Redes insurgentes: como o movimento Black Lives Matter ajudou a reorganizar o sindicalismo estadunidense?
Ruy Braga*
Resumo: A atual onda de agitação trabalhista nos Estados Unidos, evidenciada tanto pela criação de novos sindicatos em setores tradicionalmente desorganizados, quanto pelo aumento do apetite grevista dos trabalhadores sindicalizados, foi seguida por um súbito aumento dos protestos em defesa das vidas negras, em escala global, em decorrência do assassinato, no dia 25 de maio de 2020, de George Floyd pela política de Minneapolis. Embora a literatura que tem analisado a globalização do movimento Black Lives Matter tenha negligenciado a relação entre a luta antirracista e a revitalização dos sindicatos, existem muitos indícios capazes de revelar a referida intersecção. Neste artigo, pretendemos analisar um caso específico que aponta para uma íntima conexão entre a luta pela justiça racial e a luta pela justiça econômica: a criação do Amazon Labor Union (ALU), o primeiro sindicato da empresa Amazon do país.
Palavras-chave: precarização, racismo, redes sociais, sindicalismo, Black Lives Matter.
Abstract: The current wave of labor unrest in the United States, evidenced both by the creation of new unions in traditionally unorganized sectors and by the increase in the strike appetite of unionized workers, was followed by a sudden increase in protests in defense of black lives on a global scale as a result of the murder in May 25, 2020 of George Floyd for Minneapolis politics. Although the literature that has analyzed the globalization of the Black Lives Matter movement neglects the relationship between the anti-racist struggle and the revitalization of unions, there is much evidence capable of revealing this intersection. In this article, we intend to analyze a specific case that points to an intimate connection between the fight for racial justice and the fight for economic justice: the creation of the Amazon Labor Union (ALU), the first Amazon union in the country.
Keywords: precariousness, racism, social networks, trade unionism, Black Lives Matter.
Resumen: La actual ola de malestar laboral en Estados Unidos, evidenciada tanto por la creación de nuevos sindicatos en sectores tradicionalmente no organizados como por el aumento del apetito huelguista de los trabajadores sindicalizados, fue seguida por un repentino aumento de las protestas en defensa de las vidas de los negros en un escala global a raíz del asesinato el 25 de mayo de 2020 de George Floyd por la política de Minneapolis. Aunque la literatura que ha analizado la globalización del movimiento Black Lives Matter descuida la relación entre la lucha antirracista y la revitalización de los sindicatos, hay mucha evidencia capaz de revelar esta intersección. En este artículo pretendemos analizar un caso específico que apunta a una íntima conexión entre la lucha por la justicia racial y la lucha por la justicia económica: la creación del Amazon Labor Union (ALU), el primer sindicato de la Amazon del país.
Palabras clave: precariedad, racismo, redes sociales, sindicalismo, Black Lives Matter.
Aqueles que passarem os olhos pela volumosa bibliografia a respeito da trajetória e do destino histórico do sindicalismo estadunidense produzida nos últimos 30 anos forçosamente chegarão à conclusão segundo a qual os grupos sociais racializados de trabalhadores conformam a principal força motriz da revitalização do movimento trabalhista desde a fundação do Congresso das Organizações Industriais (CIO) em 1935. Trata-se de uma interpretação bastante consolidada quando consideramos a correlação existente entre a sindicalização dos trabalhadores negros nos anos de 1930 e 1940 e o fortalecimento do pacto fordista no pós-Segunda Guerra. Força social igualitária, os trabalhadores negros estiveram ligados aos principais ciclos grevistas entre os anos de 1950 e 1970, além de participarem ativamente do movimento pelos direitos civis que colocou um fim nas leis de segregação racial no sul do país.
Em contrapartida, o colapso do modelo de desenvolvimento fordista a partir dos anos de 1980, com o subsequente enfraquecimento do sindicalismo industrial, manietou as comunidades onde vivem os trabalhadores racializados, inaugurando uma era de precarização do trabalho, cujo corolário foi a queda da agitação trabalhista, seguida pelo aumento das desigualdades raciais na América. Ao longo dos anos de 1990 e 2000, a capacidade dos movimentos sociais protagonizados por grupos racializados declinou, juntamente com o poder de negociação dos sindicatos. À ruína dos sindicatos seguiu-se a debacle das condições de subsistência dos bairros onde vivem os trabalhadores racializados (Wilson, 1997).
