CÓMO CITAR ESTE ARTÍCULO: Anjos, E. y Alves dos Santos, J. (2025). Análisis del marco social y de los consejos directivos de las cooperativas de agricultura familiar de Bahía desde una perspectiva interseccional. Otra Economía, 18(33), 73-90.
Eliene Anjos
elieneanjos@ufrb.edu.br
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia,
Cruz das Almas, Bahia, Brasil
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2751-4736
Jéssica Alves dos Santos
jessicaalves.coop@gmail.com
Universidade Federal de Santa Maria,
Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil
ORCID: https://orcid.org/0009-0008-4807-9500
Recibido: 07/03/2025 - Aceptado: 16/05/2025
Resumo: O artigo analisa se há diversidade de raça e gênero nas cooperativas da agricultura familiar da Bahia, sobretudo em relação à presença das mulheres negras nos Conselhos de Administração. Para tanto, adotou a perspectiva interseccional nas análises empreendidas com os dados coletados em 30 cooperativas da agricultura familiar do estado. Trata-se de uma pesquisa quantitativa, com o manuseio do banco de dados que permitiu gerar frequências que caracterizam o perfil racial e de gênero nas cooperativas, além de cruzamento de variáveis para captar a participação das mulheres negras no contexto analisado. Os resultados demonstraram que embora haja uma participação significativa da população negra na composição dos quadros de associados e nos conselhos de administração, inclusive com presença de mulheres negras nos cargos de presidência, ainda predomina a participação dos homens. Esta constatação sugere que no cooperativismo da agricultura familiar a dominação masculina não foi vencida e que a equidade de gênero está distante de ser efetivada.
Palavras-chave: Diversidade, Desigualdade de gênero e raça, Mulheres rurais
Resumen: El artículo analiza si existe diversidad racial y de género en las cooperativas de agricultura familiar de Bahía, especialmente en relación a la presencia de mujeres negras en los Consejos Directivos. Para ello, se adoptó una perspectiva interseccional en los análisis realizados con datos recolectados en 30 cooperativas de agricultura familiar del estado. Se trata de una investigación cuantitativa, con el manejo de la base de datos que permitió la generación de frecuencias que caracterizan el perfil racial y de género en las cooperativas, además del cruce de variables para captar la participación de las mujeres negras en el contexto analizado. Los resultados mostraron que si bien existe una participación significativa de la población negra en la composición de la membresía y en las juntas directivas, incluyendo la presencia de mujeres negras en cargos presidenciales, aún predomina la participación de hombres. Este hallazgo sugiere que en las cooperativas agrícolas familiares no se ha superado la dominación masculina y que la igualdad de género está lejos de lograrse.
Palabras clave: Diversidad, Desigualdad de género y racial, Mujeres rurales
Abstract: This article analyzes whether there is racial and gender diversity in family farming cooperatives in Bahia, especially in relation to the presence of black women on the Boards of Directors. To this end, an intersectional perspective was adopted in the analyses undertaken with data collected from 30 family farming cooperatives in the state. This is a quantitative study, using a database that allowed for the generation of frequencies that characterize the racial and gender profile of the cooperatives, in addition to cross-referencing variables to capture the participation of black women in the context analyzed. The results showed that although there is significant participation of the black population in the composition of the membership and on the boards of directors, including the presence of black women in the positions of president and vice president, male participation still predominates. This finding suggests that male domination has not been overcome in family farming cooperatives and that gender equality is far from being achieved.
Keywords: Diversity, Gender and racial inequality, Rural women.
A trajetória das cooperativas demonstra a constituição de espaços de organização e protagonismo dos homens, ainda que no seu decurso as lutas feministas também tenham adentrado o movimento para reivindicar a presença de mulheres nas cooperativas e nos seus cargos diretivos. Apesar da ausência de mulheres nos primórdios do cooperativismo, esse processo foi interrompido com a criação da Aliança Cooperativa das Mulheres, fundada por Alice Acland, em 1883, em Edimburgo, Escócia (Gouveia, 2018).
Como o cooperativismo surgiu oficialmente pelas mazelas enfrentadas pelos operários, no século XIX, seria lógico encontrar no movimento a participação mais expressiva de mulheres, uma vez que as desigualdades de gênero estratificam a vida social. No entanto, a organização das cooperativas brasileiras (OCB) reconhecia a necessidade de fortalecer a representação de gênero no cooperativismo com a criação do 1º Comitê de gênero, em 1997.
Para além das ações desenvolvidas no âmbito do cooperativismo nacional representado pela OCB, inúmeras outras ações também foram desenvolvidas nas cooperativas da agricultura familiar e da economia solidária com o intuito de favorecer o protagonismo feminino e a superação da dominação masculina. Nesta perspectiva, destaca-se uma ação da União das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária (Unicafes), criada em 2005, o Programa Mulher cooperada: formar para transformar, em 2021 (Unicafes, 2022). O programa representa um avanço na busca pela equidade de gênero no cooperativismo, ao capacitar mulheres rurais para superar barreiras estruturais que limitam sua participação em processos de liderança e tomada de decisão. Além de oferecer qualificação técnica, a iniciativa promove o empoderamento pessoal e coletivo, valorizando o papel das mulheres na agricultura familiar, muitas vezes invisibilizadas, e fortalecendo sua presença nas cooperativas.
As cooperativas agropecuárias tiveram uma importância histórica na realidade brasileira, a partir do modelo de desenvolvimento agroexportador. Entretanto, o meio rural não é homogêneo e o segmento da agricultura familiar representa a maior parte da população rural e contribui, significativamente, para a geração de trabalho, emprego e renda, além da produção de alimentos para o consumo interno (Azerêdo et al., 2021). A heterogeneidade das práticas cooperativistas no contexto nacional demonstra sua relevância na revitalização dos espaços rurais (Anjos et al., 2022), por isso nos direcionamos ao cooperativismo rural, buscando na análise identificar se as cooperativas podem ser instrumento de protagonismo feminino, com repercussão na melhoria das condições de vida dos segmentos que estão nomeados como agricultores familiares.
