Aline Mendonça dos Santos, Sob o fio da navalha: relações estado e sociedade a partir da ação política da economia solidária no Brasil, Marília/SP: Lutas Anticapital, 2019.

Marilia Verissimo Veronese

Otra Economía, vol. 14, n. 26: 211-215, julio- diciembre 2021. ISSN 1851-4715

 

 

Reseña de libro

SOB O FIO DA NAVALHA: RELAÇÕES ESTADO E SOCIEDADE A PARTIR DA AÇÃO POLÍTICA DA ECONOMIA SOLIDÁRIA NO BRASIL,

de Aline Mendonça dos Santos

 

              

Marilia Verissimo Veronese*

    MariliaV@unisinos.br

 

 

 

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A obra resenhada tem origem em pesquisa de pós-doutorado da autora, realizada no âmbito de seu trabalho no projeto “ALICE – Espelhos Estranhos, Lições Imprevistas: Definindo para a Europa um novo modo de partilhar as experiências do Mundo” –, coordenado por Boaventura de Sousa Santos, no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Na pesquisa que origina o livro, Mendonça dos Santos teve por objetivo:

 

[...]examinar as dinâmicas institucionais e socioculturais que se estabelecem no interior do aparelho estatal, assim como no plano das relações Estado-sociedade, ao longo da construção de duas políticas federais: Economia Solidária e Desenvolvimento Agrário, assim sendo, uma política mais representativa de demandas urbanas e outra que privilegia as demandas do campo  (Mendonça dos Santos, 2019:7).

 

A autora optou por desenvolver o argumento em relação à economia solidária no que se refere à relação recursiva entre Estado e sociedade civil: como o primeiro pode fomentar a agência da segunda e como a sociedade impacta na gestão do Estado.

Em termos metodológicos, seu trabalho se assume como militante, uma pesquisa na qual a pesquisadora atua no e compartilha do projeto social e político de seu campo de estudo. Tal escolha sempre traz um desafio em termos de rigor analítico, mas a impressão durante a leitura que o resultado é muito bom e a análise crítica é feita sempre que necessário.

Após breve introdução, a obra é dividida em dois capítulos e esta resenha segue tal divisão, como texto. O primeiro capítulo, ‘A economia solidária no Brasil: avanços e contradições da organização popular’, inicia situando a economia solidária no campo mais vasto das outras economias, que inclui uma variedade significativa de posições contra-hegemônicas à economia capitalista dominante. A economia solidária, no Brasil, logrou consistir em um campo específico e uma institucionalidade própria.

A autora mescla referências de sua formação marxista com a crítica de Boaventura Sousa Santos em termos da insuficiência dessa abordagem para explicar os processos contemporâneos de produção das desigualdades. Para tanto, recorre aos conceitos de transição paradigmática, sociologia das ausências e emergências e das linhas abissais. Consegue integrar essas perspectivas teóricas com fluência e criatividade, tratando as outras economias como contraponto epistemológico e empírico ao capitalismo. Outros autores são mobilizados para descrever as experiências e teorizar acerca desse campo, como Jose Luis Coraggio e a “reprodução ampliada da vida”, expressão que cunha em contraponto direto à expressão de origem marxista “reprodução ampliada do capital”; e, é claro, o grande Paul Singer, cujo nome evoca a trajetória do fenômeno analisado no livro.

Para a caracterização empírica do campo da economia solidária no Brasil, lança mão dos dados dos Mapeamentos Nacionais, trabalhando com os mapas, gráficos e percentuais que os dois levantamentos consolidados produziram. A riqueza desses dados não se perderá tão cedo, pois a despeito de ser o campo bastante dinâmico e o tempo estar passando, a profundidade dos estudos captou uma diversidade de dados longe de já terem sido esgotados, em termos analíticos.

Essa primeira parte, portanto, tem uma forte marca da historicização do fenômeno investigado: são narrados o início e os destinos da institucionalidade da economia solidária no Brasil, a criação da SENAES (Secretaria Nacional de Economia Solidária) e a formação e composição do FBES (Fórum Brasileiro de Economia Solidária). O mais interessante dessa parte do livro é que a autora dá conta da diversidade de vozes e conflitualidades que estiveram/estão presentes nesse processo. Dá voz a diferentes sujeitos, citando-os e procurando trazer essa diversidade de entendimentos, para analisá-la.

 

Havia [...] duas perspectivas diferentes a respeito do papel do Fórum Brasileiro de Economia Solidária. Uma leitura que compreende o FBES como espaço de interlocução com o Estado para garantir os interesses relacionados as bandeiras de luta da economia solidária e outro grupo que estabelece uma relação mais política do FBES, como expressão do movimento de economia solidária, a fim de criar as condições para a realização do projeto político de sociedade que a economia solidária almeja que é mais amplo que as bandeiras de luta especificamente. Neste caso, a compreensão do FBES como ferramenta oscila entre movimento social e grupo de interesse. (Mendonça dos Santos, 2019: 56).

