Economia popular: para além do trabalho informal. Reflexões desde a economia solidária e a autogestão
Gustavo M. de Oliveira
[email protected]
División de Estudios sobre el Desarrollo, Centro de Investigación y Docencia Económicas (CIDE) Ciudad de México, México. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1994-3864
Recibido: 13/02/2024 - Aceptado: 25/05/2024
Resumo: Dentro da grande diversidade de abordagens sobre a informalidade, neste trabalho nos concentramos em sua dimensão laboral, e partindo disto apresentamos algumas reflexões críticas sobre o difuso universo da economia popular. Neste contexto, uma pergunta que nos acompanhou ao longo do presente texto, foi: é correto afirmar que o trabalho no âmbito da informalidade é mais precário e indigno do que o trabalho no âmbito da formalidade? Disto, e já orientando nossa posição teórico-política sobre o tema, o objetivo aqui era muito simples e direto: resgatar, nos termos das relações econômicas e de trabalho, o que “há de bom” na informalidade. Para alcançá-lo, primeiro tentamos responder a pergunta “formalizar para quê?”. A partir disto, sistematizamos algumas reflexões sobre economia popular, economia solidária e autogestão. Em termos de reflexões finais, consideramos que a autogestão, para além de seus traços puramente organizativos, tem a capacidade de transcender em direção à reconexão de economia e política como dimensões inseparáveis no desafio de auto-organizar a vida em comum, a partir do âmbito comunitário, e de realizar um salto da informalidade laboral a uma forma de trabalho e de vida dignos.
Palavras-chave: Informalidade, Economia popular solidária, Autogestão.
Resumen: Dentro de la gran diversidad de enfoques sobre la informalidad, en este trabajo nos hemos concentrado en su dimensión laboral, y partiendo de eso presentamos algunas reflexiones críticas sobre el difuso universo de la economía popular. En este contexto, una pregunta que nos acompañó a lo largo del presente texto fue: ¿es correcto afirmar que el trabajo en el ámbito de la informalidad es más precario e indigno que el trabajo en el ámbito de la formalidad? De este modo, y orientando ya nuestra posición teórico-política sobre el tema, el objetivo aquí era muy simple y directo: rescatar, en términos de relaciones económicas y laborales, “lo bueno” de la informalidad. Para lograrlo, primero intentamos responder a la pregunta “¿formalizar para qué?”. A partir de esto, sistematizamos algunas reflexiones sobre economía popular, economía solidaria y autogestión. En términos de reflexiones finales, consideramos que la autogestión, más allá de sus rasgos puramente organizativos, tiene la capacidad de trascender hacia la reconexión de economía y política como dimensiones inseparables en el desafío de autoorganizar la vida en común, desde el ámbito comunitario, y de realizar un salto de la informalidad laboral a una forma de trabajo y vida dignos.
Palabras clave: Informalidad, Economía popular solidaria, Autogestión.
Summary: Of the many different approaches to informality, in this work we have focused on its labor dimension, and from there we present some critical reflections on the diffuse universe of the popular economy. In this context, a question that accompanied us throughout this text was: is it correct to assert that work in the realm of informality is more precarious and unworthy than work in the realm of formality? Thus, and already guiding our theoretical-political stance on the subject, the objective here was very simple and direct: to highlight, in terms of economic and labor relations, “the good” of informality. To achieve this, we first tried to answer the question “formalize for what?”. From this, we systematized some reflections on the popular economy, the solidarity economy, and self-management. In terms of final reflections, we consider that self-management, beyond its purely organizational features, has the capacity to transcend towards the reconnection of economy and politics as inseparable dimensions in the challenge of self-organizing communal life, from the community sphere, and to project itself as a leap from labor informality to a form of dignified work and life.
Keywords: Informality, Solidarity Popular Economy, Self-management.
Dentro da grande diversidade de abordagens sobre a informalidade, neste trabalho nos concentramos em sua dimensão laboral, e partindo disto apresentamos algumas reflexões críticas sobre o difuso universo da economia popular. Neste âmbito, em estrito, há um entendimento geral de que algo que está fora da ordem deveria fazer parte dela. Ou seja, presume-se desde o princípio que a ordem do Estado e do capital representa o formal, e que então tudo o que está fora da ordem estadista-capitalista é parte d’o informal e deveria deixar de sê-lo.
O trabalho informal, além de ser visto de maneira depreciativa, é considerado também como trabalho precário e indigno. Acontece que o trabalho informal é uma dura realidade muito presente na América Latina. Por exemplo, em países como Brasil, Colômbia e México, a taxa de trabalho informal em períodos recentes foi de 39,7% (IBGE, agosto de 2022), 58,2% (DANE, novembro de 2022) e 56,5% (INEGI, dezembro de 2021), respectivamente; ou seja, com exceção do Brasil, nos demais países mencionados como exemplo, mais da metade da população considerada economicamente ativa está trabalhando na economia informal.
Neste contexto brevemente mencionado, o objetivo neste texto é muito simples e direto: resgatar, ao refletir sobre economia popular, economia solidária e autogestão, o que “há de bom” na informalidade. Por exemplo, é correto afirmar que o trabalho no âmbito da informalidade é mais precário e indigno do que o trabalho no âmbito da formalidade? Ao refletir sobre essa e outras questões relacionadas, o que fazemos aqui é compartilhar algumas reflexões críticas sobre o que se poderia chamar de pensar a dicotomia formal-informal, a economia popular, a solidária e a autogestão contra e além da integração capitalista.