Segundo Azerêdo et al. (2021), o debate em torno do cooperativismo no Brasil e na América Latina torna-se complexo devido às distintas dinâmicas produtivas, econômicas e sociais praticadas no campo. Nessa perspectiva, os autores inferem que há estudos com diferentes perspectivas ao analisar o papel do cooperativismo no desenvolvimento rural. Destacam a relação dual entre cooperativas e capitalismo, enfatizando que há aquelas que expressam a resistência dos movimentos populares às desigualdades impostas pelo sistema de capital, nomeando-as de cooperativismo solidário, em contraposição às cooperativas mais identificada com a lógica capitalista.
Nessa direção, Azerêdo et al. (2021) analisam o cooperativismo latino-americano em duas categorias: i) as cooperativas vinculadas à agricultura capitalista dos grandes produtores rurais; e ii) as cooperativas dos agricultores familiares que utilizam da cooperação e da solidariedade para resistir as desigualdades diante das contradições do sistema do capital. Nesta lógica, as cooperativas familiares e solidárias tornaram-se instrumento de resistência ao desenvolvimento do capitalismo no campo. Segundo Anjos e Ramos (2024), no Brasil, essa última vertente do cooperativismo adquiriu fôlego com a expansão das iniciativas da economia solidária, que agrega diversas práticas cooperativadas nos espaços rurais e urbanos, caracterizadas pelas demandas de equidade, ao destacar o papel que as mulheres desempenham nestas experiências, sem reduzir o papel das discussões coletivas para construir um modelo de desenvolvimento sustentável e inclusivo.
A abordagem interseccional explicita as diferentes maneiras de privilégios e discriminações vivenciadas de forma simultânea. Refletir o atravessamento de gênero, raça e classe social, dentre outros, demonstra o tamanho do desafio para as mulheres negras vencerem os processos de subordinação e dominação nos quais historicamente foram inseridas. Essa forma de abordar o problema parece ser adequada ao estudo das cooperativas que se propõem ser espaços de inclusão e protagonismo de minorias sociais, como aquelas identificadas com a economia solidária e a agricultura familiar.
Desse modo, colocamos em perspectiva 30 cooperativas identificadas com a agricultura familiar baiana1. Um questionário foi disponibilizado pela plataforma Google Docs, sendo utilizadas as ferramentas de e-mail e WhatsApp para divulgação entre julho e agosto de 2023. Os dados foram analisados por meio do Statistical Package for the Social Sciences – SPSS, usado com o intuito de definir a existência de fatores comuns quanto à incidência nos perfis racial e de gênero no quadro social e cargos diretivos das cooperativas agropecuárias, que nos permite captar a participação das mulheres negras rurais no contexto analisado.
Trata-se, portanto, de um estudo quantitativo, com uso da estatística descritiva, tangenciado pela abordagem interseccional. Ademais, utilizam-se os dados do Censo Agropecuário 2017, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para caracterizar a agricultura familiar do estado, além da consulta aos anuários da OCB sobre a participação de mulheres e homens nas suas cooperativas.
O texto foi dividido em mais 5 seções, além desta introdução. Na segunda seção, discutiremos a questão de raça e de gênero, na perspectiva interseccional. Na terceira seção, aprofunda-se na análise das questões de gênero e raça no cooperativismo da agricultura familiar. A quarta seção faz uma breve reflexão sobre as mulheres rurais no cooperativismo da agricultura familiar. A quinta seção apresenta as análises das 30 cooperativas pesquisadas, apresentando o perfil de raça e gênero constado, para, enfim, as considerações finais.
A abordagem interseccional possibilita o desvendamento dos obstáculos enfrentados pela população negra, especialmente as mulheres negras, nas relações sociais e trabalhistas que atingem sua dignidade e subjetividade. Esse recurso teórico-metodológico tem uma missão política essencial para combater o racismo e o sexismo presentes na realidade brasileira, configurando, assim, o pressuposto adotado para compreender a hierarquização social presente nas cooperativas e suas interconexões com as questões de gênero, raça e classe (Anjos et al., 2019).
A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras (Crenshaw, 2002, p. 177).
Ademais, a abordagem interseccional apresenta uma dimensão política em contextos de desigualdade porque, segundo Collins e Bilge (2021, p. 69), esta tem sido utilizada pelos movimentos sociais como forma de mobilização política. Além disso, as autoras afirmam que “o uso da interseccionalidade como ferramenta analítica pode ser uma importante lente crítica para as iniciativas em favor dos direitos humanos”.
Refletir sobre formas de superar as desigualdades na realidade latino-americana perpassa pelos questionamentos às estruturas de poder que promovem “às bases da discriminação relacionada às intersecções entre raça, gênero e classe” (Collins e Bilge, 2021, p. 75). Esta perspectiva impõe a necessidade de considerar as opressões entrecruzadas que afetam a vidas das mulheres negras e, com mais rigor, a vida das mulheres negras rurais.
Nesse tocante, a noção de interseccionalidade, em Crenshaw (2002), tem especial relevância para a análise, tendo em vista que essa perspectiva enfatiza as relações de subordinação nas quais as mulheres negras são as mais atingidas e a necessidade de eliminar esses empecilhos. As trajetórias dessas mulheres perpassam por experiências raciais, de gênero e de classe, portanto, não podem ser analisadas em grupos separados, em categorias da discriminação de gênero ou de raça. Ambas precisam ser expandidas para que possamos abordar as questões interseccionais que enfrentam.
