O sonho e o pesadelo do desenvolvimento: um olhar a partir das desigualdades
Lais Silveira Fraga y Oswaldo Gonçalves Junior
Otra Economía, vol. 13, n. 23: 28-46, enero-junio 2020. ISSN 1851-4715
O sonho e o pesadelo do desenvolvimento: um olhar a partir das desigualdades
El sueño y la pesadilla del desarrollo: una mirada a partir de las desigualdades
Dream and nighmare of development: a view from inequalities
Lais Silveira Fraga*
Oswaldo Gonçalves Junior**
Resumo: Este artigo procura explorar as críticas à ideia de desenvolvimento com intuito de desconstruir uma visão ingênua e excessivamente positiva sobre o tema. Com intuito de contribuir com as reflexões acerca das possibilidades de outra economia para a América Latina, são apresentadas diferentes maneiras de compreender o desenvolvimento a partir de nossa realidade estruturalmente desigual. Partindo dos acúmulos da trajetória dos autores, o artigo apresenta uma revisão da literatura sobre o tema e, num segundo momento, trata das possibilidades das propostas teórico-políticas sobre o desenvolvimento incorporarem as temáticas de gênero, raça e etnia. Para tal, abordamos a maneira pela qual a compreensão da pobreza e da desigualdade como fenômenos complexos têm permitido questionar o desenvolvimento como uma panaceia na superação dos problemas que enfrenta a maior parte da população. São explorados também os limites do desenvolvimento a partir das desigualdades de gênero e, por fim, são apresentados questionamentos feitos a partir da colonialidade do saber e do poder sobre o tema do desenvolvimento, considerando as desigualdades de raça e etnia. Repensar o desenvolvimento a partir dessas questões nos traz alguns desafios. O primeiro deles é a compreensão da maneira pela qual o desenvolvimento informa as formas hegemônicas de produção e organização da sociedade. Um segundo desafio seria imaginar outras possibilidades de produção e organização da sociedade considerando outros modos de vida como ponto de partida.
Palavras-chave: desenvolvimento, desigualdade, gênero, etnia, etnodesenvolvimento.
Resumen: Este artículo busca explorar las críticas a la idea de desarrollo con el objetivo de deconstruir una visión ingenua y excesivamente positiva sobre el tema. Para contribuir a las reflexiones sobre las posibilidades de otra economía para América Latina, se presentan distintas formas de entender el desarrollo desde nuestra realidad estructuralmente desigual. Basado en la trayectoria de los autores, el artículo presenta una revisión de la literatura sobre el tema y, en un segundo momento, trata las posibilidades de las propuestas teórico-políticas sobre desarrollo para incorporar los temas de género, raza y etnia. Para esto, abordamos la forma en que la comprensión de la pobreza y la desigualdad como fenómenos complejos ha permitido cuestionar el desarrollo como una panacea para superar los problemas que enfrenta la mayoría de la población. Se exploran también los límites del desarrollo en función de las desigualdades de género, y finalmente, se presentan reflexiones basadas en la colonialidad del conocimiento y del poder sobre el tema del desarrollo, considerando las desigualdades de raza y etnia. Repensar el desarrollo a partir de estos temas nos trae algunos desafíos. El primero es la comprensión del modo en que el desarrollo informa las formas hegemónicas de producción y organización de la sociedad. Un segundo desafío sería imaginar otras posibilidades de producción y organización de la sociedad considerando otras formas de vivir como punto de partida.
Palabras clave: desarrollo, desigualdad, género, etnia, etnodesarrollo.
Abstract: This article seeks to explore criticisms of the idea of development in order to deconstruct a naive and excessively positive view on the topic. In order to contribute to the reflections on the possibilities of another economy for Latin America, different ways of understanding development from our structurally unequal reality are presented. Starting from the accumulations of the authors' trajectory, the article presents a review of the literature on the theme and, in a second moment, deals with the possibilities of the theoretical-political proposals on development incorporating the themes of gender, race and ethnicity. To this end, we approach the way in which the understanding of poverty and inequality as complex phenomena has allowed us to question development as a panacea in overcoming the problems that most of the population faces. The limits of development are also explored based on gender inequalities and, finally, questions are raised based on the coloniality of knowledge and power on the topic of development, considering the inequalities of race and ethnicity. Rethinking development based on these issues presents us with some challenges. The first is the understanding of the way in which development informs the hegemonic forms of production and organization of society. A second challenge would be to imagine other possibilities for the production and organization of society considering other ways of life as a starting point.
Key-words: development, inequality, gender, ethnicity, ethnodevelopment.
Introdução
Desde 1950 o termo desenvolvimento aparece como uma ideia central para a organização do capitalismo mundial e, especialmente para os países latino-americanos, quando o governo dos EUA começa a propor políticas que “deveriam servir para levar as vantagens do modelo político e econômico dos países ricos (…) para os países que pareciam estar ‘atrasados’” (SOF, 2006: 36).
Segundo Heidemann (2009) até as primeiras décadas do século XX não havia uma política de progresso nos moldes das políticas de desenvolvimento como conhecemos hoje. Foi no período entre guerras, com a crise do liberalismo, que Estado e mercado “passaram a promover em conjunto o desenvolvimento das sociedades” (Heidemann, 2009: 24), através do campo da economia. Na década de 1950 a ‘ideologia’ do desenvolvimento se fez presente, principalmente, na classificação dos países desenvolvidos, subdesenvolvidos e em desenvolvimento, qualificando um status econômico do país.
De um sentido genérico e neutro, desenvolvimento passa a assumir um significado positivo tendo os países industrialmente avançados como modelo desejável para os países tidos como subdesenvolvidos. Foram os efeitos negativos do desenvolvimento e um mal estar geral civilizatório que trouxeram, no final dos anos 1960, a crítica ao desenvolvimento como caminho a ser trilhado. Qualificar o desenvolvimento passou então a ser um debate central. No entanto, diferente da ideia do progresso, que dependia das forças do mercado para se realizar, o desenvolvimento tem o Estado como ator central (Heidemann, 2009).
Nas décadas seguintes, ficou evidente que seguir os passos dos países tidos como desenvolvidos não era algo inquestionável e a ideia de desenvolvimento foi recorrentemente criticada. Nessa perspectiva, o pensamento da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL) foi central para pensar o desenvolvimento a partir da oposição entre centro e periferia do capitalismo e os entraves estruturais para desenvolvimento latino-americano (Bielschowsky, 2000).
Com distintas abordagens, feministas afirmam que “o modelo do país 'desenvolvido' não incluía a igualdade entre mulheres e homens” (SOF, 2006: 37), enquanto ambientalistas e indígenas afirmavam que esse modelo era baseado na destruição ambiental e no massacre de povos originários. Algumas críticas vão além ao afirmar que o desenvolvimento é sinônimo da dominação da natureza e explicitam as conexões entre globalização, desenvolvimento e a questão ambiental (Porto Gonçalves, 2012; Shiva, 1995).
Dessas críticas surgem diversas propostas alternativas de (e ao) desenvolvimento, evidenciando uma disputa pelo termo. Essa diversidade de sentidos se explica, como afirma Lautier (2009), por uma ambiguidade constitutiva que caracteriza a ideia de desenvolvimento:
trata-se de analisar como uma sociedade se desenvolve ou de emitir alguns preceitos sobre a maneira de desenvolvê-la? Na realidade, a visão normativa predomina amplamente: desenvolver é promover um certo tipo de produção, mas também impor um conjunto de normas – a 'porção severa' do ajuste econômico – que fazemos os países em desenvolvimento enfiar goela abaixo para seu próprio bem. O desenvolvimento é, em primeiro lugar, um negócio – e uma linguagem – de desenvolvimentistas (Lautier, 2009: 54).