Para cumprir com esse objetivo, tentaremos defender dois argumentos principais. Em primeiro lugar, que uma saída digna da informalidade só poderá vir do que hoje é conhecido como economia popular, não da formalidade capitalista. Ou seja, não é possível encontrar no âmbito das relações socioecológicas capitalistas a resposta para superar a informalidade em direção a uma forma digna de trabalhar e viver. O segundo argumento é aquele que advoga pela necessidade de defender a economia solidária e a autogestão contra a formalidade capitalista, ou seja, contra a integração àquela formalidade. É a partir desses dois argumentos que desenvolveremos dois pares de reflexões nas seguintes seções.
A partir daqui o texto está organizado da seguinte forma. Primeiramente, apresentamos algumas reflexões em torno da dicotomia formal-informal. Em segundo lugar, compartilhamos algumas linhas sobre o difuso universo da economia popular. Em seguida, tentamos situar a economia solidária e suas diferentes abordagens no contexto das discussões sobre economia popular. Por último, buscamos defender a economia solidária a partir de sua vertente anticapitalista, ou seja, da autogestão como uma saída digna da informalidade.
Antes de continuar, no entanto, é importante mencionar que este texto é muito mais teórico do que empírico. No entanto, o que a pessoa leitora encontrará são reflexões teóricas ancoradas em estudos anteriores nos quais os sujeitos são muito concretos. Ou seja, trata-se de sujeitos envolvidos em experiências de agroecologia, coleta de materiais recicláveis, cooperativas de habitação e consumo, mercados solidários, empresas recuperadas, moedas e bancos comunitários, bancos de tempo, produção de alimentos, roupas, artigos de higiene pessoal, artesanato, prestação de serviços, etc.
1. Entre o formal e o informal: formalizar para quê?
Partimos da noção de Alejandro Portes e William Haller (2004) para compreender que o conceito de informalidade se gesta como resultado de uma série de estudos sobre o mercado laboral urbano na África, onde se encontram dinâmicas e a diversidade de atividades econômicas em que as pessoas se desempenham para viver cotidianamente. Esta caracterização dinâmica do setor informal terminou redefinindo-se como sinônimo de pobreza. Assim, esta caracterização da economia informal, como segmento excluído das economias nacionais menos desenvolvidas, acabou consagrada em muitos estudos sobre pobreza urbana e mercados de trabalho realizados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), Programa Regional de Emprego para a América Latina e o Caribe (PREALC) e o Banco Mundial (Idem, 2004).
O que está de fundo dentro desta argumentação, são preconceitos sofridos sob o imaginário de que o trabalho informal é precário e indigno para grandes setores da população. É neste contexto que surge a pergunta: “Formalizar para quê?”; que tentaremos responder mais adiante. No entanto, ainda antes é importante mencionar que, a partir dessa perspectiva da economia dentro do universo mais amplo das discussões sobre informalidade, seria interessante abordar primeiro a questão do que é economia, ou seja, o que se entende por economia, para então poder responder por que se deve – ou não – lutar pela formalização da economia e do trabalho.
Nesse sentido, desde o nosso ponto de vista, e a partir de uma ideia de conceito mínimo de economia – ou seja, para além de todas as discussões da macroeconomia e derivados –, economia significa a gestão das necessidades materiais e do trabalho com o fim de afirmar e reproduzir a vida em comum. A partir daí, o que poderá mudar são as formas de gestionar as necessidades materiais e o trabalho, que podem ser muito heterogêneas, seja dentro do campo do informal, que também é muito heterogêneo, seja dentro do formal, onde também é possível encontrar diferentes formas de gestionar as necessidades materiais e o trabalho em direção à afirmação e reprodução da vida em comum.
Voltando à pergunta “formalizar para quê?”, gostaríamos de salientar, em primeiro lugar, a partir de inspirações teóricas, que o que se chama economia informal poderia ser lido, conforme Aníbal Quijano (1998), como o polo marginal da economia. Por outro lado, e considerando que não se trata de sinônimos, outra maneira de ver seria a de Verónica Gago (2014), que, inspirada em Bolívar Echeverría, reflete sobre a ideia de economia barroca para se referir-se ao caráter popular de uma infinidade de formas econômicas registradas na América Latina.
Para Quijano (1998: 100-101), o polo marginal da economia reúne
las actividades económicas (productivas y comerciales) de trabajadores sin empleo, ni ingresos salariales estables; en las que se usa recursos residuales (los que no usa el capital) o de baja calidad y poco precio; que tienen muy baja productividad; ninguna o muy elemental división del trabajo; en la que se intercambia trabajo o fuerza de trabajo, principal pero no exclusivamente entre miembros de una misma familia y de manera privada; y cuya rentabilidades tan bajas que no permite sino ingresos para la sobrevivencia familiar o la reproducción de la misma actividad económica, sin ningún margen de acumulación o de capitalización.