Nessa mesma perspectiva, brasileiras feministas como Lélia González (1982), Luiza Bairros (1995), Matilde Ribeiro (2006), Suely Carneiro (2003), dentre outras teóricas do pensamento feminista negro, têm contribuído a partir de intervenções incisivas sobre o lugar das mulheres negras em sociedades estruturadas nas desigualdades de raça e de gênero, como o Brasil. Como nos lembra González (1982), o racismo e o patriarcalismo cruzam-se numa dinâmica de interação e dependência mútua.
Comum a todas essas mulheres é a perspectiva de que não é possível entender a subordinação das mulheres negras sem levar em conta como raça, classe, gênero e sexualidade interagem na produção das desigualdades. É do lugar de mulher negra que se busca teorizar, “enegrecer o feminismo” (Carneiro, 2003). É preciso entender e intervir na realidade de exclusão em que se encontram as mulheres negras brasileiras.
O conceito de interseccionalidade permite visibilizar várias formas de ser mulher, mostrando que não é possível unificar essas lutas. O mundo do trabalho das mulheres, negras e brancas brasileiras, pode ser caracterizado como categoria fundamental do ser social dentro de uma sociedade racializada. A pesquisadora Collins (2000) defende que somar as opressões de raça e gênero não é suficiente para compreender a força de cada uma dessas formas de exclusão, no tocante à destruição da subjetividade dessas mulheres negras. Apenas comparar não é suficiente, é necessário reconhecer a imbricação entre elas.
Como a discriminação que atinge a mulher negra assume diversas formas, Crenshaw (2012) propõe duas categorias para a interseccionalidade: uma estrutural, onde se somam o gênero, a raça e as diversas formas de violência conjugal; e a segunda é política, que traz como resultado a marginalização do tema da violência em relação às mulheres negras. Como em toda categoria de análise, a inteseccionalidade sofre críticas por pesquisadoras no debate atual, reivindicando a inclusão dos temas sexualidade, classe, casta, religião, região, etnia, nação etc., propondo, assim, a não hierarquização da raça e gênero (Hirata, 2014). Não obstante, diante dessa realidade, concordamos com Carneiro (2003), quando afirma que as mulheres negras fazem parte de uma categoria de mulheres que nunca foram tratadas como frágeis, mas tratadas de forma desigual inclusive pelas políticas públicas que ignoraram suas especificidades. Por isso, o movimento feminista negro luta para que esse quadro seja denunciado, visibilizando toda forma de abuso e exclusão vivenciada pela mulher negra na sociedade e no mundo do trabalho brasileiro.
Segundo a ONU Mulheres, a desigualdade de gênero continua sendo um desafio fundamental para alcançar um modelo de desenvolvimento inclusivo e sustentável. Salienta, também, que essa desigualdade atinge mais as mulheres rurais e as mulheres negras por impactarem na dimensão econômica. Para Anjos et al. (2019), a adoção da interseccionalidade como perspectiva teórico-metodológica revela que os atributos de gênero e raça interagem para ampliar as desvantagens das mulheres negras no mundo do trabalho, não apenas no trabalho formal, mas também no campo da economia solidária.
No cooperativismo, espera-se que as profundas desigualdades que estruturam a vida social sejam combatidas devido à defesa do princípio da igualdade tão caro ao movimento (Velloso e Anjos, 2022). No entanto, as pesquisas realizadas pela OCB revelam o quão distantes estão as cooperativas de uma efetiva equidade de gênero, apesar das ações propagadas pelo cooperativismo para ampliar a participação de cooperadas nos seus quadros. No campo da economia solidária reconhece-se a expressiva participação das mulheres nos empreendimentos solidários que geram trabalho e renda, no entanto, Anjos et al. (2019) questionam os espaços ocupados por elas, inferindo que os cargos com mais poder na institucionalização da economia solidárias no Brasil têm predomínio dos homens. Na questão racial, o problema ainda é mais severo porque o atributo étnico/racial não está incorporado nos anuários cooperativistas, o que fragiliza o debate tão necessário da diversidade racial no cooperativismo brasileiro.
Veronese et al. (2017) inferem que apesar da vasta literatura encontrada sobre a diversidade de atores inseridos nas iniciativas da economia solidária, tais como: quilombolas, pescadores artesanais, artesãos, assentados por reforma agrária, agricultores familiares, povos tradicionais, catadores de materiais reciclados, entre outros, ainda há uma lacuna relacionada aos múltiplos estilos e condições de vida revelados pela pluralidade de práticas e racionalidades que são tangenciadas pelas questões de gênero, etnia, territórios e modos de vida singulares. Baseando-se nesses argumentos que Anjos e Ramos (2024) realizam um estudo tipológico com os trabalhadores e trabalhadoras da economia solidária com o intuito de analisar as desigualdades enfrentadas pelas mulheres, sobretudo as negras, nas experiências de trabalho associado. Os autores apontam que será fundamental desenvolver políticas que valorizem o trabalho feminino, pois, ainda que as experiências de geração de trabalho e renda da economia solidária sejam apontadas como espaços de protagonismo feminino, com repercussão na autonomia financeira, as mulheres rurais não assumiram lugar de destaque na maioria dos cargos decisórios dos empreendimentos rurais identificados com a economia solidária.
A evolução da presença feminina no quadro social das cooperativas, de acordo com os anuários da OCB, apresenta, na maior parte das vezes, um crescimento, mas ainda incipiente para assegurar uma representação mais equânime de gênero. A análise da composição do quadro social das cooperativas em 2014 e 2018 demonstra um alento para reforçar a expectativa de mais mulheres participando do cooperativismo. Em 2014, no âmbito nacional, o quadro social era composto por 67% de homens, com 33% de mulheres. Em 2018, eram 64% de homens e 36% de mulheres. Em 2019, o quadro social estava composto por 38% de mulheres e 62% de homens. Já em 2020, foram 40% de mulheres e 60% de homens. Um olhar sobre a representação de gênero por ramo (Tabela 1) demonstra o quanto as cooperativas ainda estão distantes da tão propagada equidade de gênero.