Essa disputa, portanto, parece ser o cerne do debate do desenvolvimento e aprofundar sua compreensão indica um caminho relevante. Tendo essa ideia como ponto de partida, este artigo tem como intuito percorrer, de maneira exploratória, alguns dos elementos que balizaram a discussão sobre desenvolvimento, para além do debate exclusivamente econômico. Nos interessa, especificamente, as críticas ao desenvolvimento conectadas com as diferentes formas de desigualdade.
Por isso, este artigo procura lançar luz a três elementos para compreender processos relativos a essas dinâmicas: a pobreza e desigualdade, as relações de gênero e as relações de raça e etnia. A aproximação desses três eixos de reflexão com o desenvolvimento possibilita desconstruir uma visão ingênua e excessivamente positiva sobre o tema. Além disso, o artigo almeja contribuir com as reflexões acerca das possibilidades de outra economia para a América Latina a partir do resgate de reflexões sobre outras maneiras de compreender o desenvolvimento a partir de nossa realidade estruturalmente desigual.
O artigo realiza uma revisão de literatura sobre o tema de desenvolvimento a partir de uma experiência de ensino aprendizagem na disciplina Políticas públicas e desenvolvimento no âmbito o Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, da Universidade Estadual de Campinas. Por isso, é preciso destacar que a seleção da literatura e os debates apresentados estão ‘contaminados’ por essa experiência e pelo recorte que realizamos: pobreza e desigualdade; relações de gênero; e etnodesenvolvimento.
Este artigo está estruturado em três partes além desta introdução e das considerações finais. Na primeira abordamos a maneira pela qual a compreensão da pobreza e da desigualdade como fenômenos complexos têm permitido questionar o desenvolvimento como uma panaceia na superação dos problemas que enfrenta a maior parte da população. Na seção seguinte, buscamos explorar os limites do desenvolvimento a partir das desigualdades de gênero e, por fim, na última seção, são apresentados questionamentos feitos a partir da colonialidade do saber e do poder sobre o tema do desenvolvimento, considerando as desigualdades de raça e etnia, com foco no tema do etnodesenvolvimento.
Pobreza, desigualdade e desenvolvimento
A pobreza, ainda que aparentemente visível e socialmente identificada, não se constitui em fenômeno simples quando se tenta compreender suas causas, bem como outras características que permitam compreender seus significados mais profundos. Essa complexidade aumenta quando se acrescenta o tema das desigualdades. A relação entre ambos enseja uma série de cuidados no tratamento desses temas, a começar pela perspectiva relativa, pois uma sociedade pobre não é necessariamente desigual, enquanto sociedades mais abastadas o possam ser. Não obstante, mesmo em uma sociedade desigual onde os níveis de pobreza se mantenham menos extremos, os estratos mais baixos da população podem viver em condições de menor penúria que em sociedades onde a pobreza se apresente mais homogeneamente distribuída, isto é, de uma forma geral, igualmente mais empobrecida. Não demora muito para perceber que esses temas são eivados de julgamentos, subjetividades e valores morais.
Codes, em seu texto “A trajetória do pensamento científico sobre pobreza: em direção a uma visão complexa” (2008), faz uma excelente revisão sobre a evolução do conceito. A autora lembra que a questão da pobreza
veio a se constituir em objeto de investigação científica a partir da Revolução Industrial, quando a preocupação em medir sua dimensão e compreender as suas causas passou a atrair a atenção de pesquisadores e governantes. Desde então, as acepções sobre o problema têm evoluído, em direção a uma compreensão mais complexa sobre a matéria. À noção inicialmente cunhada – a da “subsistência”, que definia a pobreza com base no critério da renda necessária para a sobrevivência exclusivamente física do indivíduo – somaram-se outras formulações mais abrangentes. [... como a] “privação de capacidades”, que se caracteriza por desenvolver uma reflexão de caráter mais abstrato sobre a natureza do objeto, remetendo a discussão aos campos da justiça social, da política, das desigualdades e da subjetividade. Tal evolução conceitual não significa que as formulações mais antigas tenham sido descartadas pelas mais recentes. Observa-se, ainda nos dias de hoje, a coexistência de todas elas. Entretanto, nota-se que os atuais debates sobre o tema tendem a enfatizar a idéia de que se trata de um fenômeno multidimensional e complexo, que concerne a situações em que as necessidades humanas não são suficientemente satisfeitas e em que diferentes fatores estão interligados (Codes, 2008: 7).
Enquanto o conceito de pobreza evolui e ganha complexidade, surgem formas de se mensurar e tratar comparativamente as diferentes realidades regionais. O Produto Interno Bruno (PIB) assume importância inédita e por décadas passa a ser o referencial para expressar o “tamanho da riqueza” e, por consequência, a pobreza ou a riqueza das nações. Sua importância não pode ser negada dada sua natureza enquanto índice comparativo que permitiu, de maneira singular, uma visão global sobre a realidade mundial.
Oficializado como instrumento padronizado de medida internacional em 1937, ainda que adotado somente depois da conferência de Bretton Woods, em 1944, tornou-se referência mundial, pois até então não havia uma ferramenta de cálculo formal sobre as economias mundiais. Não demorou para que o índice começasse a sofrer críticas, que passam pelo método empregado – ainda que pareça exato, parte dos cálculos se baseia em estimativas – e pela questão mais substantiva, de não medir o bem-estar da população. Com o tempo, outras críticas se somam a estas, como a àquelas relativas a ausência no que tange a consideração do capital físico (infraestrutura), capital humano (qualificação da força de trabalho) e capital natural (recursos naturais) nos cálculos. Em suma, sob uma visão crítica, residiriam questionamentos como: aumentar o PIB seria uma receita simplista frente a realidade, pois não se traduziria necessariamente em aumento da riqueza, dados todos os elementos deixados de fora desse cômputo (Dowbor, 2007).
Mas talvez a crítica mais incisiva se ligue a própria incapacidade do PIB de espelhar o desenvolvimento social. Países como o Brasil são didáticos nesse sentido. Entre as 10 maiores economias mundiais, segundo o PIB das últimas décadas, o país esteve por bom tempo igualmente entre os países inseridos no Mapa da Fome da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) e entre os campeões de desigualdade de renda. Ou seja, a contradição entre esses indicadores revela as limitações do PIB enquanto ferramenta absoluta para medir a realidade de um país.
Uma visão complementar é proporcionada pelo Coeficiente ou Índice de Gini, criado em 1912 pelo demógrafo e estatístico italiano Corrado Gini. Ainda que o Gini possa ser utilizado como ferramenta para analisar a distribuição em diversos setores, se tornou clássico seu uso para medir a desigualdade de distribuição de renda, isto é, um importante instrumento de medição das desigualdades sociais e do nível de concentração de renda. Nesse sentido, se tornou quase sinônimo de instrumento que mede o quanto a distribuição de renda entre os indivíduos ou famílias de um país se desvia de uma distribuição perfeitamente igualitária. Variando entre zero, que indica a igualdade perfeita da distribuição da renda, e um, se há a concentração extrema, pelo Índice o Brasil também viria se colocando como um dos países com pior distribuição de renda do mundo.
PIB e Gini, ainda que tragam significativos avanços para uma tomada de perspectiva quanto aos fenômenos sobre a riqueza produzida e sua concentração, suscitam críticas no sentido das suas limitações enquanto indicadores de uma realidade complexa que extrapola dimensões atreladas exclusivamente em fenômenos de “caráter econômico”.