Há 10 anos, quando comecei a estudar comparativamente a mobilização de trabalhadores precários na África do Sul, no Brasil e em Portugal, percebi que a crise da globalização neoliberal iniciada em 2008 parecia sobrepor características dos dois principais padrões de agitação trabalhista identificados por Beverly J. Silver: as agitações “marxianas”, ou seja, aquelas definidas pela formação de novas classes trabalhadoras a partir de conflitos nos locais de trabalho, estavam se entrelaçando às agitações “polanyianas”, isto é, aquelas impulsionadas pelo desmanche de velhas classes trabalhadoras que reivindicavam a proteção social dos governos (Silver, 2005).
A partir daí, aventei a hipótese de que um terceiro padrão poderia estar emergindo dos deslocamentos instigados pela crise da globalização neoliberal. Chamei o referido padrão de “thompsoniano”, a fim de não destacar nem o “fazer-se” marxiano, nem o “desfazer-se” polanyiano, mas sim o “refazer-se” das identidades coletivas dos grupos sociais subalternos no decorrer de uma grande transformação social (Braga, 2023).
Todavia, meus achados de campo limitavam-se exclusivamente a países semiperiféricos. A ideia de analisar as metamorfoses do padrão de agitação trabalhista nos Estados Unidos nasceu do desejo de testar a plausibilidade da hipótese “thompsoniana” em uma escala mais ampla. Neste artigo, recolhemos alguns indícios da recente sobreposição de características dos padrões “marxiano” e “polanyiano”, a fim de realçar a plausibilidade da hipótese “thompsoniana”, a partir de um caso localizado no norte global. Para tanto, iremos explorar a relação de afinidade eletiva existente entre a plataforma Black Lives Matter (BLM) e a exitosa criação do primeiro sindicato da empresa Amazon em Staten Island, Nova Iorque.
Ao identificarmos a afinidade entre o movimento BLM e algumas das principais campanhas de criação de novos sindicatos independentes, ressaltando importância do surgimento de uma geração de jovens ativistas sindicais cujas disposições políticas interseccionam identidades raciais e de gênero em torno da luta por justiça social nos locais de trabalho, argumentaremos que o atual refazer-se classista, impelido pela automobilização dos trabalhadores precários, floresceu “de baixo para cima”, contando com o flagrante apoio das redes sociais, em um contexto político e econômico marcado pela crise da globalização capitalista.
Twitter, Facebook e a nacionalização da luta antirracista nos Estados Unidos
Como é amplamente reconhecido pela literatura dos novíssimos movimentos sociais, as redes sociais (em especial, o antigo Twitter e o Facebook) são um fator-chave para compreendermos o ciclo de protestos populares que se seguiu à eclosão da crise financeira nos Estados Unidos em 2008 (Castells, 2013). Em 2012, por exemplo, o assassinato de Trayvon Martin desencadeou uma série de protestos na Flórida, inspirando a formação de diferentes organizações pelo país, que desempenharam um papel decisivo na formação da plataforma BLM.
O movimento Black Lives Matter começou como uma hashtag nas redes sociais em 2013 em resposta à violência do Estado e de vigilantes contra os negros. A história da origem da hashtag do Twitter #BlackLivesMatter foi bem documentada. Após a absolvição de George Zimmerman pelo assassinato do adolescente negro desarmado Trayvon Martin na Flórida em 2012, a ativista de Oakland, Alicia Garza, como milhões de outras pessoas, ficou com o coração partido, frustrada e irritada quando escreveu o que chamou de uma carta de amor para pessoas negras, terminando com uma versão da frase ‘Black Lives Matter’. Ela então juntou forças com duas outras ativistas, Opal Tometi e Patrisse Cullors (agora Patrisse Khan-Cullors), para criar uma hashtag e uma plataforma de mídia social. Em agosto de 2014, o termo decolou no Twitter e no Facebook com o surgimento da ação coletiva em Ferguson, Missouri (Ransby, 2018, p. 5).