Tabela 1. Distribuição do quadro social por ramo e gênero das cooperativas filiadas à Organização das Cooperativas Brasileiras em 2022 e 2023.
Ramo |
Homens |
Mulheres |
||
---|---|---|---|---|
2022 |
2023 |
2022 |
2023 |
|
Agropecuário |
83,7% |
81,7% |
16,3% |
18,3% |
Consumo |
55,8% |
54,8% |
44,2% |
45,2% |
Crédito |
56,2% |
57,0% |
43,8% |
43,0% |
Infraestrutura |
71,3% |
74,6% |
28,7% |
25,4% |
Saúde |
55,4% |
54,1% |
44,6% |
45,9% |
Trabalho, Produção de Bens e Serviços |
48,4% |
45,1% |
51,6% |
54,9% |
Transporte |
91,1% |
88,9% |
8,9% |
11,1% |
Total Geral |
58,8% |
59,3% |
41,2% |
40,7% |
Fonte: Anuário do Cooperativismo 2023 (OCB, 2024).
A tabela 1 revela que as cooperativas agropecuárias continuam sendo espaço de dominação masculina. Embora tenham sido realizadas ações para inclusão das mulheres, o ramo agropecuário, que inclui as cooperativas da agricultura familiar filiadas à OCB, tem somente 18,3% de mulheres em 2023, o segundo menor percentual de mulheres no quadro social, somente perdendo para o de transporte (11,1%). Esta constatação demonstra o quanto nos espaços rurais a lógica patriarcal persiste na estruturação das relações sociais, econômicas e políticas, impondo, assim, sérios limites à participação das agricultoras. Destarte, o cooperativismo da agricultura familiar que não está incluso nos levantamentos da OCB desponta como um espaço de protagonismo feminino constado numa pesquisa exploratória realizada em 2021 na Bahia (Anjos, 2023).
Apesar do ramo trabalho, produção de bens e serviços apontar maioria feminina no quadro social em 2023 (54,9%), ao observar os cargos de presidência dessas cooperativas, os homens são maioria (53%), como está demonstrado no quadro 1. Em relação à distribuição de gênero entre os dirigentes das cooperativas, cabe destacar um crescimento mais discreto ainda do que o quadro social. Em 2017, no cômputo geral, eram 24% de mulheres dirigentes em contraposição a 76% de dirigentes homens. O ano de 2018 apresenta um incremento de 1% para as mulheres, alcançando 25%.
A distribuição de gênero no cargo de presidência dos conselhos de administração das cooperativas está muito distante de uma equidade efetiva, como está demonstrado no quadro I.
Quadro 1. Distribuição por ramo e gênero da presidência das cooperativas filiadas à Organização das Cooperativas Brasileiras em 2022.
Ramos |
Homens |
Mulheres |
---|---|---|
Agropecuário |
84% |
16% |
Consumo |
69% |
31% |
Crédito |
80% |
20% |
Infraestrutura |
80% |
20% |
Saúde |
71% |
29% |
Trabalho, Produção de bens e serviços |
53% |
47% |
Transporte |
92% |
8% |
Fonte: Anuário do Cooperativismo 2022 (OCB, 2023).
As cooperativas estão longe de construírem relações igualitárias entre homens e mulheres porque não basta trazê-las para o quadro social, é preciso que elas participem das tomadas de decisão e ocupem cargos com prestígios nos conselhos de administração. Presidir nas cooperativas que responderam à pesquisa da OCEB, em 2022, conjuga com o gênero masculino. O ramo agropecuário apresenta somente 16% de mulheres na presidência, percentual pouco expressivo, uma vez que o Coopergênero, um programa implementado nas cooperativas agropecuárias com o objetivo de ampliar a participação feminina em 2004 (Gouveia, 2018), foi desenvolvido como uma política pública no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA.
As cooperativas podem vir a ser instrumento de protagonismo feminino, mas, segundo Dantas (2022), será necessário romper com a cultura patriarcal que está impregnada entre os homens cooperados que não conseguiram assumir relações de gênero mais equilibradas. Para que haja diversidade de gênero e raça nas cooperativas, as desigualdades devem ser abordadas confrontando com as posições de poder que homens e mulheres, negros e não-negros ocupam.
É importante reconhecer as dificuldades enfrentadas pelas mulheres para assumirem cargos diretivos. Os estereótipos de gênero, o racismo estrutural e as desigualdades geradas desse contexto limitam as oportunidades de disputar os espaços que expressam relações de poder. Os dados demonstram que as estratégias adotadas pela representação do sistema OCB estão sendo incipientes para ampliar a participação feminina, tanto nas cooperativas quanto nos cargos que estruturam a própria organização.
Quanto à questão racial, o cenário é mais desolador pela ausência do perfil racial nos documentos disponibilizados. Mesmo no estado que tem predominância da população negra, a Bahia, não há na página da organização nenhuma proposta que debata a questão racial. Essa entidade representa mais de 200 cooperativas (OCB, 2024) no estado, porém não apresenta o perfil racial do quadro social tampouco dos cargos diretivos. Incluir o perfil racial, assim como a representação de gênero por unidade da federação, contribuirá para dimensionar o papel do cooperativismo no enfrentamento das diversas formas de desigualdades que persistem na realidade nacional.