O uso de aspas nesse caso se torna obrigatório, pois procura evidenciar um debate que ganha corpo especialmente com os estudos de autores como Karl Polanyi, que em seu livro “A grande transformação” (2000 [1944]), chama a atenção para o fato que os “fenômenos econômicos” não são puramente econômicos, como o pretendem autores ortodoxos. O autor mostra como que se constrói a submissão da sociedade ao mercado por meio de um pacto político altamente intervencionista no qual o Estado desempenha papel central, não sendo o progresso e o equilíbrio resultantes da "mão invisível" como pretendia a ideologia econômica liberal. Não obstante, de maneira paradoxal, difunde-se a ideologia que todo comportamento contrário aquilo entendido como racionalidade econômica seria visto como interferência externa, decorrendo dessa percepção um entendimento dos mercados como instituições naturais, que surgiriam espontaneamente “se apenas se deixassem os homens em paz” (Polanyi, 2000 [1944]: 274).
Essa perspectiva crítica quanto ao isolamento dos fenômenos econômicos fundamenta a Sociologia Econômica, que rechaça o atrelamento dos mercados às leis mecânicas, à “mão invisível”. Para Swedberg (2004), sob essa perspectiva, ao invés de puramente econômicos, entende-se que todos os fenômenos econômicos são sociais por sua natureza.
Para ele, de forma concisa, a Sociologia Econômica pode ser definida como a “aplicação de ideias, conceitos e métodos sociológicos aos fenômenos econômicos” (Swedberg, 2004: 1). Remetendo a Weber, Swedberg afirma que este ramo das ciências sociais
[...] estuda tanto o setor econômico na sociedade (“fenômenos econômicos”) como a maneira pela qual esses fenômenos influenciam o resto da sociedade (“fenômenos economicamente condicionados”) e o modo pelo qual o restante da sociedade os influencia (“fenômenos economicamente relevantes”). (Swedberg, 2004: 1).
Esse “descontentamento teórico” se refletirá também no campo dos métodos de medição de fenômenos como pobreza e desigualdade. Exemplo maior disso é o nascimento do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), mas também o anterior e inovativo índice de Felicidade Interna Bruta (FIB) que, em outras palavras, podem ser vistos como uma perspectiva de mundo representada pela expressão “a vida não se resume a ‘economia’”. Visão consonante foi expressa pelo ex-senador estadunidense Bobby Kennedy, em 1968, ao dizer que o PIB “mede tudo, exceto aquilo que faz a vida valer a pena”.
Necessário notar que a crítica marxista sobre uma separação entre o “econômico” e o “social” também esclarece nesse sentido. De acordo com Montaño, o ‘social’ seria “visto como ‘fato social’, como algo natural, a-histórico, desarticulado dos fundamentos econômicos e políticos da sociedade, portanto, dos interesses e conflitos sociais” (Montaño, 2012: 271). Nesse sentido, o problema social (a "questão social") não tendo fundamento estrutural, não teria sua solução atrelada à transformação do sistema, isto é, a uma revisão das contradições entre capital e trabalho. Mantendo-se dessa forma ocultada a gênese dos processos geradores da desigualdade e da pobreza, o foco seria desviado para o âmbito da redistribuição, “como uma questão entre cidadãos carentes e o Estado” (Montaño, 2012: 276). Em suma, a questão essencial para Marx, primeiro intelectual a falar sobre a desigualdade sob a perspectiva de um fenômeno entre classes sociais, é de que a desigualdade social está associada inerentemente a esta realidade entre as classes, isto é, atrelada desde sua gênese ao modo de produção capitalista. A perspectiva crítica do marxismo é necessária para situar as tentativas que se faz de se rever o foco essencialmente econômico da perspectiva de desenvolvimento, apontando os limites estruturais das mesmas.
Esse seria o caso do prêmio Nobel Amartya Sen, um dos idealizadores do IDH (1990) que, ainda que busque “oferecer resposta à crise das chamadas teorias clássicas do desenvolvimento [...] sua formulação não pode ser bem compreendida fora desse contexto” (Bonente; Medeiros, 2016: 42). Bonente e Medeiros (2016) colocam sob perspectiva crítica os refinados argumentos de Sen, contrapondo-os a obra de Karl Marx. Reconhecendo que ambos os autores fizeram do tema liberdade um lugar de destaque em suas formulações, tornando suas obras “um manifesto, teoricamente amparado nos campos científico e filosófico, a favor da liberdade humana” (Bonente; Medeiros, 2016: 30), os autores procuram demonstrar que, no limite, Sen não ofereceria um caminho alternativo às questões estruturais impostas pelo capitalismo.
Essa é uma questão central frente ao exposto até agora quando se procurar tratar do tema pobreza, desigualdade, desenvolvimento e formas de aferição. Feita essa ressalva, nos limites que se colocam ao presente artigo, cabe dizer que, para Sen, ainda que a renda seja de suma importância, mais que descolar o foco exclusivo nesse quesito seria imprescindível considerar fenômenos atrelados e suas dinâmicas, como o acesso à renda e o que isso significa em termos de capacidades para acesso a direitos.
A sofisticação argumentativa presente em sua obra “Desenvolvimento como liberdade” (2000 [1999]) é difícil de se traduzir enquanto instrumento de aferição, mas está refletido de certa forma com o avanço que o IDH proporciona em termos de perspectiva mais complexa, via desagregação que se estende para além da variável renda. Nas palavras do economista paquistanês Mahbub ul Haq, parceiro de Sen na empreitada de construção do Índice, a filosofia por trás do IDH seria expressa no objetivo declarado de “desviar o foco do desenvolvimento da economia e da contabilidade de renda nacional para políticas centradas em pessoas”.
Como índice composto, o IDH considera três dimensões que sinteticamente são Saúde (uma vida longa e saudável: expectativa de vida ao nascer), Educação (o acesso ao conhecimento: anos médios de estudo e anos esperados de escolaridade) e Renda (um padrão de vida decente: PIB per capita medido pelo critério da paridade do poder de compra em dólar, isto é, uma estimativa do poder aquisitivo da população conforme região/país). As possibilidades de um olhar desagregado (por dimensão, comparativamente por país, numa perspectiva evolutiva também comparada etc.), além do fato de que como no Brasil se fez a replicação do Índice para a realidade municipal (IDH-M), são aspectos interessantes para se compreender mais a fundo como que a combinação de diferentes aspectos contribui para o desenvolvimento nacional/municipal e o que isso significa em termos de qualidade de vida efetiva para a população, não só pelos efeitos da renda, mas refletido também pela potencialidade contida nos quesitos longevidade e acesso a conhecimento.
Mesmo com os avanços que traz, o IDH, enquanto construção científica contemporânea, não está isento de críticas, como já apontado, inclusive, quando se considera a questão estrutural do capitalismo. Além disso, as dimensões privilegiadas com a não consideração de temas como a emergência ambiental da atualidade é umas delas. Tal crítica mantém ativo o processo de forçar um avanço no sentido de uma maior complexificação dos instrumentos que buscam captar padrões de desenvolvimento e qualidade de vida, incorporando mais elementos e colocando-os frente a frente. Não obstante, ensejos como esse sempre se deparam com desafios tais como a disponibilidade de dados e sua capacidade de operacionalização, que por sua vez expõe uma permanente tensão entre os limites de uma excessiva simplificação e de uma complexidade impraticável.
Fato é que no momento atual em que o capital assume patamares assombrosos em termos de concentração, virtualidade e financeirização, se intensifica a busca por formas que procuram considerar a multiplicidade de fatores que extrapolam a identificação mais direta ou exclusiva da pobreza e da desigualdade com a variável econômica. A sociedade torna-se mais complexa, virtual, imaterial e, portanto, mais desenvolvida, mais “social”, “quanto mais retrocede a barreira natural”, conforme escreve Marx (Marx, 2013: 583 apud Bonente; Medeiros, 2016: 49). Cresce com ela uma racionalidade mistificadora que oculta boa parte dos processos em sua gênese e dinâmicas.