O levante de Ferguson que se seguiu ao assassinato de Michael Brown, um jovem de 18 anos, por um policial branco é usualmente identificado como o evento impulsionador da onda de protestos sociais que se espalhou pelo país. Na base da nacionalização do protesto, encontramos um sistema de solidariedades práticas, alimentado por um forte desejo de autodeterminação em favor da proteção das comunidades. Amiúde, procura-se conquistar a igualdade de tratamento em relação aos bairros brancos. E, apesar da brutalidade da repressão policial, é importante destacar que Ferguson não foi um movimento impulsionado pelo ódio à polícia: “Mesmo descrevendo a brutalidade policial como ‘execuções públicas pagas com impostos’, os manifestantes não diziam odiar a polícia. Em vez disso, eles queriam a mesma proteção assegurada aos brancos” (Boyles, 2019, p. 157).
Trata-se de uma questão realmente crucial: Ferguson foi um levante por justiça social que denunciou o rebaixamento das condições de reprodução do conjunto das famílias trabalhadoras pobres. Comunidades insurgentes que contavam com a participação de manifestantes brancos e latinos, inspiradas pela coalizão do Movimento pelas Vidas Negras, multiplicaram-se pelo país. Após 2014, a mesma dinâmica política pôde ser observada em cidades tão diferentes como Anaheim, Baltimore, Baton Rouge, Charlotte, Chicago, Milwaukee, Nova Iorque, Oakland e St. Paul. Até que, em 2020, o assassinato de George Floyd detonou uma onda inédita, atingindo 2 mil cidades em cerca de 60 países (Putnan, Pressma & Chenoweth, 2020).
De fato, no verão de 2020, especialistas estimam que entre 15 e 26 milhões de pessoas participaram das manifestações em defesa das vidas negras nos Estados Unidos, transformando a indignação contra o assassinato de George Floyd na maior onda de protesto social da história americana (Buchanan, Bui & Patel, 2020). Logicamente, a defesa das vidas negras contra a violência da polícia estadunidense era a motivação essencial. No entanto, uma reação internacional nessa escala só pode ser compreendida a partir de um marco mais amplo: a luta por justiça, cujo eixo estruturador é a denúncia da opressão racial.
Afinal, além do abuso da força, a expropriação política dos grupos racializados opera por outros meios: o déficit de moradias decentes, a dificuldade de acesso à comida fresca, o endividamento das famílias, as escolas de baixa qualidade e a falta de cuidados com a saúde, além do subinvestimento permanente em serviços urbanos essenciais, como o da limpeza urbana. Diante dessa variada gama de efeitos da opressão racial, percebe-se que a exigência da reforma das forças policiais era o ponto de partida; porém, não era o ponto de chegada do protesto negro.
A sobreposição de exploração econômica e expropriação política é a força motriz por trás da violência contra, sobretudo, os trabalhadores jovens. A concentração de empregos precários nos bairros brancos afasta ainda mais os jovens negros do trabalho formal. Além disso, a sedução do ilícito transforma a juventude em alvo preferencial da polícia. Ao fim e ao cabo, a precarização do trabalho coloca muitos jovens em rota de colisão com a violência policial. Na verdade, as comunidades negras são sempre as primeiras a experimentar a convergência devastadora entre assédio policial, condições subnormais de reprodução, criminalidade e encarceramento em massa (Boyles, 2019).
Além de enfrentarem os policiais nas ruas, os manifestantes em Ferguson protestaram em frente à prefeitura, organizaram marchas que demandavam mais e melhores serviços urbanos, participaram de fóruns e debates dedicados a impulsionar os investimentos em suas comunidades e mobilizaram igrejas e organizações comunitárias em favor da distribuição de alimentos e roupas. Iniciativas assim, voltadas para proteger a subsistência da comunidade em meio à escalada da violência policial, foram amplamente impulsionadas pelo princípio da igualdade racial.
Em Ferguson, a crise política –decorrente do atrito entre lideranças negras, militantes dos sindicatos, associações de moradores, policiais e representantes da prefeitura– produziu um acúmulo reflexivo, que posteriormente foi usado em outros conflitos pelo país. Lutar para que as comunidades consigam superar a crise sociorreprodutiva que as ameaça implica assegurar a reprodução normal das famílias trabalhadoras, por meio da abertura de supermercados, do incremento da limpeza pública, dos investimentos do poder público na melhoria das escolas e da revitalização das residências (Boyles, 2019).