A agricultura familiar no Brasil é essencial para a segurança alimentar e nutricional. Ela é caracterizada pelas propriedades que são administradas e operadas por famílias, que têm como alicerce a força de trabalho familiar. O Censo Agropecuário 2017 catalogou 3.897.408 estabelecimentos da agricultura familiar no Brasil, desses, 593.411 estão localizados na Bahia (IBGE, 2019). São dirigidos, em sua maioria, por homens, 433.551, restando 159.860 por mulheres no estado. A realidade enfrentada pelas mulheres rurais levanta questões importantes sobre a estrutura social e cultural que perpetua as desigualdades de gênero no campo. É necessário reconhecer o papel das mulheres agricultoras na produção e na sustentabilidade rural, todavia, é crucial que elas enfrentem os obstáculos que impedem a sua plena participação.
Quanto à vinculação dos estabelecimentos agropecuários às cooperativas, o Censo Agropecuário reafirma o predomínio dos homens no cooperativismo rural, inclusive no identificado com a agricultura familiar. As agricultoras familiares que são dirigentes no Brasil representam 9% dos estabelecimentos cooperados. Desagregados por região, os 412.305 estabelecimentos associados às cooperativas, temos em ordem decrescente, Nordeste, 17,2%, Norte, 15%, Centro-Oeste,12,5%, Sudeste, 8,5%, e Sul, 7,7%. Destacamos que a região Sul, detentora de mais da metade dos estabelecimentos cooperativos, apresenta o menor percentual de estabelecimentos dirigidos por mulheres.
A Bahia apresenta um cenário animador, tem um percentual acima do Nordeste, região com maior proporção de estabelecimentos femininos cooperados, com 19%. Esses percentuais sugerem que as lutas travadas no campo estão permitindo que as mulheres rurais assumam papel destacado nas organizações da agricultura familiar. Quanto ao perfil racial dessas agricultoras que dirigem os estabelecimentos cooperados, infelizmente não é possível dimensionar porque, também, no IBGE não houve o interesse de identificar a participação da população negra nos formatos associativos.
No entanto, o Censo aponta o perfil racial dos dirigentes e das dirigentes dos estabelecimentos no cômputo geral, sem caracterizar aqueles e aquelas que estão vinculados às cooperativas. Na Bahia, as negras representam 78% dos 159.860 estabelecimentos dirigidos por mulheres no estado, como demonstrado na figura 1.
Figura 1. Distribuição dos estabelecimentos da agricultura familiar dirigidos por mulheres segundo a cor/raça na Bahia.
Fonte: Censo Agropecuário 2017 (IBGE, 2019).
A predominância de mulheres pardas, com 58,3%, reflete a composição racial majoritária da Bahia, mas os 19,7% das mulheres pretas demonstram a resiliência desse grupo, historicamente mais marginalizado, que pavimenta a inclusão e seu protagonismo nas organizações da agricultura familiar. A baixa representatividade das mulheres indígenas, 0,7%, é preocupante, uma vez que o maior levantamento direcionado aos espaços rurais não contribui para visibilizar os povos originários.
A participação das mulheres nas cooperativas é um tema de crescente interesse tanto na academia quanto no âmbito da política pública. A Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM), do governo da Bahia, lançou em 2024, um edital denominado “Cooperativismo com Elas” para estimular a participação das mulheres em cooperativas. Pinho (2019) pondera sobre os padrões femininos impostos socialmente que limitam a atuação das mulheres na sociedade. A sociedade confere às mulheres o trabalho reprodutivo, sobrecarrega as mulheres rurais com a invisibilização do trabalho produtivo nos estabelecimentos rurais e impõe às mulheres negras os trabalhos menos valorizados e remunerações mais baixas. As cooperativas no cenário descrito podem vir a ser um mecanismo de inclusão e protagonismo feminino, sobretudo das negras. Essa é a perspectiva expressa no edital da SPM.
Vivemos em uma sociedade que culturalmente invisibiliza as mulheres e quando nos referimos às mulheres pretas e pardas essa invisibilidade se tornar maior. As desigualdades cruzadas vivenciadas pelas negras, de gênero e raça, são mais aparentes quando se observam os cargos de gestão das organizações, sejam elas cooperativas ou não. Para superar esses desafios, será necessário promover mais programas no âmbito público e da sociedade civil que combatam os estereótipos de gênero e raça, com a criação de mecanismos que favoreçam a participação feminina. As cooperativas, particularmente, podem criar programas que promovem a igualdade de gênero e raça, criando ambientes inclusivos para a participação das mulheres negras. Impulsionar a diversidade de gênero e raça nos cargos diretivos pode ser uma estratégia para demonstrar que as práticas cooperativistas podem ser um espaço coerente com o desenvolvimento sustentável e inclusivo.
Em 2015, na Assembleia Geral das Nações Unidas, foram estabelecidas 17 metas globais intituladas como Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), direcionados a erradicar a pobreza, proteger o planeta e garantir que ele seja próspero até 2030. Dentre o conjunto dos ODS, o 05, igualdade de gênero, e o 10, redução das desigualdades, dialogam com o objeto deste estudo. O ODS 05 visa ao alcance da igualdade de gênero com ênfase no enfrentamento das discriminações e violências, impulsionando a participação em espaços de tomadas de decisão. O ODS 10 busca a redução das desigualdades mundiais, para que haja a inclusão social e econômica, propiciando igualdade de oportunidades. O movimento cooperativista estaria alinhado com os ODS devido aos seus princípios basilares, por isso as cooperativas são apresentadas como uma das ferramentas para viabilizá-los.
Além da convergência entre os ODS já destacados neste estudo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva propôs, em setembro de 2023 nas Nações Unidas, a criação do ODS 18, que tem como foco a promoção da igualdade étnico-racial e o enfrentamento de todas as formas de discriminação. Esse novo ODS corrige a ausência da luta contra o racismo na Agenda 2030, pois não existe desenvolvimento sustentável sem combater as profundas desigualdades raciais que ainda persistem na sociedade mundial.