No que tange ao desenvolvimento do capitalismo moderno, uma contribuição fundamental para se compreender esses processos mais a fundo é a obra de Chang, “Chutando a Escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica” (2002). O fio condutor do raciocínio do autor está ancorado no questionamento: “como os países ricos enriqueceram de fato?”.
Com sua obra, Chang fornece uma resposta afirmando que os países em desenvolvimento sofrem pressão dos países desenvolvidos para adotarem as chamadas “boas políticas e boas instituições”, pressuposto para alcançarem o desenvolvimento econômico. Tais políticas seriam aquelas recomendadas pelo Consenso de Washington (políticas macroeconômicas restritivas, privatização, desregulamentação, liberalização comercial e financeira, principalmente). As “boas instituições” seriam as existentes nos países desenvolvidos, especialmente nos anglo-saxões: a democracia, um banco central e um judiciário independentes, e uma forte proteção aos direitos de propriedade. Os argumentos utilizados são que “políticas e instituições boas” foram adotadas pelos países desenvolvidos quando estavam em processo de desenvolvimento, fato que Chang rebate, mostrando que não faltam evidências históricas sugerindo o contrário.
A obra de Chang joga, portanto, um balde de água fria sobre expectativas apoiadas no “bom-mocismo internacional”, tendo como crença que um comportamento exemplar, pautado em uma propalada ética capitalista liberalizante, premiará os seguidores com o troféu do desenvolvimento, admitindo-os a entrar para o seleto clube dos países ricos. Constatada a falácia desse fair play internacional, restam poucas esperanças senão a condição de que a competição será um jogo duro, cujas regras parecem mais iludir do que estabelecer parâmetros e limites de comportamento para os jogadores.
Mas nem todo pessimismo paralisa. Ao se tentar compreender mecanismos de funcionamento para além da explicação puramente econômica, destrinchando-se trajetórias bem-sucedidas, abrem-se possibilidades de reflexão que possibilitariam projetar caminhos alternativos para países e territórios menos desenvolvidos. Esse pensamento aglutina perspectivas mais otimistas e, ainda que não procurem negar a força estrutural exercida por fenômenos como a globalização e o neoliberalismo, enxergam espaços para construção social de alternativas de desenvolvimento.
Essa tem sido a tônica da onda disparada pelo clássico de Robert Putnam, “Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna” (2002 [1993]), na qual o autor enfatiza a natureza da vida cívica, marcada por “cidadãos atuantes e imbuídos de espírito público, por relações políticas igualitárias, por uma estrutura social firmada na confiança e na colaboração” (p. 31). Essa teria sido uma das razões fundamentais para o êxito das instituições na chamada Terceira Itália, termo empregado pela primeira vez pelo autor italiano Arnaldo Bagnasco no final dos anos 1970 para designar um fenômeno de desenvolvimento que ocorria na região Nordeste e Centro daquele país. A análise do crescimento rápido, mas sólido e durador, calcado em pequenas e médias empresas, levou o autor a contrapor aquela região ao Norte desenvolvido, que se encontrava em crise (“primeira Itália”), e ao Sul atrasado (“segunda Itália”).
Na esteira de Putnam, significativos trabalhos fomentaram um movimento em prol do desenvolvimento local e territorial. No Brasil, por exemplo, nas últimas duas décadas foram diversas as iniciativas encabeçadas por entidades para-governamentais que investiram significativos esforços incentivando a formação de APLs (Arranjos Produtivos Locais), Consórcios intermunicipais, Pactos regionais etc. com vistas a fomentar movimentos em rede e induzir a participação como propulsores do desenvolvimento “do local para o global”, com forte inspiração na experiência italiana.
Sob a advertência da impossibilidade de transposição pura e simples do modelo italiano para além de seu território de origem, e a necessária reflexão sobre as características que nos são próprias, por sua vez, originaram obras emblemáticas, como “Razões e ficções do desenvolvimento” (2001), livro organizado por Glauco Arbix, Mauro Zilbovicius e Ricardo Abramovay. Especialmente este último, juntamente com seu colega de departamento José Elie da Veiga, vem produzindo vasta bibliografia sobre o tema do desenvolvimento com ênfase territorial.
Quase que em simbiose com essa produção teórica, nos anos 2000 o tema avança no âmbito das políticas públicas enquanto concretizações da ação do Estado. Exemplos emblemáticos no Brasil são iniciativas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) do governo federal, que o realiza em parceria com estados. Esta importante iniciativa voltada aos pequenos agricultores familiares contribui para construção de mercados mais estruturados ao estimular à produção e garantir seu escoamento via compras públicas, frente a cenários antes marcados por incertezas e instabilidades. Com o Programa Bolsa Família e o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) injeta-se indiretamente recursos nas economias locais, impactando de forma mais evidente em localidades com baixo dinamismo econômico, como pequenos municípios com forte viés rural do interior do país. No mesmo sentido, desconcentra-se o fomento com programas como o Pontos de Cultura, “uma base social capilarizada e com poder de penetração nas comunidades e territórios, em especial nos segmentos sociais mais vulneráveis”, beneficiando iniciativas até então à margem do apoio governamental ou dependentes de mecanismos de cunho personalista para sua sobrevivência.
Ainda que todas essas políticas tenham tido como espinha dorsal a distribuição de recursos financeiros, estudos como o de Walquíria Leão Rego, “Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania” (2013), captam processos de inclusão atrelados a dimensões mais subjetivas e ligados à construção da cidadania. O momento atual turbulento torna pantanosa a prospecção no que tange a verificação do alcance de impactos dessa natureza, especialmente aqueles ligados a efetividade (efeitos duradouros) dessas políticas, mas o sentido por trás dessas iniciativas públicas é inequívoco em termos do campo que pretenderam incidir, isto é, procurar reverter um quadro histórico dramático ligado à pobreza, inclusive em sua forma extrema.
O espectro que ronda iniciativas desse tipo em um país como o Brasil, no entanto, é significativo, dado o caráter acentuadamente conflituoso de uma política como o Bolsa Família, fator que chama a atenção e serve de indicativo. Especialmente porque esta política, se tem como virtude incidir claramente sobre a pobreza, impacta timidamente em termos de combater a desigualdade de renda (aspecto que, se existente, poderia justificar a sua natureza potencialmente conflitiva).
Além dos limites estruturais para as políticas públicas enquanto ações de Estado, tendo como pano de fundo a crítica marxista que condiciona a gênese dos problemas sociais às dinâmicas entre classes e ao modo de produção capitalista, no caso das políticas de transferência condicionada de renda, como o Bolsa Família, com seu caráter focalizado, versus propostas universalistas em que se apoiam visões a favor da renda mínima universal, tais exemplos tornam-se contraposições importantes pois explicitam os limites redistributivos das ações de Estado sob a lógica liberal.
Ainda que não seja um problema exclusivamente brasileiro, dado o acirramento mundial da concentração de renda, no nosso caso, a desigualdade mantém-se intocada, senão pelo seu recrudescimento, com seis brasileiros concentrando a mesma riqueza que a metade da população mais pobre, como mostrou estudo da Oxfam divulgado em 2017 (“A distância que nos une: um retrato das desigualdades brasileiras”). O que choca é que um dado como esse parece incomodar menos que saber que uma família recebe, por meio de uma política pública de combate à pobreza, o valor de R$ 85 mensais (valor do benefício básico em 2018) e, como um recurso dessa monta, tem sua vida alterada para melhor.