O levante de Ferguson significou um momento excepcional da luta cotidiana por justiça social contra o desemprego, a falta de oportunidades, a repressão militarizada ao consumo de drogas, a segregação territorial e o subemprego nas comunidades negras americanas. Tal experiência, comum aos trabalhadores pobres da América, levou à formação de novas coalizões por justiça racial em um contexto político permeável à ação direta dos manifestantes. Politizando os territórios, a ação coletiva dos jovens precariados negros balizou a luta popular no país, trazendo para o centro da cena política o debate público a respeito da resiliência da opressão racial, mesmo sob uma administração federal gerida por um presidente negro.
A segregação territorial que oprime os bairros negros nos Estados Unidos sugere o entrelaçamento entre interesses econômicos e políticos. Afinal, as decisões de política urbana são definidas levando-se em consideração os interesses de bancos, empresas terceirizadas contratadas pelos municípios, incorporadoras imobiliárias e seguradoras. Assim, a expropriação urbana, reforçada pela prática dos bancos de negar sistematicamente empréstimos imobiliários aos trabalhadores negros, fortalece a opressão de suas comunidades, obrigando-os a permanecer em áreas decadentes e sistematicamente reprimidas pela polícia.
Como resultado, os bairros negros se transformam em territórios que repelem os investimentos imobiliários e desestimulam a abertura de novos negócios, recursos logicamente necessários para que os bairros superem sua condição degradada. O círculo vicioso se fecha e a reprodução subnormal das condições de produção da força de trabalho racializada aprisiona os trabalhadores em territórios segregados, forçando-os na direção dos subempregos ou das ocupações marginais.
Neste sentido, a precariedade das vidas negras é politicamente fabricada pelo conluio entre governos e empresas. Além dos lucros auferidos pelo complexo industrial-prisional e pelo setor financeiro, que depende do endividamento das famílias trabalhadoras, o regime racializado de acumulação se beneficia dos baixos custos de reprodução da força de trabalho empregada em setores como comércio, cuidados médicos e pessoais, manutenção predial e serviços de limpeza. Assim, a violência policial, que mantém segregadas as comunidades de trabalhadores, desempenha um papel indiretamente econômico.
Quando identificaram a afinidade eletiva entre a economia e a política (ou seria a polícia?) do capitalismo racial, os ativistas e os intelectuais ligados à plataforma BLM começaram a defender a diminuição do financiamento das forças policiais como maneira de limitar o crescimento desmedido do complexo prisional-militar (Alexander, 2018). Os recursos poupados com a repressão seriam investidos nas comunidades racializadas. Paralelamente, floresceram temas como a ampliação dos direitos dos imigrantes, o aumento do salário mínimo, a criação de novos sindicatos e a eliminação das dívidas estudantis, como forma de revigorar a economia moral das comunidades racializadas.
Empurrada por levantes como o de Ferguson, a evolução política da plataforma BLM logrou articular, às práticas ativistas ligadas à proteção das vidas ameaçadas pela polícia, o trabalho afetivo daqueles que se dedicam a cuidar diariamente das comunidades. A combinação dessas duas formas de resistência à expropriação política (uma mais interna e cotidiana, outra mais externa e episódica) é o elemento crucial para compreendermos por que mais de 150 cidades no país registraram manifestações e protestos multirraciais liderados por negros no ano seguinte ao do assassinato de Michael Brown Jr. (Ransby, 2018).
Na condição de um movimento social emergente em escala nacional, a plataforma BLM começou a colher sucessivos apoios oriundos dos setores mais progressistas do sindicalismo estadunidense. Ao marchar ao lado dos ativistas de Ferguson em agosto de 2014, a presidenta do Service Employees International Union (SEIU), Mary Kay Henry, declarou: “Estamos com nossos irmãos e irmãs em Ferguson. E vamos com eles até a vitória” (Henry, 2014). Além disso, o SEIU financiou manifestações em tribunais em todo o país, a fim de exigir a condenação do policial que assassinou Michael Brown Jr.