Gago (2014: 20), por sua vez, utilizou o termo economia barroca
para conceptualizar un tipo de articulación de economías que mixturan lógicas y racionalidades que suelen vislumbrarse –desde las teorías económicas y políticas– como incompatibles. Bolívar Echeverría ha vinculado lo barroco con un arte de la resistencia y la sobrevivencia propio del momento colonial. Lo barroco latinoamericano persiste como conjunto de modos entreverados de hacer, pensar, percibir, pelear y laborar. Lo cual supone la superposición de términos no reconciliados y en permanente re- creación.
Nesse sentido, sem discordar de Quijano, mas pensando muito mais a partir das reflexões de Gago, dizer economia barroca é reconhecer toda a sua diversidade, além de reconhecer sua heterogeneidade e suas diferenças mais marcantes. Ou seja, há um mundo inteiro, uma diversidade gigante de formas e práticas que se pode encontrar nisso que, tanto teórica quanto coloquialmente, é chamado de economia popular – da qual a economia informal faz parte.
Desde outra perspectiva, mais ligada aos sujeitos da economia informal, Paul Singer, grande referência da economia solidária no Brasil, chamou os mencionados sujeitos de subproletarios, ou seja, ainda abaixo do proletariado – obviamente referindo-se a Marx – estão as pessoas sem emprego algum ou que “ganham a vida” na economia informal; ou no polo marginal da economia, segundo Quijano, ou na economia barroca ou popular, segundo Gago. Para Singer (1981:22),
O proletariado se compõe de duas partes: uma empregada pelo capital ou pelo Estado que chamamos de proletariado propriamente dito e outra composta pelos que de fato ou potencialmente oferecem sua força de trabalho no mercado sem encontrar quem esteja disposto a adquiri-la por um preço que assegure sua reprodução em condições normais, constituindo assim um proletariado virtual ou subproletariado.
Vale a pena destacar que, desde o nosso ponto de vista, tanto as contribuições de Quijano quanto as de Gago e Singer são muito importantes para a discussão proposta aqui. Isso ocorre porque, além de escolher se essas são definições mais adequadas que outras, desempenham um papel essencial ao indicar que, quer seja a partir da perspectiva dos “lugares” – concretos e simbólicos – (com Quijano e Gago), quer seja a partir dos sujeitos (com Singer), todas ajudam a estabelecer as bases para um diagnóstico correto em termos da dicotomia formal-informal: a economia se reproduz tanto em termos da formalidade capitalista quanto da grande diversidade do informal, o que exige uma visão mais ampla para compreender em profundidade suas complexidades, especialmente da economia informal. Considerando isso, para nós, a ideia de economia popular de Gago talvez seja a que mais contribua.
Antes de passar ao segundo ponto de reflexões, gostaríamos de enunciar explicitamente a nossa posição frente a pergunta “formalizar para quê?”. Formalizar para ser explorado? Formalizar para ver todo o produto do seu próprio trabalho escapando para uma única pessoa, ou seja, para quem compra seu trabalho? Formalizar para não poder participar das decisões sobre seu próprio trabalho, ou seja, sobre sua própria vida? Formalizar para trabalhar das 6 da manhã às 9 da noite? Formalizar para às vezes ter que se deslocar por 4 ou até 6 horas diárias apenas para chegar ao trabalho? Por tudo isso, a pergunta que permanece é: “formalizar para quê?”. Uma possível resposta é que nem tudo deveria ter como horizonte a integração capitalista.
Por último, vale a pena mencionar que desde a perspectiva do direito, a formalização significa o reconhecimento e a garantia de direitos e benefícios trabalhistas, e supostamente também deveria significar segurança e estabilidade econômica. No entanto, é necessário também pensar em que medida esse reconhecimento de direitos implica uma forma mais justa e digna de trabalhar e viver. É importante considerar, ainda, que as afirmações anteriores de nenhuma maneira buscam minimizar e menos ainda desconsiderar a luta histórica de sindicatos, partidos de esquerda e movimentos sociais ligados ao trabalho. Para nós, é evidente que essas lutas se registram no âmbito das lutas populares que buscam melhores condições de trabalhar e viver. De toda forma, não é demasiado considerar que as lutas por direitos laborais, com exceção do anarcossindicalismo de inícios do século XX, muito pouco buscou a superação do modo de produção capitalista. Talvez uma abordagem mais disruptiva sobre os direitos laborais seja aquela que os vê como meio para a emancipação humana, e não como horizonte de trabalho e vida dignos.
Buscando encontrar sínteses sobre o tema, perguntamos: toda essa diversidade, toda essa heterogeneidade da economia informal, deveria estar buscando formalizar-se? Do nosso ponto de vista, a resposta é, claramente, não!
2. O heterogêneo universo da economia popular
Frente ao exposto até aqui, o que é preciso reconhecer e aceitar é que a economia informal existe, é real, como foi mencionado na seção introdutória, e por isso é necessário pensá-la, investigá-la, ou seja, refletir sobre suas dinâmicas atuais, seus próprios símbolos e, se assim se desejar, sobre como seria possível transcender para uma forma digna de atividade econômica. Para fazer isso, o primeiro ponto que consideramos importante reforçar é que todo o trabalho tratado como informal é aquele que não está, por assim dizer, registrado e controlado pelo Estado, o que por sua vez significa estar também controlado pelo próprio mercado (ou seja, o capital).