Esse fato enseja pensar na desigualdade em sua relação com a democracia. Contribuição de peso nesse sentido é a obra de Piketty, “O capital no século XXI” (2013), que procura alertar para o fato de que, se a crença na mobilidade social se esvair, será dado um duro golpe na democracia liberal, que toma a ideologia da meritocracia como um de seus pilares. Ainda que se possa criticar a meritocracia enquanto mecanismo abstrato e universal, não se pode negar os efeitos sistêmicos que a perda dessa expectativa poderia gerar no imaginário social.
Em outros termos, manter acesa a chama dessa esperança de mobilidade social não seria algo trivial para o capitalismo. E Piketty mostra justamente que é isso que vem ocorrendo, com a manutenção da riqueza e do acirramento das desigualdades, “com os ricos ficando mais ricos”. Completa esse quadro o fato de que esta riqueza não advém do esforço empreendedor, mas da transmissão de heranças e dos correlatos mecanismos fiscais que mantêm essas riquezas intocadas. Se somarmos a esse cenário o fenômeno do chamado “capital improdutivo” (Dowbor, 2017), pode-se perceber que resta muito pouco do ideário liberal no qual se apoiou o desenvolvimento das democracias ocidentais. Não resta também a já desgastada ideia que toma desenvolvimento centrado unicamente em aspectos econômicos, em face do evidente colapso que espreita via esgotamento dos recursos do planeta, como visionou já nos anos 1970 o clássico “Mito do desenvolvimento econômico”, de Celso Furtado (1974). Como procura demonstrar Piketty, por sua vez, a ideia de que “quando sobe a maré, todos os barcos sobem juntos”, numa referência a Kusnetz,2 não produziu efeitos semelhantes senão em momentos específicos do século XX, sob condições especiais. No mais das vezes, alguns barcos subirão mais que outros, num distanciamento crescente que os dias atuais impedem de refutar.
Contraposto a constatações como essas, uma força negadora persiste, envolta em valores que não deixam de reafirmar, com sua existência, o teor essencialmente político da economia. Isso certamente não é novidade e atrela-se ao longo percurso das discussões em torno do conceito ideologia no campo da economia política, mecanismo que condiciona os indivíduos a agirem segundo preceitos que lhe são, inclusive, desfavoráveis.
No processo de desenvolvimento, a pobreza e a desigualdade se mostraram características marcantes e sua persistência coloca em xeque os limites de sustentação desse modelo. Métodos de aferição restritos corroboraram, mesmo que involuntariamente, com o ocultamento de relações de exploração, adiando um debate mais assertivo sobre o enfrentamento de problemas sociais, bem como a instrumentalização de medidas concretas por parte do Estado. A criação de métodos de aferição mais sensíveis e a “humanização” dos índices propiciaram enxergar melhor essa realidade, fortalecendo uma perspectiva crítica sobre a mesma. Contudo, esta melhora não oferece de pronto um caminho para superação das condicionantes estruturais impostas pelo modo de produção capitalista, ainda que o conhecimento científico sobre pobreza e desigualdade possa inspirar arranjos mais virtuosos em termos de desenvolvimento que levem a ampliação da justiça social mediante o aprimoramento das políticas públicas.
Gênero e Desenvolvimento
Uma perspectiva pouco explorada quando se fala de desenvolvimento é a perspectiva de gênero. Ao considerar os sujeitos do desenvolvimento como sujeitos concretos e reais, e não abstratos e universais, os estudos de gênero permitem desvelar questões muitas vezes ignoradas, especialmente se observadas suas intersecções com outros marcadores como classe, raça e etnia.
Segundo Piscitelli (2002) gênero é uma categoria teórica criada a partir do movimento feminista que busca explicar as causas da subordinação das mulheres. Ao considerar que esta subordinação é socialmente construída, gênero possibilita considerar que ela pode, portanto, ser modificada. Por um lado, os estudos de gênero surgem da preocupação em insistir no caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo e, por outro, em refutar explicações que tomam como natural o papel da mulher a partir de explicações biológicas (Scott, 1995). Outra dimensão importante dos estudos de gênero é a introdução da noção relacional no vocabulário analítico, o que possibilita definir homem e mulher em termos recíprocos, evitando o estudo sobre as mulheres de maneira estreita e isolada (Scott, 1995).
Atualmente o campo dos estudos de gênero é diverso e controverso, possibilitando diferentes caminhos de análise, mas gênero como categoria analítica segue sendo uma importante ferramenta teórica que permite não apenas o surgimento de novos temas de estudo, como uma “reavaliação crítica das premissas e dos critérios do trabalho científico existente” (Scott, 1995: 3). Especialmente, gênero permite outro olhar sobre a realidade, possibilitando compreender como as desigualdades afetam, de modos distintos, homens e mulheres nas suas relações uns com os outros e em diferentes lugares e tempos históricos.
A partir das distinções baseadas no sexo e explicadas pelo determinismo biológico, num exercício simplificador da compreensão do que é atribuído socialmente a homens e mulheres, pode-se considerar que o papel das mulheres estaria próximo da natureza, do cuidado, da emoção, da intuição, do âmbito privado, doméstico e familiar. Por outro lado, ao masculino é atribuído a dominação, a competição, a eficiência, a razão, o âmbito público, econômico e político. Extrapolando essa dicotomia, à mulher se atribui o que é tradicional, conservador e estático e ao homem aquilo que é produtivo, moderno, com mobilidade. A mitologia popular situa a objetividade, a razão e a mente como relativas aos homens, e a subjetividade, o sentimento e a natureza como relativas às mulheres (Fox-Keller, 1992). Ainda que essas teorias tenham sido profundamente criticadas, por serem consideradas essencialistas, isto é, considerarem que existe uma essência da mulher e do homem, elas estruturam também nossa maneira de pensar o desenvolvimento.
Por isso, os estudos de gênero têm um importante papel de evidenciar o viés sexista e androcêntrico das teorias, das políticas e do tema deste artigo: do desenvolvimento. A forma como as experiências masculinas são consideradas como sinônimo da experiência de todos os seres humanos escamoteia particularidades e matizes da pobreza, da desigualdade e do desenvolvimento para homens e mulheres.
Uma das críticas mais recorrentes à ideia de desenvolvimento é que este, quando centrado apenas em aspectos econômicos, deixava de fora outros aspectos da vida social, como, por exemplo, as relações de gênero (SOF, 2006).
Bruno Lautier (2009) afirma que embora não haja consenso sobre o termo desenvolvimento e que sua compreensão tenha se alterado ao longo do tempo, há duas questões concernentes ao tema de gênero e desenvolvimento: a primeira é se a própria noção de desenvolvimento remete a uma concepção masculina dos fenômenos sociais e, a segunda, se as mulheres são os “atores invisíveis” do processo do desenvolvimento. Relativo ao primeiro questionamento, o autor destaca que o desenvolvimento é um processo hegemonicamente dirigido por homens (como chefes de Estado, de empresas ou políticos) e constata que as mulheres estão excluídas dos mecanismos de poder político (estatal ou em organizações internacionais, especialistas, consultores) que levam a cabo projetos de desenvolvimento. Em relação ao segundo questionamento, o autor destaca que o “sucesso” do desenvolvimento nos países de terceiro mundo se baseia na exploração do trabalho de mulheres e de meninas, na pluriatividade das mulheres que passam a associar atividades domésticas com trabalhos informais (a busca de água potável, da madeira para aquecer a casa, etc), no papel das mulheres nos mecanismos de solidariedade comunitária o que “explica, em grande parte, o ‘milagre’ diante do qual se espantam, constantemente, os ‘desenvolvimentistas’ culpabilizados: como fazem pra sobreviver?” (Lautier, 2009: 57). Ao primeiro questionamento de Lautier, é importante refletir que não seria suficiente ‘adicionar mulheres e mexer’. Como perspectiva analítica, aponta-se a necessidade de repensar a ideia de desenvolvimento desde a vida das mulheres, questionando perspectivas androcêntricas sobre o tema, e incluindo temas como o cuidado com a vida, trabalho socialmente atribuído às mulheres.
