qualificação na forma de múltiplos relacionamentos: cuidar de relações, de emoções e de conflitos, como forma de ação previamente realizada pela ITES, em sua metodologia de trabalho. Nas formações, nos debates e na busca por explicitar e construir coletivamente saídas para os dramas vividos socialmente, a ITES precisa então incorporar e explicitar as dimensões do doméstico, do gênero e do cuidado no espaço público, frente ao desafio de romper com estas polaridades e submissões.
Como mostra Drotbohm (2022), em “Cuidado além do reparo”, adentrar nos desconfortos da vida desde interações significativas implica responsabilidade em lidar com os dilemas mundanos, como nas várias situações aqui relatadas no trabalho da assessoria. Isso porque a noção de cuidado adotada não resulta no alívio do sofrimento humano ou numa abordagem bondosa, mas “é uma lente incômoda para se analisar seriamente a natureza contingente das transformações e das persistentes instabilidades da vida” (Drotbohm, 2022, p. 13), na busca por transformações possíveis e no fortalecimento das mulheres como sujeitos políticos.
Nesse sentido, explicitar o tema do cuidado, das contradições de gênero e as tensões entre produção e reprodução são chaves importantes na assessoria política realizada pela ITES que, se não tem soluções prontas, pode provocar transformações e buscar por novas articulações públicas.
Por fim, corroboramos com Zelizer (2009) na escolha do caminho para a superação das dualidades entre sentimento e racionalidade, mercado e esfera doméstica junto das análises, atividades e processos no campo da economia solidária, em especial nos protagonizados pelas mulheres, o que auxilia também na visualização das suas limitações, necessidades e apoio por políticas públicas. Dialogar sobre os dramas e buscar saídas coletivas e por direitos, se não atende e resolve imediatamente as questões, ao menos não as obscurece, mas as evidenciam como problemas públicos, na busca pelo bem-viver que, sendo experiência individual, se resolve no coletivo, no cuidado como ato relacional, ético e afetivo (Carrasco, 2018; Maizza e Oliveira, 2022).
Referências
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1 Os Institutos Federais (IFs) são instituições recentes no cenário nacional, criadas por meio da Lei N. 11.892, de 29 de dezembro de 2008, atuando com a educação superior, básica e profissional, pluricurriculares e multicampi, na oferta descentralizada de educação profissional e tecnológica nas diferentes modalidades de ensino, dialogando com as realidades locais. O IFRJ tem campi em Arraial do Cabo, Belford Roxo, Duque de Caxias, Engenheiro Paulo de Frontin, Mesquita, Nilópolis, Niterói, Paracambi, Pinheiral, Resende, Rio de Janeiro, Realengo, São Gonçalo, São João de Miriti e Volta Redonda. No caso de Niterói, desenvolve cursos, principalmente, nas áreas de administração, informática e meio ambiente, no ensino técnico e na pós-graduação (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro [IFRJ], 2025).
2 No tema dos cuidados agradecemos a disciplina “Cuidados sob diferentes perspectivas”, ministrada em 2023 no Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRRJ), pelas professoras Maria José Carneiro e Rodica Weitzman que propiciaram inúmeras reflexões que trazemos neste texto.
3 A Moeda Social Araribóia é um benefício de transferência de renda permanente do município, destinado às famílias de baixa renda beneficiadas que podem consumir em diversos estabelecimentos, de grande e pequeno porte, no município (Prefeitura Municipal de Niterói, 2025).
4 A cidade tem uma frota de 300 mil veículos para uma população de pouco mais de 480 mil habitantes (A Seguir Niterói, 2024). Embora a informação pelo Associação Casa Fluminense (2023) coloque Niterói em 3o lugar na RMRJ, com dados do Senatran, 2022.
5 Conforme dados do Ministério da Saúde, 2023 (Associação Casa Fluminense, 2023: 25).
6 Para uma visão geral das atividades realizadas pela ITES, há postagens em seu Instagram: https://www.instagram.com/ites.ifrjniteroi/
7 Para não expor as iniciativas e as mulheres, seus nomes não serão citados neste trabalho.
8 Agradeço a equipe que desenvolveu este projeto conjuntamente comigo, a saber os estudantes: Aghata Rosa, Andriele Pinto, Lara Cardoso, Maria Beatriz Viana, Maria Eduarda Lima, Paulo Costa, Diogo de Paula, Caroline Dias, Micaella Souza. E os docentes: Etiane Araldi, Fernanda Lima, Giuliano Bonorandi e Raphaela Silva.
9 Compreende um conjunto de feiras semanais de comércio justo e solidário, organizados pelo Fórum Municipal de Economia Solidária de Niterói, atualmente com apoio da prefeitura, como em Icaraí, Centro, Ingá, Itaipu, Piratininga e no Barreto, e que em 2022 chegou a movimentar mais de 2 milhões de reais (Prefeitura Municipal de Niterói, 2023; Fórum de Economia Solidária de Niterói, 2022).