A nacionalização dos protestos impulsionados pela plataforma BLM contou ainda com a marcante participação de uma rede formada por organizações militantes em Chicago, Los Angeles, Minneapolis, Oakland e San Francisco. No verão de 2015, em Cleveland, milhares de manifestantes marcharam pelas ruas e avenidas da cidade atrás de uma imensa faixa do movimento BLM. O protesto foi seguido pela criação de uma nova coalizão, formada pelos coletivos Blackbird, BLMGN, BYP100, Dream Defenders e Million Hoodies (Ransby, 2018).
De fato, o levante de Ferguson inspirou não apenas a mobilização política das comunidades negras. As comunidades latinas, engajadas no movimento pela ampliação dos direitos de cidadania dos jovens indocumentados nascidos nos Estados Unidos, também foram atraídas pelo levante negro. Como consequência, a “unidade preto-marrom” passou a ser debatida entre diferentes ativistas em cidades onde as duas comunidades praticamente não se comunicavam (Ransby, 2018).
Trata-se de uma aproximação lógica, considerando-se que o assédio policial atinge as duas comunidades de forma semelhante. Vale lembrar que a Agência de Fiscalização de Imigração (ICE) é uma das principais instituições de investigação criminal dos Estados Unidos, com um longo histórico de detenções, que serve para alimentar o complexo industrial-prisional do país (Milkman, 2020). As experiências de formação de novas alianças evoluíram na direção de uma conferência, que reuniu milhares de ativistas negros de diferentes gerações no campus da Universidade Estadual de Cleveland, entre 24 e 26 de julho de 2015 (Ransby, 2018).
A agitação estudantil, impulsionada pela formação de novas coalizões, alcançou visibilidade nacional, com os protestos de 2015, ocorridos no campus da Universidade do Missouri, em Columbia. Além disso, protestos menores floresceram em aproximadamente 80 campi universitários localizados em diferentes cidades espalhadas pelo país, como os de Berkeley, Chicago, Nova Iorque, Oakland e San Francisco.1
Surgiu naquele momento o Coletivo de Libertação Negra (Black Liberation Collective – BLC), uma rede nacional de ativistas estudantis negros, com marcante atuação entre estudantes do ensino médio, que se aproximou também de sindicatos progressistas e internacionalizou suas iniciativas, rumo ao Canadá. Após a desilusão de parte considerável dos ativistas do movimento negro com os governos de Barack Obama, a formação de novas coalizões revelou uma reaproximação da luta antirracista em relação à resistência anticapitalista.
Um indício importante da reaproximação entre os grupos antirracistas e anticapitalistas ocorreu em Baltimore, durante os protestos em reação à morte do jovem Freddie Gray, em decorrência de um brutal espancamento, executado por seis policiais (três deles negros), no dia 19 de abril de 2015. Considerando-se tal circunstância, seria compreensível alguma hesitação por parte dos manifestantes. No entanto, após os assassinatos de Eric Garner, John Crawford, Tamir Rice e Walter Johnson, efetuados pela polícia, os manifestantes de Baltimore não hesitaram. Assim, tomou conta de diversos bairros da cidade uma onda de protestos, que denunciou o assédio policial e a pobreza, que vitimam as comunidades negras (Steiner & Waisbord, 2017).
A exemplo de Ferguson, o levante de Baltimore estimulou a formação de novas coalizões, como a Baltimore Unida pela Mudança (Baltimore United for Change – BUC), focadas na defesa das condições de subsistência das famílias dos trabalhadores pobres. No dia 14 de outubro de 2015, as novas coalizões iniciaram uma ocupação do prédio da prefeitura da cidade, que durou várias semanas.
O fluxo de insurgências plebeias desaguou em conquistas eleitorais. Em 2017, Chokwe Antar Lumumba, advogado ligado ao movimento de libertação dos negros, foi eleito prefeito de Jackson City, capital e maior cidade do Mississippi, com uma impressionante aprovação de 93% dos votos. Em seu primeiro discurso como prefeito, Lumumba declarou que pretendia transformar Jackson City na “cidade mais radical do planeta” (Lumumba apud Goodman, 2017).