Com isso, o autor constrói a compreensão do papel das mulheres no processo de desenvolvimento, ou melhor, na resistência à crise que ele gera e afirma que esse processo “acentua o banimento das mulheres para uma economia da sobrevivência para a qual ninguém possui nenhum projeto” (Lautier, 2009: 58). Em suma, o autor afirma que o desenvolvimento se foca em uma “visão masculina de mudança social, dirigida ‘por cima’, enquanto as consequências de seu fracasso são sofridas primeiro pelas ‘de baixo’” (Lautier, 2009: 58).
Uma importante contribuição para o debate sobre gênero e desenvolvimento são os estudos da física, ecofeminista e ativista ambiental indiana Vandana Shiva. Em seu livro Staying Alive de 1995, a autora afirma que o progresso é baseado no conhecimento científico e no desenvolvimento econômico. Este desenvolvimento teria gerado a destruição da vida e a ameaça à sobrevivência. Crítica radical do desenvolvimento, a autora afirma que trocamos a santidade da vida, pela santidade da ciência e do desenvolvimento, e que é possível traçar conexões entre a violência sofrida pelas mulheres e a violência contra a vida, e que ambos seriam projetos patriarcais. No entanto, tanto o desenvolvimento quanto ciência são apresentados como neutros e como realizados por sujeitos universais e abstratos.
Nessa perspectiva, para Shiva o desenvolvimento se torna um modelo de domínio e superioridade do homem sobre a natureza e um padrão de domínio e superioridade sobre a mulher e sua exclusão da participação da ciência e no desenvolvimento. Para a autora, o desenvolvimento não é universal, mas sim um modelo bastante particular: moderno, ocidental, colonizador e masculino. E, portanto, não é a busca pelo bem-estar de todos, mas a criação de uma forma específica de riqueza e pobreza.
Vandana Shiva compreende o desenvolvimento como um processo colonizador baseado na exploração e exclusão da mulher, a exploração e destruição da natureza e a exploração e destruição de outras culturas. De maneira peremptória, a autora afirma que o desenvolvimento é uma guerra permanente que fazem seus promotores e sofrem suas vítimas.
Contribuições como a da física indiana são importantes porque tornam evidentes perspectivas sobre o lugar das mulheres no desenvolvimento. Existe uma ideia de que a condição das mulheres fluiria automaticamente com a expansão do desenvolvimento. Não seria necessário, portanto, considerar as mulheres particularmente, nos processos de desenvolvimento. O que ela aponta é que a colonização e a privatização da terra atinge as mulheres de maneira particular, por afetar o direito tradicional do uso da terra.3
Diante desse diagnóstico, a autora propõe falar em mau desenvolvimento, mau em pensamento e em ação ao romper com a unidade cooperativa entre masculino e feminino, que considera como improdutivo o que não gera lucro, que tem o homem moderno ocidental como medida universal, que é reducionista, dualista e linear em oposição à igualdade e à diversidade. Além disso, esse modelo de desenvolvimento considera como improdutivas as sociedades tradicionais, como abordaremos na seção seguinte.
Para a autora, esse modelo de desenvolvimento destrói modos de vida sustentáveis, que têm as necessidades básicas atendidas mediante autoabastecimento, mas que não significa baixa qualidade material de vida. É uma pobreza percebida culturalmente, mas que não pode ser considerada a miséria como privação, isto é a pobreza material. É uma pobreza medida pelo conceito patriarcal de produtividade (produtividade da mão de obra) e pela ideia de progresso que considera aquilo que é tradicional (chamado de arcaico, atrasado) como insuficiente, por exemplo, alimentos não industrializados, casas, roupas e ferramentas feitas artesanalmente.
A autora considera a ciência moderna como a resposta epistêmica a uma organização econômica baseada na descontrolada exploração da natureza. A concepção reducionista do mundo, a revolução industrial e a economia capitalista são componentes, respectivamente, filosófico, tecnológico e econômico de um mesmo processo.
Esses são alguns elementos colocados na relação entre gênero e desenvolvimento. Há também a possibilidade de explorar a questão a partir da crítica à economia, como faz o campo da Economia Feminista (Carrasco, 2003; 2005) que aponta a tensão entre dois objetivos contraditórios: a obtenção de lucro e o cuidado da vida humana e desloca a produção mercantil como objetivo econômico básico e traz à tona os processos de reprodução da vida.4
Como se buscou desenvolver nesta seção de maneira exploratória, os estudos de gênero trazem importantes contribuições para a compreensão e crítica ao desenvolvimento e dos pontos cegos existentes quando não se incorpora a perspectiva das mulheres nas políticas públicas de desenvolvimento.
Raça, etnia e desenvolvimento
A aproximação entre o tema do desenvolvimento e questões de raça e etnia se dá, principalmente, pela via da crítica ao desenvolvimento como um processo modernizador e que, portanto, almejaria a superação daquilo que é considerado arcaico, atrasado, selvagem. O questionamento fundamental da oposição entre o arcaico e o moderno e da suposta superioridade do moderno em relação ao arcaico, do tempo linear evolutivo, entre outros temas foram explorados por diversos campos do conhecimento.
No texto clássico Raça e história, Lévi-Strauss (1970[1952]) traz aportes para pensar o tema uma vez que ao desenvolvimento é imanente a ideia de futuro, de evolução e também o é sua conexão com as ideias de progresso. No desenvolvimento está contida aquilo que o autor chama de a “noção de evolução social ou cultural que se mostra como um processo sedutor, mas perigosamente cômodo, de apresentação dos fatos” (Lévi-Strauss, 1970[1952]: 239).
A associação do desenvolvimento com a ideia de modernização, como superação daquilo que é considerado atrasado parte da ideia de progresso. Para Lévi-Strauss
a humanidade em progresso nunca se assemelha a uma pessoa que sobe uma escada, acrescentando para cada um dos seus movimentos um novo degrau a todos aqueles já anteriormente conquistados, evoca antes o jogador cuja sorte é repartida por vários dados e que, de cada vez que os lança, os vê espalharem-se no tabuleiro, formando outras tantas somas diferentes. O que ganhamos num, arriscamo-nos a perdê-lo noutro e é só de tempos a tempos que a história é cumulativa, isto é, que as somas se adicionam para formar uma combinação favorável (Lévi-Strauss, 1970 [1952]: 245).
Além disso, a ideia de desenvolvimento carrega as marcas do racismo institucional, do fracasso coletivo das instituições em promover um serviço profissional às pessoas devido à sua cor, cultura, origem racial ou étnica (CRI, 2006). Nesse sentido, as concepções de desenvolvimento que são apresentadas podem ser consideradas etnocêntricas, uma vez que tomam o desenvolvimento como uma teoria da modernização, universalista e, concretamente, são uma proposta dos países de primeiro e segundo, para os países de terceiro mundo, tidos como subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento.
Para os países capitalistas chamados de primeiro mundo, a proposta de desenvolvimento foi baseada no processo de transição das ‘sociedades tradicionais’ para uma ‘sociedade moderna’. Esse processo seria algo necessário, desejável e (quase) inexorável. O segundo mundo, por sua vez, apesar de suas diferenças filosóficas e do contraponto ao capitalismo, também propunha o caminho da industrialização das economias e a eliminação das formas arcaicas de organização social.