Embora em certa medida economia informal e economia popular possam ser consideradas expressões e conceitos que se referem a fenômenos similares, a partir daqui começaremos a nos referir apenas a economia popular, não mais a economia informal; fazemos isso com dois objetivos: em primeiro lugar, porque conceitualmente a economia popular engloba a economia informal; e, portanto, contribui ainda mais para a heterogeneidade e potência da discussão. Ou seja, se se pensa a partir do âmbito dos sujeitos, por exemplo, um sujeito da economia popular pode estar envolvido tanto na formalidade quanto na informalidade laboral; assim, o popular aqui é uma expressão do barroco de Echeverría e Gago. Em segundo lugar, trata-se de combater a ideia e a prática da economia informal como uma forma de trabalho a priori precária ou fora da legalidade. Isso porque é necessário considerar que diversas experiências, por exemplo, de solidariedade econômica, se expressam no âmbito da informalidade.
Por sua vez, o termo popular faz referência a um extenso histórico de lutas vinculadas aos movimentos subalternos latino-americanos (Oliveira, 2022a). Esses movimentos são diversos, mas em grande medida estão relacionados às lutas por melhores condições de trabalho, abrangendo tanto a luta sindical quanto a dos partidos de esquerda, por um lado. Também incluem os movimentos ligados às lutas pela transformação total das relações de trabalho, entre os quais podem ser mencionados os movimentos de economia solidária (Oliveira, 2022b), entre outros.
Acompanhando Gago (2014: 12), a economia popular é aquela “que mixtura saberes comunitarios autogestivos e intimidad con el saber-hacer en la crisis como tecnología de una autoempresarialidad de masas”. O autor José Luis Coraggio (2009) é outro que explorou de forma bastante profunda a ideia de economia popular. Para ele, também é possível mencioná-la como economia do trabalho ao se referir à ideia de trabalho versus capital, onde a economia popular se relaciona com o trabalho vivo dos subalternos contra a perspectiva dominante da acumulação de capital. Os sujeitos da economia popular são aqueles que trabalham hoje para sustentar a vida do dia de amanhã e muitas vezes nada mais do que isso; que trabalham hoje e isso é tudo, que não contam com nenhum tipo de poupança, com nenhuma acumulação de capital, ou seja, que só se importam em poder trabalhar, e trabalhar, e trabalhar todos os dias para alcançar uma condição de trabalho e de vida minimamente possível; já que digna definitivamente não é.
Frente ao anteriormente dito, gostaríamos de destacar as diferenças entre a economia popular e a economia solidária – considerando que temos muito mais informações e conhecimento teórico e prático sobre a última – como duas formas distintas de gestão das necessidades materiais e do trabalho em direção à afirmação e reprodução da vida em comum.
Consideramos que a principal diferença entre as duas formas mencionadas está relacionada com a subjetivação política dos conteúdos de cada uma delas pelos seus sujeitos protagonistas. Ou seja, há um processo de subjetivação, de conscientização, de politização do fazer econômico cotidiano – que também é um fazer político, e sempre será (Oliveira; Ferrarini; Dowbor, 2023) – em torno das diferentes atividades consideradas como trabalho; e tal processo é muito diferente para aqueles que estão na economia popular e para aqueles que estão na economia solidária.
Dentro do campo do que se acostumou a chamar de economia popular, pode haver um trabalho extremamente individualizado, um trabalho individualizante que se aproxima muito das lógicas neoliberais e utilitaristas de gestão das necessidades materiais e do trabalho. Por exemplo, uma pessoa que “simplesmente” trabalha no âmbito da economia popular não significa estar automaticamente politizada, ser anticapitalista, estar organizada em algum movimento social antissistêmico, etc. Ou seja, uma pessoa que trabalha sob a lógica da economia popular a única coisa de que se tem certeza é que se trata de uma pessoa que precisa trabalhar para viver, que precisa comer, que precisa vestir-se, que precisa de um teto onde dormir todas as noites, etc.
Por outro lado, em relação à economia solidária – ou sobre como avançar da economia popular para a solidária –, a chave seria a politização que acompanha o fazer econômico solidário em si. Mas, politizar com quais conteúdos? Talvez o grande conteúdo subjetivado pelos sujeitos protagonistas das experiências de economia solidária frente à economia formal-capitalista, assim como frente à própria economia popular, seja aquele que implica a reprodução ampliada da vida contra a reprodução ampliada do capital (Coraggio, 1998). Nesse sentido, entendemos cada uma das duas formas de reprodução material mencionadas como o conjunto de dinâmicas e símbolos sob os quais funcionam as relações socioecológicas concretas de produção, circulação, comercialização e consumo de bens e serviços, onde a primeira enfatiza a vida no centro (Bem Viver, vida digna, relações socioecológicas saudáveis, etc.) e a segunda o capital no centro (geração de lucros, acumulação de capital, exploração laboral, etc.).
O objetivo das reflexões apresentadas nesta segunda seção foi o de diferenciar, dentro do amplo campo da informalidade e, mais especificamente, da economia informal, algumas características da economia popular – da qual a economia informal faz parte – e outras da economia solidária. No entanto, também foi considerada a ideia de um suposto (possível e provável) salto politizador da economia popular para a solidária, a fim de evitar cair na armadilha de que a saída da economia informal é a formal-capitalista.