O fluxo de formação de novas coalizões foi do sul ao norte. Em Chicago, no verão de 2016, o Coletivo Deixe-Nos Respirar (Let Us Breathe Collective – LUBC), formado por jovens ativistas, montou um acampamento em frente à infame Praça Homan. Trata-se do local onde a polícia de Chicago costuma torturar cidadãos negros, a fim de extrair confissões falsas. Durante 41 dias, o acampamento, batizado como Praça da Liberdade (Freedom Square), tornou-se um espaço para a prática de deliberações coletivas, resolução de disputas, construção de uma economia compartilhada e incorporação da arte aos protestos na cidade (Shield, Paris, Paris & San Pedro, 2020).
A disposição militante dos jovens inspirou ativistas experientes do movimento negro, como Jamala Rogers, fundadora da Organização pela Luta Negra (Organization for Black Struggle – OBS); Linda Burnham, coordenadora da Aliança Nacional das Trabalhadoras Domésticas (National Domestic Workers Alliance – NDWA); e Makani Themba, diretora do Projeto Práxis (Praxis Project), que se tornaram conselheiras da plataforma BLM.
O fio que ligou as diferentes gerações de ativistas foi, sem dúvidas, a tradição interseccional do feminismo negro dos anos de 1970, legada à nova geração, por meio de biografias, imagens, livros e poemas, além do contato com escritoras e ativistas como, por exemplo, Angela Davis, Barbara Smith, bell hooks, Beth Richie, Beverly Guy-Sheftall, Cathy Cohen e Paula Giddings (Nummi, Jennings & Feagin, 2019).
Foram feministas como elas as principais responsáveis por legar aos mais jovens as referências políticas, como, por exemplo, Assata Shakur, líder do Exército de Libertação Negra (Black Liberation Army – BLA) nos anos de 1970; e Audrey Geraldine Lorde, escritora feminista e ativista dos direitos dos negros e dos grupos LGBTQIA+ nos anos de 1980. A formação de novas identidades políticas foi balizada pelo resgate de mulheres radicais quase totalmente banidas da memória do ativismo político nos Estados Unidos. “Assata me ensinou”, por exemplo, tornou-se um lema popular nas redes sociais de movimentos e ativistas ligados à plataforma BLM, além de estampar as camisetas usadas pelos organizadores do movimento (Murch, 2022).
Como resultado de esforços assim, é possível perceber o fortalecimento das relações entre diferentes grupos (incluindo a aproximação entre comunidades negras e latinas), ilustrado pela aliança entre o Mijente (um agrupamento nacional politicamente orientado à esquerda) e o BYP100. Em 2017, a nova coalizão incorporou a campanha nacional organizada por coletivos LGBTQIA+ para acabar com a fiança em dinheiro. Trata-se de uma reivindicação que fortalece a igualdade racial perante a lei, na medida em que a maioria dos negros e dos latinos não consegue pagar a fiança e aguardar o julgamento em liberdade. Ao focarem nos grupos encarcerados e nas comunidades pobres, os ativistas enfrentam os efeitos da combinação entre a exploração econômica e a expropriação política.
Como observou Cedric Johnson, o novo momento da luta pela libertação dos trabalhadores negros estadunidenses deverá ser capaz de reconhecer que a oposição ao capitalismo racial nos Estados Unidos impelirá necessariamente o movimento para a luta contra a globalização neoliberal (Johnson, 2022). Na mesma direção, o manifesto da rede Movimento pelas Vidas Negras (Movement for Black Lives – M4BL), intitulado: “Visão para as Vidas Negras” (“Vision for Black Lives”), além de reconhecer a centralidade política e axiológica da experiência dos grupos subalternos racializados, afirma que,
embora esta rede esteja focada em políticas domésticas, sabemos que o cis-heteropatriarcado, o capitalismo racial explorador, o imperialismo, o militarismo, a supremacia branca e o etnonacionalismo são estruturas globais. Nós somos solidários com nossa família internacional na luta contra os estragos causados pelo capitalismo racial global, pelo racismo antinegro, pela mudança climática produzida pelo homem, pela islamofobia, pelas guerras e pela exploração econômica. Nós nos unimos aos descendentes de africanos em todo o mundo num amplo apelo à luta contínua por reparações pelos danos históricos causados pelo colonialismo e pela escravidão, incluindo as estruturais e sistêmicas violências sexuais e de gênero, e reconhecemos e honramos os direitos de nossa família indígena global por reparações, terra, soberania e autodeterminação (M4BL, 2022).