Pela teoria da modernização, o desenvolvimento econômico teria pretensões universalistas e era algo que os países deveriam desejar a partir da sua incontestável superioridade em relação às formas tradicionais de produção e organização. Apresenta assim, mesmo que de maneira implícita, o anúncio do suposto fim das sociedades tradicionais.
De maneira implícita, o desenvolvimento como modernização traz a ideia de superioridade de uma raça em relação a outra, de um povo em relação a outro. Porto-Gonçalves (2012) afirma que a ideia de desenvolvimento sintetiza que a Europa Ocidental acreditou que poderia se universalizar. O autor ainda afirma que ser desenvolvido é ser urbano, industrializado, tudo aquilo que nos afasta da natureza, afinal “a ideia de progresso – e sua versão mais atual, desenvolvimento – é rigorosamente, sinônimo de dominação da natureza” (Porto-Gonçalvez, 2012: 24). Essa dominação desigual se funda na colonialidade do poder e do saber.
Partindo dessa perspectiva, se torna evidente a necessidade de desvelar a opressão simbólica do imaginário branco como universal, onde a etnização se entende em termos de inferiorização, marginalização e/ou criminalização de homens e mulheres.
Para Anibal Quijano (1995) a ideia de raça é um constructo mental e não um elemento da natureza, é uma categoria que ganha sentido em sociedades fundadas na colonialidade do poder, como a América Latina. O autor afirma que a formação do mundo colonial capitalista deu lugar a uma estrutura de poder cujos elementos cruciais de dominação foram uma novidade histórica e, entre eles, a produção de novas identidades históricas como o índio, o negro, o branco, o mestiço “impostas depois como as categorias básicas das relações de dominação e como fundamento de uma cultura de racismo e etnicismo” (Quijano, 1995: 3). Segundo o autor, nenhuma dessas categorias históricas existiam antes de 1492 e são marcas do nascimento das Américas e a base da colonialidade do atual padrão de poder global. Por isso o autor afirma que a ideia de raça e etnia tem quinhentos anos. Sobre o desenvolvimento, o autor destaca a naturalização da dicotomia moderno/arcaico
Puesto que en la "teoría de la modernización" en ningún caso se intentó explicar porqué unos grupos tenían una "cultura" en lugar de la otra, de alguna manera esa categoría de "cultura" aparece más bien como un modo de referirse a las diferencias "naturales" entre los "desarrollados" y los "subdesarrollados" (Quijano, 2000: 46).
Embora a teoria da dependência, nos anos 1960, já tivesse apresentado a crítica à teoria de modernização capitalista e tivesse tornado evidente a relação perversa e necessária entre desenvolvimento e subdesenvolvimento, é apenas com o etnodesenvolvimento que as questões étnicas e raciais são colocadas em evidência. Isso porque, a teoria da dependência, continuou aceitando a noção de que o desenvolvimento econômico e tecnológico era algo necessário e desejável. Segundo Little (2014), a questão da raça e etnia ganha destaque com o reconhecimento da diversidade cultural e étnica dentro dos estados nacionais. Nos anos 1980, são reconhecidos Estados pluriétnicos e multiculturais e diversas novas constituições na América Latina é reconhecido o direito à diferença cultural (Brasil, 1988; Colômbia, 1991; Equador, 1998; Venezuela, 1999). O desafio posto, portanto, era elaborar padrões de desenvolvimento que levassem em conta a diversidade cultural (Little, 2014).
Esse desafio se coloca pelo reconhecimento dos impactos devastadores dos projetos e políticas de desenvolvimento sobre os povos e comunidades tradicionais que provocaram deslocamentos forçosos e a desarticulação de seus sistemas de organização social (Little, 2014), sendo considerados, nessa perspectiva, em consonância com o pensamento de Vandana Shiva, vítimas do desenvolvimento, uma vez que este marginaliza e desqualifica saberes e técnicas dos povos locais.
Como saída para essa leitura sobre o que é o desenvolvimento, a proposta que ganha destaque é o reconhecimento de múltiplos caminhos do desenvolvimento e das múltiplas modernidades. Diante disso, surge a proposta do etnodesenvolvimento fundada na autonomia e na autodeterminação dos povos e comunidades tradicionais.
Rodolfo Stavenhagen, uma das principais referências sobre o tema, em 1985 já propunha que o etnodesenvolvimento, isto é, “o desenvolvimento de grupos étnicos no interior de sociedades mais amplas”, deveria ser a principal questão da reflexão sobre o desenvolvimento, tanto teórica quanto praticamente. E afirmava que:
Não existe nenhum processo evolutivo unilinear inequívoco que conduza da existência de uma multiplicidade de grupos étnicos a uma única cultura mundial, assim como não existe evolução unilinear de uma sociedade subdesenvolvida a uma desenvolvida. Não há motivo para se supor que os 150 estados-nações (...) sejam, naturalmente, unidades mais viáveis para o desenvolvimento (econômico, social, político, cultural) do que os milhares de grupos étnicos estimados no mundo (...). Em minha opinião, a maior tarefa teórica dos anos vindouros será integrar à teoria do desenvolvimento o nosso conhecimento confessamente parcial sobre a dinâmica étnica (Stavenhagen, 1985: 41).
Guillermo Bonfil Batalla (1982), outra importante referência sobre o tema, afirma que:
por etnodesarrollo se entiende el ejercicio de la capacidad social de un pueblo para construir su futuro, aprovechando para ello las enseñanzas de su esperiencia histórica y los recursos reales y potenciales de su cultura, de acuerdo com un proyecto que se defina según sus próprios valores y aspiraciones (Batalla, 1982: 133).
O etnodesenvolvimento, portanto, combina o tema do desenvolvimento com o reconhecimento da diversidade cultural, apontando a necessidade de reconhecer o recorte étnico aos debates sobre a questão da autodeterminação dos povos e questiona as noções excludentes de soberania nacional. O etnodesenvolvimento também prioriza estratégias voltadas para o atendimento de necessidades básicas; que incorpore a visão interna ou endógena, que aproveite as tradições culturais existentes; que respeite a sustentabilidade no uso dos recursos naturais; que busque a autossustentação e que fomente a participação das populações beneficiadas e o aprofundamento sobre participação e poder político (Stavenhagen, 1985).
O tema da autonomia cultural se coloca como manutenção (ou reconquista) do controle sobre a tomada das decisões que afetam o grupo étnico, como participação direta nas decisões sobre o destino dos recursos naturais contidos no seu território e o controle sobre os recursos culturais do grupo (língua, organização social, práticas tecnológicas, etc) e aponta a necessidade de considerar a autonomia cultural em três planos: político, econômico e simbólico (Stavenhagen, 1985).
Em 1981 há um fato marcante nessa discussão que é a Reunión de Expertos sobre Etnodesarrollo y Etnocídio en America Latina que denunciava o etnocídio a que estavam sendo submetidos os povos indígenas e reivindicava explicitamente o etnodesenvolvimento como um direito dos povos indígenas e um dever dos Estados nacionais.
Álvaro Garcia Linera (2010), sociólogo e vice-presidente da Bolívia, em seu livro “Potência Plebeia”, aprofunda a questão a partir da compreensão do Estado boliviano como racista e excludente para as populações indígenas. O exemplo da Bolívia aponta questões relevantes, ao compor um cenário no qual 62% da população se auto identifica como parte dos povos originários e que 60% se identifica como mestiço.