3. As distintas abordagens sobre a economia solidária
Agora pensando especificamente no âmbito da economia solidária, perguntamos: se trata de um bloco homogêneo onde todos os sujeitos estão politizados, onde todos são anticapitalistas? Nossa resposta é direta: não! Então, a próxima pergunta que nos surge, é: o que é economia solidária e quais são suas diferenças internas? Para Antônio Cruz (2006:69), a economia solidária é
o conjunto das iniciativas econômicas associativas nas quais a) o trabalho; b) a propriedade de seus meios de operação (de produção, de consumo, de crédito etc.); c) os resultados econômicos do empreendimento; d) os conhecimentos acerca de seu funcionamento; e) o poder de decisão sobre as questões a ele referentes são compartilhados por todos aqueles que dele participam diretamente, buscando-se relações de igualdade e de solidariedade entre seus partícipes.
Além da contribuição do autor, é importante ressaltar que a reciprocidade, a interdependência e a autogestão, embora não apareçam de forma explícita em suas reflexões, são categorias-chave para entender o que é a economia solidária. Vale ressaltar também a relação entre seres humanos e natureza (que estamos chamando relações socioecológicas). No contexto da economia solidária, tal relação aparece de forma radicalmente oposta se comparada com a relação de dominação da natureza pela ação humana, essa típica da economia formal-capitalista. Ou seja, na economia solidária trata-se de uma relação de integração entre seres humanos e natureza – como se pode encontrar nos debates sobre agroecologia e Buen Vivir – e não de dominação dos humanos sobre a natureza.
Dito isso, é importante situar a origem do conceito de economia solidária na América Latina. A referida origem remete a Luis Razeto (1989), no Chile do final da década de 1980, e sua proposta bastante original de uma economia da solidariedade. Outros nomes que contribuíram para o desenvolvimento inicial do conceito e que podem ser considerados, junto com Razeto, como os principais expoentes da economia solidária na virada do século são, sem dúvidas, José Luis Coraggio (1998; 2009) – Argentina – e Paul Singer (2002) e Luiz Inácio Gaiger (2003) – ambos do Brasil. Na busca por encontrar e sistematizar as experiências de solidariedade, reciprocidade e autogestão dentro do heterogêneo polo marginal da economia – ou da economia barroca –, os autores citados abriram caminho para um campo efervescente de pesquisa no âmbito da antropologia e sociologia econômicas na América Latina e mesmo em todo o mundo.
Em uma tentativa de explicar a ligação entre economia e solidariedade, os autores inicialmente buscaram inspiração nas contribuições dos socialistas utópicos dos séculos XVIII e XIX, bem como na experiência cooperativista da Sociedade dos Pioneiros de Rochdale, em Manchester, na metade do século XIX. Eles também buscaram inspiração nos estudos do antropólogo Bronisław Malinowski sobre os povos nativos das Ilhas Trobriand na Oceania, especialmente a partir das interpretações de Marcel Mauss e Karl Polanyi.
Além disso, posteriormente também encontraram inspiração nas formas de vida precedentes ao início das colonizações na América Latina, especialmente nas da região Andina e da América Central, que mais tarde se tornaram exemplos da possibilidade de associação entre economia e solidariedade, com referência às ideias de comunidade e cosmovisão; surgiriam daí as propostas de Buen Vivir e/ou Sumak Kawsay.
No entanto, não é irrelevante destacar que, no contexto atual do sistema-mundo capitalista-colonial, não demoraria para que tanto o conceito quanto a prática da economia solidária começassem a receber críticas. Essas críticas passam, certamente, por seu suposto caráter não transformador e seu baixo nível de questionamento dentro do atual sistema capitalista mundial. Com tais questões em aberto, é comum que os sujeitos da economia solidária transitem entre ela e a economia formal-capitalista, de acordo com as flutuações dos índices da última. Mas, qual é o cerne dessas críticas? De forma muito direta, a crítica central enfatiza o papel funcional que as experiências de economia solidária – funcional ou até mesmo estruturante1 – assumem, mesmo que de forma indireta, em suas relações com o sistema capitalista mundial.
O acumulado de estudos sobre o tema permite perceber, pelo menos, três perspectivas distintas sobre o papel das experiências de economia solidária frente ao sistema-mundo capitalista-colonial: a) a perspectiva da já mencionada crítica da funcionalidade e papel estruturante da economia solidária frente ao sistema econômico dominante; b) a perspectiva da economia solidária como fenômeno que aparentemente surge para superar as deficiências do sistema capitalista e que, consequentemente, se torna um potencial lócus de transformações intersubjetivas; e c) a perspectiva da economia solidária como projeto de sociedade, ou seja, como antecipadora de formas de gestão das necessidades materiais e do trabalho da sociedade não capitalista do amanhã. Essa terceira visão demanda uma análise a partir de outras duas perspectivas distintas: por um lado, as experiências não capitalistas e, por outro, as anticapitalistas.
Boris Marañón (2017) reflete sobre uma racionalidade econômica radicalmente diferente daquela que é resultado do avanço histórico do sistema-mundo capitalista-colonial. Segundo o autor, esta outra racionalidade teria o potencial de, partindo da crítica explícita das estruturas de poder e dominação que sustentam o sistema dominante mundial, confrontar e disputar subjetividades e materialidades no caminho em direção à sociedade do Buen Vivir. Marañón, além do já dito, examina as obras de Razeto, Coraggio e Singer, onde faz o seguinte diagnóstico:
Los corpus teóricos respectivos de Razeto, Coraggio y Singer carecen, aunque de manera diversa, de un esfuerzo por ubicar a la “economía solidaria” en las relaciones de poder más amplias (totalidad), esto es, de aquellas que nos vinculan a todos como sociedad, definiendo los lugares que ocupamos y los roles que desempeñamos (clasificación social) en la misma (Marañón, 2017: 257).