Vale observar que muitos ativistas do M4BL apoiam e atuam em organizações políticas socialistas e democráticas, como, por exemplo, os Socialistas Democráticos dos Estados Unidos (Democratic Socialists of America – DSA), a Organização Socialista Internacional (International Socialist Organization – ISO) e o movimento Nossa Revolução (Our Revolution), liderado por Bernie Sanders. Recentemente, além da defesa dos trabalhadores negros e latinos contra a criminalização impulsionada por governos e departamentos de polícia, o movimento BLM tem investido na formação de lideranças comunitárias capazes de fortalecer tanto a integração quanto a articulação entre diferentes grupos vítimas da opressão racial.
Os esforços de formação política do movimento capacitaram milhares de ativistas em todo o país, por meio do desenvolvimento de lideranças comunitárias. Apesar da diversidade existente entre as novas coalizões integrantes do ecossistema BLM, organizar as comunidades negras a fim de lutar por igualdade racial foi a forma encontrada pelo movimento para resistir à expropriação política que rebaixa as condições de reprodução das famílias trabalhadoras.
De fato, erguido em um momento histórico, no qual as identidades coletivas dos trabalhadores estão sendo abertamente redefinidas, o movimento BLM apoia-se na experiência coletiva de resistência cotidiana à expropriação política das comunidades subalternas racializadas nos Estados Unidos. Daí a insistência de suas lideranças na articulação entre diferentes lutas por justiça racial e por justiça econômica. Não poderia ser diferente. Afinal, defender as vidas negras da violência política supõe, entre outras coisas, integrar os trabalhadores ao sistema de troca de equivalentes, afastando-os do trabalho precário.
O assassinato de Eric Garner em julho de 2014, após uma abordagem policial motivada pela venda de cigarros avulsos, revela a interconexão entre injustiça racial e injustiça econômica. Comércio típico de países periféricos –em Johanesburgo, por exemplo, lembro-me de ter assistido a disputas violentas entre trabalhadores nacionais e estrangeiros por pontos de venda de cigarros avulsos–, esse comércio informal corresponde àquele último recurso para aproveitar ao máximo a fragmentação de uma determinada mercadoria. Ou seja, não há melhor exemplo de trabalho precário.
Ainda assim, essa prática laboral, tipicamente associada a trabalhadores racializados, é violentamente reprimida pelo Estado, a ponto de assassinar um antigo funcionário do departamento de conservação de parques da cidade de Nova Iorque, pai de seis filhos, sem antecedentes criminais, descrito por amigos e vizinhos como uma pessoa generosa e gentil (Goldstein & Schweber, 2014).
A política do precariado negro na pandemia
Ao longo da década de 2010, os esforços de mobilização das comunidades negras estadunidenses, por meio da formação de novas coalizões impulsionadas por redes sociais militantes, serviram para aproximar as lutas por igualdade racial das lutas por igualdade econômica. Ao chocar-se contra o complexo industrial-prisional, a plataforma BLM transformou várias cidades em territórios politicamente instáveis. Em Ferguson, por exemplo, no dia 18 de agosto de 2014, Jay Nixon, então governador do Missouri, convocou a guarda nacional para reprimir os protestos. Logicamente, a magnitude dessa crise não se limita ao âmbito local. Se usualmente os assassinatos de jovens negros desarmados servem como estopim, a crise sociorreprodutiva das comunidades negras em todo o país é o verdadeiro motor da nacionalização do movimento. Ainda assim, enganam-se aqueles que pensam que uma ampliação assim tenha ocorrido sem a mobilização de ativistas locais que já atuavam junto ao movimento sindical.