Esperamos que a inclusão do ODS 18 promova um ambiente mais propicio à incorporação da questão racial no cooperativismo nacional, pois as cooperativas poderão ser interpeladas sobre a criação e implementação de políticas antidiscriminatórias efetivas, com possibilidade de promover a participação de forma ativa e justa da população negra e de outras minorias étnicas na estrutura de gestão e governança.
O cooperativismo rural tem avançado nas últimas três décadas entre os segmentos mais vulnerabilizados da sociedade brasileira, sobretudo entre os agricultores familiares que enfrentam desvantagens históricas para reproduzir seu modo de vida. A Bahia, estado com maior número de estabelecimentos agropecuários familiares no país, também tem maior proporção da população negra entre as unidades federativas, segundo o Censo 2022 do IBGE, 79,7%. Esse contexto justifica a análise das 30 cooperativas da agricultura familiar, com foco no perfil racial e de gênero dos quadros de associados e dos conselhos de administração, sobretudo nos cargos de presidência e vice-presidência.
As 30 cooperativas agropecuárias investigadas somam 5.890 cooperados, desses, 60,5% são homens e 39,5% são mulheres. Uma estatística que confronta a articulação das trabalhadoras rurais na Bahia na valorização do trabalho feminino rural e o protagonismo nas organizações da agricultura familiar. Entre essas organizações, destacam-se, segundo Velloso e Anjos (2022), as cooperativas que ampliam a atuação política das mulheres rurais. A distribuição de gênero, no conjunto analisado, demonstra a presença predominante dos homens agricultores, ainda que com participação mais destacada das mulheres quando comparada com a presença feminina no cooperativismo agropecuário apontada no sistema OCB.
Atualmente na realidade brasileira há 2 (dois) sistemas de representação das cooperativas, o sistema OCB e a União Nacional das Organizações Cooperativistas Solidárias (Unicopas), constituído para se contrapor à OCB. A Unicopas foi criada pela adesão de 4 (quatro) entidades nacionais, além da Unicafes, a integram a Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários (Unisol Brasil), a Confederação das Cooperativas da Reforma Agrária do Brasil (Concrab) e a União Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis do Brasil (Unicatadores). As cooperativas analisadas, em sua maioria, são filiadas à Unicafes, 19 delas (63,3%), enquanto 5 (16,7%) estão filiadas aos dois sistemas e somente 3 (10%) são vinculadas à OCB, restando mais 3 (10%) que não têm entidade de representação.
Quanto à questão racial, cabe ressaltar, mais uma vez, a ausência do perfil racial dos cooperados nos levantamentos do sistema OCB e no Censo Agropecuário 2017, quando identifica os estabelecimentos vinculados às cooperativas. Dessa forma, a pesquisa, por não ser censitária, adotou a estratégia de indagar sobre a presença da população negra a partir de uma escala no formulário que foi encaminhado às cooperativas indicadas pela OCEB e pela Unicafes. A escala apresenta a inserção da população negra no quadro social a partir de 5 opções, quais sejam: “não tem cooperados”; “muito poucos cooperados”; “poucos cooperados”; “metade dos cooperados”; “mais da metade dos cooperados”. O resultado do conjunto investigado está apontado na figura 2.
Figura 2. Presença da população negra no quadro social das cooperativas da agricultura familiar da Bahia.
Fonte: Base de dados da Pesquisa Cooperativismo e Diversidade (Anjos e Ramos, 2025).
A figura 2 revela que pelo menos 66,7% das cooperativas investigadas têm percentuais expressivos da população negra na composição do quadro social. Ainda que seja um percentual significativo, ainda distante dos 79,7% das pessoas negras do estado apontados pelo recenseamento da população. Em relação aos cargos que compõem no conselho de administração, as diretorias – financeira, administrativa e comercial – apontam resultados que sugerem um perfil um pouco mais equilibrado de gênero, ainda mais com a constatação da presença reduzida de mulheres nos quadros de cooperados, como já foi demonstrado.
Quadro 2. Perfil de gênero nos cargos de diretor financeiro, administrativo e comercial nas cooperativas da agricultura familiar da Bahia.
Cargos |
Homens |
Mulheres |
Total |
---|---|---|---|
Diretor Financeiro |
61% |
39% |
28 |
Administrativo |
32% |
68% |
28 |
Comercial |
54% |
46% |
24 |
Fonte: Base de dados da Pesquisa Cooperativismo e Diversidade (Anjos e Ramos, 2025).
O quadro 2 revela o predomínio masculino na diretoria financeira, 61%, um indicativo de que as questões que envolvem as finanças das cooperativas ainda sejam objeto de domínio dos homens. Em contrapartida, na diretoria administrativa há predominância feminina, 68%, um indício do avanço das mulheres nas funções administrativas por um lado, mas, por outro, a ampliação pode ser atribuída ao fato de estas funções serem mais absorvidas no mundo do trabalho por um contingente maior de mulheres. Os percentuais da diretoria comercial demonstram mais equilíbrio entre os gêneros. Sabe-se que a comercialização é um grande gargalo para a agricultura familiar, esse fato redobra a importância do setor de vendas das cooperativas e, em alguma medida, ter 46% de mulheres assumindo essa diretoria sugere protagonismo para acessar mercados.
Quanto ao perfil racial do conselho de administração, foi possível identificar o pertencimento etnicorracial em consonância com as opções adotadas pelo IBGE. Dessa forma, as cooperativas puderem apontar a raça/cor de cada membro como está demonstrado no quadro 3.