Como se pode observar, a questão do autor gira em torno daquela distinção entre experiências não capitalistas versus as anticapitalistas. Por um lado, Razeto, Coraggio e Singer – aos quais poderíamos adicionar Gaiger – que, embora se esforcem para destacar as características antagônicas entre economia solidária e economia formal-capitalista, o fazem sem dedicar a devida atenção à necessidade de reconexão das dimensões econômica e política da vida, que na América Latina estão separadas desde pelo menos o início do processo colonial. Daí decorre a falta de compromisso desses autores precursores do conceito de economia solidária com a ideia de totalidade, conforme indicado por Marañón (2017).
Essa perspectiva de Marañón, que gostamos de pensar como perspectiva de inspiração anticolonial2 do conceito de economia solidária e na qual também situamos Quijano – além de outras e outros como Natalia Quiroga (2019), Dania López (2012), Laura Collin (2012; 2014), Eduardo Aguilar (2020) – propõe, guardadas as particularidades de cada autora e autor, que partindo do pressuposto da totalidade do sistema-mundo capitalista-colonial é necessário reconstruir e atualizar as referências de organização substantiva da vida em comum (Oliveira, 2022b) a partir da crítica anticapitalista, antipatriarcal e anticolonial para reconectar economia e política em uma trama comunitária e cotidiana integral (Gutiérrez, 2015; 2017; Gutiérrez; Navarro, 2019).
Nesse sentido, assinala Collin (2012: 83): “insisto, por tanto, los modelos implican lógicas y la existencia de cambios sustantivos implica el cambio de la lógica”. A contribuição da autora parece bastante lúcida. É necessário produzir uma virada na lógica do pensamento, isto é, na racionalidade. Assim, o que está em jogo é uma questão de disputa epistemológica (Quijano, 2005, 2014a) e não apenas de disputas econômicas ou políticas; ou ambas. A epistemologia e a teoria aqui aparecem como um momento da ação, ou seja, como um farol que ilumina os caminhos pelos quais o desenvolvimento histórico deveria passar. Outras teorias para outras práticas; outras práticas para outras teorias. Talvez esse seja o grande legado da perspectiva de inspiração anticolonial do conceito de economia solidária.
Qualquer possibilidade de avançar na busca de respostas mais ou menos viáveis para o imenso desafio deixado por Quijano e Collin, no qual muitos acadêmicos já estão se aventurando – dos quais poderíamos destacar o próprio Marañón (2012), que junto com López (2012) já propõem há muito tempo a ideia de solidariedade econômica; ou Quiroga (2019) com a proposta de uma economia pospatriarcal; o argumento de Aguilar (2020) sobre a economia não capitalista, ou ainda a ideia de uma economia solidária local e diversa, de Collin (2010) –, passa pelo confronto entre aquela racionalidade típica da economia formal-capitalista (individualista, competitiva, egoísta, desigual, da escassez e alienante) e aquela outra racionalidade econômica (interdependente, colaborativa, da reciprocidade, da igualdade, da abundância e libertadora).
A última perspectiva, embora ainda apareça em maior medida como um novo horizonte histórico alcançável – Quijano (2014b) diria que não exatamente novo, mas reinventado porque assim como tem bases nas formas de vida anteriores à chegada de Cristóvão Colombo, já está atravessado por “atualizações coloniais”; visão compartilhada também por Rita Segato (2012) e outros – já está prefigurada hoje, aqui e agora, em muitas geografias e comunidades da América Latina e do mundo.
4. A autogestão como horizonte e prática para uma economia popular-solidaria anticapitalista
Como a ideia e prática da autogestão podem contribuir para enfrentar os desafios da transição da economia popular para a solidária em sua versão anticapitalista e para a superação da economia formal-capitalista? Muitas autoras e autores (Berthier, 1971; Brancaleone, 2019; Ceceña, 2010; Nascimento, 2019; Novaes, 2020; Tiriba, 2006; 2008) argumentam que é incompleta e mais ou menos impotente a versão puramente organizacional da categoria e da prática da autogestão. Ou seja, quando essa categoria/prática é projetada apenas para dentro das experiências dos grupos de trabalho coletivo-associado da economia solidária. Esses autores defendem que a autogestão não pode ficar limitada a esses grupos e que, portanto, deve transcender suas fronteiras, alcançando toda a diversidade de dimensões e espaços de convívio social.