 

Ao longo do texto está em análise a relação entre as políticas do Estado e a sociedade civil, essa miríade de movimentos sociais, grupos de interesse, sujeitos individuais e coletivos, sempre em conflito.

 

Talvez a economia solidária não seja capaz de transformar a sociedade, mas o fato é que a economia solidária avança e os esforços dos sujeitos envolvidos nesta dinâmica não podem ser silenciados, desperdiçados e produzidos como inexistentes (Mendonça dos Santos, 2019: 37).

 

Etapas marcantes do processo são rememoradas e descritas, como o evento dos Fóruns Sociais Mundiais (FSM) e as articulações decisivas que possibilitou, para que a trajetória da economia solidária avançasse. Naquele momento, início do século XXI, o mundo se engajava na resistência ao que estava representado no Consenso de Washington e no Fórum Econômico Mundial, e esse movimento foi fundamental para alavancar o movimento da ecosol no Brasil.

O fato de a pesquisa ser militante, ou uma pesquisa participante em sentido forte (a autora faz parte do movimento que estuda), faz com que ela provavelmente tenha tido de lidar com uma grande quantidade de dados empíricos, registrados ao longo dos anos. Parte deles é mobilizada e apresentada no livro, embora a leitura sugira que haja muito mais. Imagina-se que tal riqueza de dados possa, inclusive, gerar outros trabalhos futuros.

O segundo capítulo, ‘A representação do Estado brasileiro nos últimos anos: uma análise a partir da Política Nacional de Economia Solidária’, aprofunda o debate teórico das concepções do Estado em relação com a sociedade e o manejo da ‘questão social’, tomando como foco o desenrolar da política de Economia Solidária no Brasil, os 13 anos entre seu surgimento em 2003 e sua interrupção quando do golpe de 2016.

A autora tem formação em Serviço Social e está sempre atenta aos possíveis papéis do Estado e da sociedade civil, a partir de uma base marxista, mas complementando e atualizando seu fazer analítico informada por perspectivas pós-coloniais e decoloniais, que também foram relevantes em sua formação doutoral e pós-doutoral.

Enfoca, portanto, desde o início da institucionalização da ecosol no país, a partir do:

 

Pacto Político assumido a partir da primeira gestão do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, vulgo Lula, que o Brasil passou a presenciar uma relação mais estreita entre Estado e Sociedade em nível federal– não na mesma dimensão que as escalas locais (Mendonça dos Santos, 2019: 6).

 

Pacto este que é analisado em suas contradições e ambiguidades, ou seja: o reconhecimento das conquistas e políticas de caráter emancipatório, mas também a crítica dos aspectos em que falhou, ou foi negligente, ou serviu à manutenção do status quo para poder mudar alguns elementos pontuais. Sabendo que a conformação do Estado é fruto das lutas de poder de forças e interesses contraditórios, assume o pressuposto que no Brasil o Estado é capitalista e atende às demandas da burguesia, mas que também há certa porosidade que, em certas circunstâncias, permite maior participação das forças populares.

A sessão vai se ocupar de responder indagações tais como: Qual o perfil organizacional do Estado brasileiro? Quais os embates políticos entre Estado e sociedade? Como que a política de economia solidária refletiu a ação do Estado brasileiro no período analisado (os 13 anos em que a política esteve ativa)? Qual a contribuição das políticas “emancipatórias” para possíveis mudanças em nível do próprio Estado? (Mendonça dos Santos, 2019). Basicamente, como o Estado tem lidado com as variadas expressões da Questão Social.

Para respondê-las, retrocede a um período anterior, as lutas que colocaram novos atores em cena no período imediatamente anterior e posterior à redemocratização, nas décadas de 1970 e 80, e resultaram na Constituição Federal de 1988, de cariz social-democrata; bem como a chegada do neoliberalismo ao Estado brasileiro, com Collor de Melo, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, nos anos 90.

Segue a análise com a ‘era Lula’ trazendo dados que demonstram que, a despeito das ambiguidades e continuidades, houve nesse período significativa aproximação das forças democráticas da sociedade com o Estado:

 

(...) de 1941 a 2016 foram realizadas 156 Conferências Nacionais, das quais 115 ocorreram entre 2003 e maio de 2016, ou seja, mais de 73% do total de Conferências Nacionais ocorreu nos últimos treze anos, abrangendo 45 áreas setoriais em níveis municipal, regional, estadual e nacional e mobilizando mais de dez milhões de pessoas no debate de propostas para as políticas públicas. (Mendonça dos Santos, 2016, apud Mendonça dos Santos, 2019: 75).