Por outro lado, o autor aponta que os indígenas ocupam 67% dos empregos vulneráveis e precários e apenas 4% dos qualificados. A renda dos indígenas é cerca de 30% menor do salário dos não indígenas e das mulheres indígenas é de cerca de 60% menor. Além disso, Linera (2010) chama o país de uma república excludente, ao apontar a maneira como os indígenas são percebidos por um Estado Monocultural e monolíngue. Isso porque a Bolívia é uma sociedade multinacional com duas etnias indígenas populosas e altamente coesas: Quéchua (com 3,5 milhões de pessoas) e Aymará (com 2,5 milhões de pessoas). Em oposição ao Estado monocultural, o autor apresenta uma sociedade multicivilizatória, na qual coexistem vários modos de produção, tempos históricos e é reconhecida apenas uma lógica organizativa: a moderna mercantil capitalista.
A Bolívia se iniciou como república herdando a estrutura social colonial. (...) E, com isso, talvez o mais duradouro de todos eles, o sistema de crenças, preconceitos e valores dominantes que havia ordenado os comportamentos coletivos antes do processo de independência: a racialização das diferenças sociais por meio da invenção estatal do “índio" não somente como categoria tributária, mas também, e sobretudo, como o “outro negativo”, ordenador dos esquemas simbólicos com os quais as pessoas davam sentido ao mundo, incluindo os próprios índios (Linera, 2010: 167).
O autor afirma, dessa forma, que o caminho não se aspiraria modernizar de maneira homogeneizante o país (como ocorria sob o antigo desenvolvimentismo latino-americano), e sim a imaginar uma “modernização pluralista” que reconheça o matizamento boliviano.
A opção que aqui propomos é que deixemos de simular modernidade política e homogeneidade cultural numa sociedade predominantemente pré-moderna, multicivilizatória e pluricultural. Isso significa romper a esquizofrenia de elites que durante séculos vêm sonhando em ser modernas e brancas, que copiam instituições e leis modernas para aplicá-las numa sociedade em que os indígenas são maioria e a modernidade mercantil e organizativa é inexistente para mais da metade da população - e assim continuará sendo nas décadas seguintes (Linera, 2010: 196).
O autor aponta a indianidade como um discurso preconceituoso e naturalizador da divisão do trabalho, da hierarquia entre os saberes e da estrutura social de dominação. Nessa visão o índio é visto como aquele que não é capacitado, que deve ser educado, guiado, governado, como sujeito de extorsão econômica e da exclusão política. O exemplo da Bolívia indica uma importante possibilidade de aprofundar a crítica ao desenvolvimento a partir de uma outra realidade que vem sendo construída, considerando os aspectos étnico raciais.
Aproximando o debate do Brasil, embora tenhamos uma situação bastante distinta da Bolívia, seria pertinente pensar o desenvolvimento a partir dos povos e comunidades tradicionais que ganham força com a mobilização dos povos indígenas a partir dos anos 1980 e que nos anos 1990 se populariza principalmente a partir da questão ambiental e a partir da luta por direitos culturais e territoriais dos grupos indígenas e autóctones. Atualmente, o que são considerados povos e comunidades tradicionais inclui os indígenas, mas também outras comunidades como quilombolas, populações agroextrativistas (seringueiros, castanheiros, quebradeiras de coco de babaçu), grupos vinculados aos rios ou ao mar (ribeirinhos, pescadores artesanais, caiçaras, varjeiros, jangadeiros, marisqueiros), grupos associados a ecossistemas específicos (pantaneiros, caatingueiros, vazanteiros, geraizeiros, chapadeiros), e grupos associados à agricultura ou à pecuária (faxinais, sertanejos, caipiras, sitiantes-campeiros, fundo de pasto, vaqueiros) (Cruz, Valter do Carmo, 2012).
Todas essas realidades colocam o imaginário para construção de outra economia diante de uma trama complexa, ainda mais se considerarmos especificamente as questões étnico raciais abordadas neste artigo e centrais para compreender o país e pensar os (des)caminhos do desenvolvimento.
Considerações finais
Este artigo buscou, de maneira exploratória, apresentar elementos para compreender o debate sobre o desenvolvimento diante da desigualdade estruturante da América Latina. Diante de uma trama complexa sobre o tema, optou-se por apresentar três recortes que compõem um quadro de reconhecimento dos limites do desenvolvimento quando se parte dos sujeitos reais e concretos que elaboram as políticas de desenvolvimento e sofrem suas consequências.
O desenvolvimento, assim como seu antecessor: o progresso, tem excluído e subalternizado forçosamente a maior parte da humanidade a partir de um único padrão de vida. O sonho e o pesadelo do desenvolvimento se mantém (Fornet-Betancourt, 2014).
Por isso, as reflexões aqui expostas não incitam ao otimismo. No entanto, a trilha das críticas ao desenvolvimento tem nos levado também à construção de alternativas de desenvolvimento e ao desenvolvimento. Tem nos levado, por outra parte, à busca pela soberania epistemológica (Fornet-Betancourt, 2014) a partir do reconhecimento da colonialidade do poder e do saber e da necessidade de geração e do reconhecimento do conhecimento local e situado para enfrentar seus próprios problemas. As saídas apontam, portanto, para o reconhecimento de outros modos de vida e de conhecimento além do mundo moderno ocidental.
Como afirma Esperanza Gómez Hernández (2014), na busca por descolonizar o desenvolvimento, é urgente reconhecer outros sujeitos do desenvolvimento e visibilizar outros modos de vida
Desde los pueblos colonizados por el mundo moderno occidental, sometidos en la colonialidad del desarrollo, emergen otros discursos que reivindican el derecho a nombrar la vida desde otras concepciones. Son modos de vida a contracorriente. Surgen desde dentro y en los márgenes del desarrollo y la modernidad, se nombran a modo de buen vivir, comunalidad, vivir bien o estar bien. Replantean categorias del paradigma como necesidades, producción, trabajo, calidad de vida y principalmente, la pobreza. (Hernández, 2014: 131).
Repensar o desenvolvimento a partir dessa perspectiva nos traz alguns desafios. O primeiro deles é a compreensão da maneira pela qual o desenvolvimento como um processo colonizador e violento informa as formas hegemônicas de produção e organização da sociedade. As perspectivas apresentadas neste artigo contribuem para isso ao conectar desenvolvimento (suas críticas e suas possibilidades) com a desigualdade e a pobreza, as questões de gênero e as questões étnico-raciais.
Um segundo desafio seria imaginar outras possibilidades de produção e organização da sociedade considerando essas críticas e outros modos de vida e de conhecimento como ponto de partida. Como consequência, pensando o desenvolvimento ‘desde abajo’, o desafio seria aprofundar as possibilidades de participação direta de outros sujeitos. Nas últimas décadas, na América Latina, muitas experiências surgiram desde esse desafio, e em resposta ao Neoliberalismo, baseadas na solidariedade, na autogestão e no enfrentamento das diferentes desigualdades. Trata-se, portanto, de seguir essa trilha de contra-hegemonia.
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Enviado: 13/11/2019
Aceptado: 07/05/2020
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Silveira Fraga, L. y Gonçalves Junior, O. (2020). O sonho e o pesadelo do desenvolvimento: um olhar a partir das desigualdades. Otra Economía, 13(23), 28-46
* Faculdade de Ciências Aplicadas, Universidade Estadual de Campinas, Limeira, São Paulo, Brasil.
** Faculdade de Ciências Aplicadas, Universidade Estadual de Campinas, Limeira, São Paulo, Brasil.
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2 “Growth is a rising tide that lifts all boats” (Piketty, 2014: 20)
3 Para aprofundar esse debate, ver Isabela Noronha (2018).
4 Em Godinho e Silveira (2004) e Farah (2004) são apresentadas diversas perspectivas de políticas públicas e igualdade de gênero.