Entre esses dois “mundos”, Singer (2002: 18-19) talvez seja um dos que melhor desenvolveu a ideia de autogestão em termos organizacionais (ou procedimentais), ou seja, no âmbito interno de cada experiência de trabalho coletivo-associado:
A empresa solidária se administra democraticamente, ou seja, pratica a autogestão. Quando ela é pequena, todas as decisões são tomadas em assembleias, que podem ocorrer em curtos intervalos, quando há necessidade. Quando ela é grande, assembleias-gerais são mais raras porque é muito difícil organizar uma discussão significativa entre um grande número de pessoas. Então os sócios elegem delegados por seção ou departamento, que se reúnem para deliberar em nome de todos. [...] As ordens e instruções devem fluir de baixo para cima e as demandas e informações de cima para baixo. Os níveis mais altos, na autogestão, são delegados pelos mais baixos e são responsáveis perante os mesmos. [...] Para que a autogestão se realize, é preciso que todos os sócios se informem do que ocorre na empresa e das alternativas disponíveis para a resolução de cada problema. Ao longo do tempo, acumulam-se diretrizes e decisões que, uma vez adota- das, servem para resolver muitos problemas frequentes.
Por sua vez, uma boa forma de ilustrar o outro lado dessa moeda é com a contribuição de René Berthier (1971:2):
“Autogestão” é, antes de tudo, o meio de pôr em aplicação o princípio: a emancipação dos trabalhadores será a obra dos próprios trabalhadores. Isso implica estruturas organizacionais que permitem a aplicação desse princípio. Essas estruturas são, de saída, essencialmente organismos de base que permitem a expressão de todos os trabalhadores, simultaneamente no plano da empresa e no local de moradia. Vemos, então, já uma primeira característica da autogestão segundo os anarcossindicalistas: ela é, desde as estruturas elementares da sociedade (empresa, localidade), simultaneamente econômica e política.
No mesmo contexto, três outros autores contribuem com a mesma visão de Berthier, com a qual também nos associamos tanto em termos acadêmicos quanto políticos. Para Cassio Brancaleone (2019: 355), “a autogestão ou é generalizada, engendrando dinâmicas progressivas de autonomia individual e coletiva, ou não é nada. Ou melhor, é apenas latência e resistência.”; Lia Tiriba (2008: 84), por sua vez, argumenta que “nessa acepção, a autogestão tem o ideário da superação das relações de produção capitalistas e a constituição do socialismo, concebido como uma sociedade autogestionária.”. Por fim, Henrique Novaes (2020: 82) defende:
Não pode haver uma teoria que se sustente olhando apenas “para dentro” das cooperativas, celebrando a nova forma de decisão “democrática”, “parlamentarista”, na qual os trabalhadores decidem coletivamente os rumos de cada empresa sem se observar a permanência da perda do controle do produto do trabalho.
Resumidamente, existem duas perspectivas, portanto. Uma delas se concentra internamente (autogestão com foco nos grupos de trabalho coletivo-associado, mas que não se compromete com a competição externa, típica do capitalismo). A outra aborda tanto a autogestão interna quanto rejeita a competição externa.
Nesse sentido, parece que o desafio interno é a politização e radicalização da autogestão, enquanto externamente implica sua articulação com o projeto da sociedade do Buen Vivir; ou da sociedade autogestionária. Isso porque, como aponta Ana Esther Ceceña (2010: 80), “no se resuelve nada con una autogestión local aislada, no podemos hoy pensar el mundo como si fuéramos un punto olvidado en el planeta, no hay puntos olvidados ya, todo es importante para la valorización capitalista, y todo es importante para la construcción de las alternativas”.
Desde esta perspectiva de projeto, ou seja, a partir do horizonte histórico de uma sociedade autogestionária, concordamos com o que Brancaleone (2019: 355) propõe:
retomar esse legado antissistêmico do conteúdo do conceito de autogestão significa, portanto, recolocar em cena elementos de reflexões oriundos da tradição anarquista e conselhista, onde economia e política se reencontram na velha máxima do ‘autogoverno dos produtores associados’.
Nesse contexto, parece ser, então, um duplo caminho combinado e sobreposto entre politizar as relações econômicas através dos valores da autogestão – dentro dos grupos de trabalho coletivo-associado – e transcendê-los estrategicamente em direção à política que se reencontra com a economia agora como economia política – ou seja, para além daqueles grupos singulares, além de suas próprias fronteiras. Reconectar economia e política, aqui e agora, a partir do âmbito comunitário (Gutiérrez, 2015; 2017) em direção ao horizonte histórico da sociedade autogestionária.
Ao dizer “politizar as relações econômicas através dos valores da autogestão”, gostaríamos de enfatizar a radicalização da autogestão como uma forma anticapitalista de gestão das necessidades materiais e do trabalho no âmbito da dimensão econômica da vida. Por outro lado, ao dizer “transcendê-la estrategicamente em direção à política que se reencontra com a economia agora como economia política”, o foco está nos outros espaços de sociabilidade (universidade, escola, família, vizinhança, comunidade, etc.), ou seja, na ideia de que é necessário um salto da autogestão dos espaços estritamente ligados ao trabalho e à economia para os outros espaços da convivência coletiva.
Por último, é importante destacar a importância dos movimentos subalternos (Oliveira, 2022a) nessa tarefa. Ou seja, tanto a conexão entre as diversas experiências de trabalho autogestionário quanto o esforço para comunicar à sociedade como um todo que é possível organizar a vida sob os princípios da autogestão, são tarefas desses movimentos e suas redes.
É provável que a “grande pergunta” que desencadeou todas as reflexões apresentadas neste breve texto, seja: “formalizar para quê?”, conforme já mencionado na segunda seção do documento. No final da mesma seção, expressamos o nosso ponto de vista sobre a questão, que revela que não acreditamos que uma saída digna da informalidade no âmbito da economia e do trabalho seja a integração dos sujeitos que lá “ganham a vida” na economia formal-capitalista; que, por sua vez, é mantida pelo Estado.