 

O Estado, assim, é concebido como arena de lutas políticas, em nível global e nacional, com seus desdobramentos locais em termos de institucionalidade. A autora argumenta que ocorre, no caso brasileiro, um misto de modelos que podem ser descritos como ‘Estado-empresário’, a serviço dos grandes agentes econômico-financeiros; ‘Estado-novíssimo-movimento-social’, sujeito ao princípio da comunidade, formado pela cooperação, solidariedade, participação, equidade, transparência e democracia interna (Mendonça dos Santos, 2019) e ‘Estado-heterogêneo’, que Boaventura Santos define como aquele em que diversos interesses são manifestos, mas não se relacionam ou têm qualquer reciprocidade entre si. Também nomeia esse último tipo como ‘Estado bipolar’, que tenta ora atender demandas da classe trabalhadora, ora se submete às demandas da camada dominante.

O problema do governo de coalizão também é tematizado, já que favorece sobremaneira a ‘bipolaridade’ e pode chegar a conflitos insolúveis, que foi justamente o caso do segundo governo Dilma, vítima de um impeachment sem legitimidade (e por isso chamado de golpe) em 2016. Essa discussão acaba por aprofundar a definição de ‘Estado heterogêneo’, trabalhando o Brasil recente como registro empírico, a partir da política da ecosol. Esta, justamente por causa das ambiguidades da ‘bipolaridade’, ocupou sempre um lugar periférico em termos de ocupação de espaços e de orçamento.

Outro ponto nevrálgico foi a impossibilidade de criar um marco legal adequado à economia solidária no país. O direito/amparo ao trabalho associado e a figura da propriedade coletiva inexistem ainda, mesmo após os 13 anos de institucionalização da política em nível federal. A relação sempre conflituosa com outras instâncias do governo (são citados o Ministério do Desenvolvimento Social, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Ministério da Educação) e os desafios à construção da efetiva intersetorialidade também impactaram muito no alcance e possibilidades da SENAES. Apesar disso, é reconhecido que a Secretaria possibilitou realidades mais próximas às do Estado-como-novíssimo-movimento-social, pois “sua inserção no aparelho governamental introduz a possibilidade de conquista de políticas capazes de alargar sua feição socialmente mais compromissada com o trabalho” (Mendonça dos Santos, 2019: 96).

A institucionalidade própria das articulações da sociedade civil com o Estado (nomeadamente o FBES e as conferências nacionais) é também objeto do inquérito da pesquisadora, que deles participou e pode descrevê-los com conhecimento de causa. Os mecanismos de democratização do processo possibilitaram que os representantes dos trabalhadores, no FBES, tivessem os gestores públicos como seus pares. Essa relação, embora facilitadora do diálogo mais horizontal, colocou uma interferência direta (em termos de recursos humanos e financeiros) do Estado no seio do movimento, o que é gerador de conflitos na identidade e práticas deste, podendo gerar rumores de “cooptação” (embora a autora não endosse esse ponto de vista).

Nas notas finais do livro, Mendonça dos Santos conclui pelo desequilíbrio entre a díade crescimento econômico x desenvolvimento social durante esses 13 anos, com expressiva predominância do foco no primeiro elemento, em termos de alocação de recursos orçamentários e humanos. Propugna que o Estado brasileiro, no período analisado, sofreu um processo dialético em que avanços e retrocessos oscilaram entre os interesses do Estado e da sociedade civil.

Contudo, pontua que houve potencialidades emancipatórias que resultaram em aprendizados importantes, derivados das políticas de cunho emancipatório com a oportunidade de disputar os recursos do Estado “por dentro”. A análise do livro é circunscrita até à época do governo ‘interino’ de Michel Temer, que o Movimento entendeu que não deveria tomar como um interlocutor legítimo (apesar dessa posição não ser unânime entre seus membros).

Contudo, se pensarmos na realidade brasileira hoje (2021), com a destruição das políticas sociais causada por dois anos e meio de governo Bolsonaro, tais aprendizados poderão ser muito importantes nas tentativas futuras de reinventar a democracia brasileira e disputar novamente espaços em um eventual governo democrático.

 

 

 

Referencias:

 

Mendonça dos Santos, A. (2019). Sob o fio da navalha: relações estado e sociedade a partir da ação política da economia solidária no Brasil, Marília/SP: Lutas Anticapital.

 

 

 

Enviado: 14/10/2021

Aceptado: 18/10/2021

 

 

 

Cómo citar este artículo:

 

Verissimo Veronese, M. (2021). Aline Mendonça dos Santos, Sob o fio da navalha: relações estado e sociedade a partir da ação política da economia solidária no Brasil, Marília/SP: Lutas Anticapital, 2019. Otra Economía, 14(26), 211-215.

 

 

 



* Docente e pesquisadora no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UNISINOS, São Leopoldo, Brasil.

 

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