Quadro 3. Atribuição da raça/cor dos cargos de diretor financeiro, administrativo e comercial das cooperativas da agricultura familiar da Bahia.
Cargos |
Branco |
Indígena |
Parda |
Preta |
Total |
|
---|---|---|---|---|---|---|
Diretor Financeiro |
2 |
4 |
0 |
18 |
6 |
28 |
Administrativo |
4 |
4 |
1 |
16 |
5 |
26 |
Comercial |
6 |
4 |
1 |
15 |
4 |
24 |
Fonte: Base de dados da Pesquisa Cooperativismo e Diversidade (Anjos e Ramos, 2025).
O quadro 3 revela que existe a predominância das pessoas negras nos cargos analisados, com destaque aos percentuais daquelas que são apontadas como pardas. No financeiro, as pardas somam 65%, enquanto no administrativo e comercial são 61% e 63%, respectivamente. As pessoas que foram declaradas como pretas têm percentual mais expressivo na diretoria financeira, com 21%, seguido de 19% na administrativa e 17% na comercial.
O perfil racial apresentado evidencia a presença da população negra e da branca na composição dos quadros de associados e nas diretorias analisadas. Mas a ausência dos povos indígenas impõe ponderação na afirmação de que há diversidade racial no cooperativismo da agricultura familiar da Bahia. Para que haja avanço na questão racial, as cooperativas precisam estimular políticas de inclusão, construindo juntamente com gestores e cooperados programas específicos que promovam a capacitação de todos os grupos raciais que compõem a sociedade baiana, principalmente entre os indígenas que estão significativamente sub-representados.
Em relação aos cargos que expressam mais poder nos conselhos de administração, presidência e vice-presidência, o domínio masculino persiste, com uma representação racial mais equitativa entre pessoas brancas e negras. Das 30 cooperativas, 19 (63%) são presididas por homens, restando 11 (37%) por mulheres. O quadro 5 apresenta a distribuição racial da presidência segundo o gênero.
Quadro 4. Perfil racial do cargo de presidência das cooperativas da agricultura familiar segundo o gênero.
Gênero |
Não respondeu |
Branco |
Indígena |
Parda |
Preta |
Total |
---|---|---|---|---|---|---|
homem |
1 |
8 |
0 |
8 |
2 |
19 |
mulher |
0 |
1 |
1 |
4 |
5 |
11 |
Total |
1 |
9 |
1 |
12 |
7 |
30 |
Fonte: Base de dados da Pesquisa Cooperativismo e Diversidade (Anjos e Ramos, 2025).
O quadro 4 demonstra que a presidência é assumida por 44,5% de homens brancos, mais 44,5% de pardos e 11% de pretos. Entre as mulheres que presidem, 36,4% são pardas e 45,5% são pretas. Cabe destacar a presença de uma mulher indígena neste cargo. Os resultados revelam que, embora exista uma presença significativa da população negra na presidência, os brancos ainda preenchem uma parte considerável desse cargo.
Quanto ao cargo de vice-presidência, 19 cooperativas incluíram esse cargo no seu conselho de administração. Dessas, em 12 (63%) o cargo é assumido por homens, restando 7 (37%) por mulheres. Quanto ao perfil racial das pessoas que assumem esses cargos, somente 18 cooperativas informaram. A presença majoritária é da população negra, com 9 homens negros no cargo e 5 mulheres negras, entre essas, 4 foram apontadas como pretas. Nesse cargo, não foi identificado nenhuma pessoa identificada como indígena.
Os resultados apontam que as cooperativas estão avançando na inclusão de diferentes perfis raciais nos cargos com mais poder, porém ainda persistem desafios significativos para serem confrontados. De um lado, a presença de oito homens presidentes brancos sugere a representação desproporcional à população do estado, mas, por outro, destaca-se a presença das mulheres negras, tanto na presidência quanto no cargo de vice-presidente. A pesquisa de Anjos (2023), com mulheres negras presidentes de cooperativas na Bahia, apontou a trajetória educacional e o engajamento dessas mulheres em movimentos sociais rurais como fatores que propiciaram contextos favoráveis para assumir o desafio de presidir. Pesquisas futuras sobre a trajetória das mulheres que estão alterando o domínio masculino nas cooperativas, sobretudo nos cargos de mais poder, demonstrarão as ferramentas utilizadas e poderão subsidiar ações que promovam a diversidade de gênero e raça em todos os ramos do cooperativismo.
A análise realizada demonstra que há participação significativa da população negra nos conselhos de administração das cooperativas da agricultura familiar da Bahia, mas a equidade de gênero está distante de ser efetivada. Persiste a dominação masculina nos cargos de mais poder, ainda que a presença das mulheres negras entre aquelas que alcançaram a presidência possa ser percebida como um indício do protagonismo das agricultoras familiares do estado. Não obstante, cabe uma ponderação em relação à presença majoritária de pessoas que foram declaradas como pardas, com percentuais mais reduzidos das que são apontadas como pretas.
Sabe-se que no Brasil a tonalidade da cor da pele hierarquiza os indivíduos, ampliando ou reduzindo os estigmas e oportunidades que podem propiciar a mobilidade social. Nesse contexto, é importante refletir sobre a condição de homens e mulheres pretas, pois trazem consigo um histórico de exclusão sistêmica, atravessados pelo racismo desde a colonização, com a escravidão, até os dias atuais. O fato, segundo Souza (2022), é que as dinâmicas históricas ainda moldam o acesso às oportunidades e à participação em espaços de poder e de tomada de decisão, principalmente para as pessoas pretas.