Por outro lado, identificamos que dentro do heterogêneo campo da economia popular estão tanto a economia informal quanto a formal, assim como também está a economia solidária. Nesse sentido, o que fizemos foi um esforço para explicitar o caráter político da economia solidária, que, portanto, traz consigo uma capacidade potencial de subjetivação crítico-política em torno das diferentes formas possíveis de gestionar as necessidades materiais e o trabalho em para a afirmação e reprodução da vida em comum.
Ao argumentar que economia popular e economia solidária não são sinônimos e ao defender a segunda, tornou-se necessário reconhecer que o campo da economia solidária também não é homogêneo. Portanto, enfatizamos que existem pelo menos três vertentes no âmbito da economia solidária: (i) seu papel funcional e estruturante em relação à economia formal-capitalista; (ii) sua capacidade de superar as lacunas do sistema capitalista, podendo, consequentemente, se tornar um potencial lócus de transformações intersubjetivas; e (iii) sua emergência como projeto de sociedade, ou seja, como precursora de formas de gestão das necessidades materiais e do trabalho da sociedade já não capitalista do futuro.
Como mencionado anteriormente, dentro do terceiro grupo ainda existem duas perspectivas distintas: a da economia solidária não capitalista e a da economia solidária anticapitalista. Portanto, uma economia solidária que busca ser anticapitalista deveria lidar, pelo menos, com duas questões-chave: a ideia de totalidade social e a radicalidade epistemológica. Ou seja, para cumprir seu papel anticapitalista, aqui e agora, os sujeitos da economia solidária deveriam se comprometer a transformar completamente as relações socioecológicas concretas de produção, circulação, comercialização e consumo, bem como deveriam se comprometer a fazer isso também de forma simbólica, na produção e reprodução de símbolos que acabam prefigurando (ou antecipando) formas de agir.
Em termos concretos, as transformações profundas em direção à produção e reprodução de práticas autogestionárias e socialmente ecológicas já são percebidas em distintas geografias. Na América Latina, talvez as experiências mais destacadas sejam as da agroecologia, especialmente aquelas que reivindicam a ideia de agroecologia como modo de vida (Collin, 2022). Nesse sentido, em termos concretos, a tarefa pendente continua sendo o árduo trabalho de vincular e multiplicar tais experiências. Por outro lado, em termos simbólicos, que incluem o epistemológico, é importante destacar o trabalho dos autores mencionados anteriormente que têm uma inspiração anticolonial e propõem conceitos e formas de ver o mundo que rompem completamente com as dinâmicas e símbolos do sistema-mundo capitalista-colonial. Os mencionados desafios já são realizados, na atualidade, pelos próprios movimentos subalternos na América Latina, como por exemplo o Movimento Agroecológico da América Latina e do Caribe (MAELA), o Movimento Zapatista mexicano, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Brasil, entre outros.
Por fim, argumentamos a favor do potencial da autogestão como uma ferramenta prática, mas também como um horizonte histórico. Isso se manifesta tanto internamente quanto externamente às experiências singulares dos grupos de trabalho coletivo-associado. Esta é a versão da autogestão, para além de seus traços puramente organizativos (procedimentais), que tem a capacidade de transcender em direção à reconexão da economia e da política como dimensões inseparáveis no desafio de auto-organizar a vida em comum, a partir do âmbito comunitário, e de realizar um salto da informalidade laboral a uma forma de trabalho e de vida dignos.
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1 Ao dizer “funcional ou até estruturante”, é importante considerar que essa funcionalidade e/ou estruturação está relacionada com a suposta baixa capacidade reivindicativa de algumas experiências de economia solidária. Ou seja, “separar-se” da economia formal-capitalista sem denunciar seus abusos e exploração poderia ser funcional e/ou estruturante ao sistema, já que ele de fato não busca incluir toda a força de trabalho humana em seu interior. Nesse contexto, manter o exército de reserva ou o polo marginal da economia ocupados com uma forma de economia que não é capitalista, mas que não a contesta e não busca a sua superação, é o que tornaria a economia solidária funcional e/ou estruturante para o sistema capitalista.
2 Ao dizer “perspectiva de inspiração anticolonial”, nos referimos a uma abordagem que, partindo das formas de pensar e sistematizar o conhecimento, ou seja, em caráter epistemológico, pretende romper com o pensamento enraizado em dinâmicas de poder e dominação que atravessam as formas de exercer o poder, organizar o conhecimento e conceber o ser. A separação histórica entre economia e política, que no contexto latino-americano começa com o processo colonial e atinge seu auge com a instalação dos Estados-nação de inspiração europeia e estadunidense, é uma forma de garantir o poder de alguns poucos sobre muitos outros. Nesse sentido, uma abordagem anticolonial no contexto da discussão aqui apresentada é uma abordagem que, a partir da ideia de totalidade, busca resolver os problemas econômicos e políticos causados pelas dinâmicas capitalistas-coloniais de poder e dominação por meio de lógicas diferentes, não as da herança colonial em si, que têm na separação entre economia e política uma de suas estruturas de manutenção e operação.