Souza (2022) compreende que o racismo não é apenas um fenômeno social isolado, mas uma parte intrínseca do sistema econômico capitalista. O autor argumenta que o racismo não é apenas uma questão de preconceitos individuais, mas uma estrutura de poder que beneficia uma determinada raça em detrimento de outras. Em seus termos, “desde o período colonial, o Brasil foi moldado por uma lógica capitalista que lucrava com os corpos e trabalhos dos negros, estabelecendo uma hierarquia racial que persiste até hoje” (Souza, 2022, p. 205). O autor observa que as políticas públicas, os quadros jurídicos e as conexões econômicas foram e estão sendo modificados para manter o controle racial e garantir a supremacia branca.
Apesar de as cooperativas apresentarem valores mais inclusivos e democráticos, ainda se constituem em espaços de poder dos homens brancos, em sua maioria (Anjos et al., 2022). A presença mais reduzida de homens pretos e mulheres pretas em cargos que expressam relação de poder indica barreiras e preconceitos implícitos, redes de apoio inadequadas e baixo nível educacional oriundo da exclusão histórica do acesso ao ensino superior. Todo esse contexto pode ser atribuído ao racismo, que gerou processos discriminatórios. Ainda que a pesquisa tenha apontado presença majoritária dos pardos na composição do quadro de associados e nos conselhos das cooperativas da agricultura familiar do estado, uma análise dessa classificação racial expressa a dissimulação do racismo à brasileira.
A predominância de pardos pode ser visualizada como um reflexo das políticas de branqueamento histórico no Brasil, com o incentivo à miscigenação como maneira de “melhorar” a população. Essa prática moldou o pertencimento racial das pessoas, influenciando na forma de como se identificam racialmente e como são percebidas, principalmente quando alcançam espaços de poder.
As implicações do racismo sobre as pessoas que são identificadas como pardas e pretas têm nuances na vida prática dessa população, conjuntamente denominada de negra, porque o capitalismo é um sistema racial de supremacia branca (Souza, 2022). Não obstante, o feito das mulheres negras nos cargos de presidência em cooperativas rurais demonstra o enfrentamento às diversas formas de desigualdades, mesmo tendo suas experiências atravessadas pelas desigualdades de classe, gênero e raça.
Para promover maior equidade racial e de gênero no quadro social e nos cargos diretivos, as cooperativas e suas entidades de representação precisam assumir políticas mais vigorosas de inclusão e diversidade. Isso inclui programas que considerem os agrupamentos mais vulnerabilizados historicamente, em especial os povos e comunidades tradicionais, com metas objetivas e com continuidade das ações. Garantir a diversidade não é apenas uma questão de justiça social, é um recurso para orientar nas tomadas de decisão, fortalecendo a aptidão das cooperativas com as necessidades de todos os seus membros e da sua inserção territorial.
Esta pesquisa analisou se há diversidade de raça e gênero nas cooperativas da agricultura familiar da Bahia. As informações coletadas em 30 cooperativas demonstraram resultados animadores na diversidade racial, com presença expressiva da população negra na composição dos quadros de associados e nos conselhos de administração. Mas, no que tange à equidade de gênero, os casos analisados revelaram que, apesar das lutas das mulheres rurais, ainda predomina a presença de homens como cooperados.
A presença mais reduzida de mulheres como cooperadas reflete nos cargos que compõem os conselhos, embora tenha sido constatada presença majoritária de mulheres na diretoria administrativa. Destaca-se, também, a identificação das mulheres pretas nos cargos de presidência, fato que demonstra o enfrentamento ao racismo e sugere maior consciência racial nas lutas das agricultoras familiares da Bahia. Não obstante, os resultados apontam a necessidade de mais reflexão no cooperativismo solidário sobre a participação dos povos e comunidades tradicionais, em especial, a ausência mais expressiva dos indígenas em um estado que tem a segunda maior população desse agrupamento étnico-racial.
As análises apontadas nesta pesquisa poderiam ser mais robustas no debate sobre a diversidade no cooperativismo se um número maior de cooperativas tivesse participado da pesquisa. Neste sentido, cabe apontar os limites encontrados no caminho que podem reduzir a generalização dos resultados aqui alcançados, ainda que o universo da pesquisa tenha envolvido um conjunto de 30 casos. Não há uma base que aponte com algum grau de certeza o número de cooperativas agropecuárias na Bahia, mas a ausência de forma mais expressiva dos povos indígenas sugere que a proposta da pesquisa não conseguiu mobilizar esse segmento ou o cooperativismo ainda não se tornou uma ferramenta para sua inclusão.
A pesquisa demonstrou que a presença de mulheres, sobretudo as negras, em cargos de poder nas cooperativas indica um avanço importante nos processos de resistência que caracterizam as iniciativas da economia solidária, ainda que insuficiente, pois os homens continuam dominando o quadro social e os cargos de mais poder, como a presidência. Essa situação expressa um protagonismo emergente, pois evidencia a necessidade de maior inclusão, com maior proporção de mulheres em todos os âmbitos da organização cooperativa. O uso da perspectiva interseccional nas análises empreendidas revelou a tripla opressão – de classe, raça e gênero – enfrentada pelas mulheres negras rurais e, ao mesmo tempo, permitiu o reconhecimento das suas lutas e conquistas no campo da agricultura familiar. As cooperativas precisam corroborar seus princípios, solidariedade e igualdade, garantindo que a diversidade seja refletida em todos os níveis organizacionais, dessa maneira poderão se tornar verdadeiros agentes de justiça social, na criação de ambientes mais equitativos e mecanismos para contribuir para o desenvolvimento sustentável e inclusivo para todos e todas.
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1 Este artigo é um recorte da pesquisa Cooperativismo e diversidade: uma análise exploratória do perfil racial, geracional e de gênero no ramo agropecuário, apoiada pelo CNPq/Sescoop, edital nº 11/2022, desenvolvida em 120 cooperativas dos estados da Bahia, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará e Rio Grande do Sul, no Brasil.