Rasheed Aldridge, um jovem pequeno e magro que manca um pouco, cresceu em St. Louis e trabalhava em uma locadora de carros no aeroporto de St. Louis quando ocorreu o assassinato de Brown. Ele conheceu sua amiga Janina, que ele considera como uma irmã, na campanha pelo aumento do salário mínimo, ‘Lute por 15’. Janina trabalhava num McDonald’s em Ferguson e foi uma das primeiras pessoas para quem ele ligou quando a notícia do assassinato de Brown explodiu no Twitter. Ele ligou no dia 2 para ela dizendo: ‘– Precisamos pegar as habilidades que aprendemos na campanha ‘Lute por 15’ e ajudar’. Ele relatou ainda que ‘a situação era muito volátil para os modos mais tradicionais de organização’. Ainda assim, eles se juntaram aos protestos, sendo recompensados pelo reconhecimento de uma comunidade política ampliada. [...]. Rasheed Aldridge acabou deixando seu emprego para se tornar um organizador em tempo integral. Ele foi o membro mais jovem da Comissão Ferguson, órgão criado pelo governador do Missouri para avaliar as queixas que deram origem aos protestos, e integrou a delegação que visitou a Casa Branca em dezembro de 2014 para se reunir com o presidente Obama e sua equipe e discutir as implicações de Ferguson para a nação (Ransby, 2019: 55-56).
No início dos anos de 2010, uma campanha batizada “Lute por 15” foi organizada pelo movimento sindical, a fim de advogar pelo aumento do piso nacional do salário mínimo. Tratou-se de um movimento especialmente alinhado à defesa das comunidades onde vivem os trabalhadores mais pobres, que são, usualmente, racializados e recebem pelo piso do salário mínimo nacional, isto é, US$ 7,25 por hora (ASSOCIATED PRESS, 2022). Além de revelar a importância do sindicalismo para a formação de quadros do protesto negro, a história de Rasheed Aldridge também aponta para o protagonismo do jovem precariado na condução da atual onda do protesto negro (Shields, 2013).
Em dezembro de 2019, quando a pandemia de Covid-19 começou a vitimar centenas de milhares de pessoas mundo afora, um novo desafio surgiu para o movimento de luta pela igualdade racial e econômica: como proteger os trabalhadores considerados “essenciais”, que são, em sua maioria, racializados? Diante da negligência empresarial relativa à contenção do vírus nos locais de trabalho, sobraram poucas alternativas para que isso não passasse pela organização política “desde baixo”. Trata-se de um fator-chave para entendermos o novo ciclo de agitação trabalhista que acompanhou o início dos anos de 2020 nos Estados Unidos.
A instabilidade social causada pela pandemia de coronavírus nos permite compreender o poder de atração da mobilização sindical nos locais de trabalho. O caso da empresa Amazon é emblemático: tendo-se em vista a explosão das vendas on-line, foi notável a intensificação do ritmo do trabalho durante os primeiros meses da pandemia nos armazéns da empresa. Além disso, considerando-se as dificuldades de encontrar força de trabalho disponível, a empresa demorou para contratar novos trabalhadores (Milkman, 2020).
Quando os primeiros casos de Covid-19 começaram a aparecer no armazém da empresa em Staten Island, a insatisfação com as condições de trabalho já havia despertado nos trabalhadores o desejo de aderir às primeiras paralisações da história da Amazon. E muitos deles ajudaram a formar o comitê interno de filiação ao sindicato.
No início, o foco na segurança dos trabalhadores durante a pandemia serviu para atrair os primeiros apoios ao sindicato. [...]. Formamos um comitê interno forte com esses trabalhadores [participantes da primeira paralisação] e, conforme a campanha foi se desenvolvendo, a solidariedade aumentou.2
Parte do apoio dos trabalhadores ao comitê de filiação deveu-se à agressividade com a qual os consultores antissindicais da Amazon tratavam as lideranças operárias. Brad Moss, o líder da campanha antissindical, por exemplo, frequentemente se gabava do que havia feito em Bessemer, quando chamou os ativistas sindicais, quase todos negros, de “bandidos”, “maconheiros” e “manifestantes do Black Lives Matter”. O fato precipitou a atitude dos ativistas de enfatizar a retórica contra a opressão racial, destacando a negligência da empresa em relação à proteção das vidas dos trabalhadores negros. A intersecção entre opressão racial e exploração econômica estimulou a solidariedade de outros sindicatos e movimentos sociais.
Algumas organizações e sindicatos apareceram no nosso acampamento, como os Teamsters Local 804 e o DSA, por exemplo. Além disso, fomos visitados por Bernie Sanders e [pela deputada federal Alexandria] Ocasio-Cortez algumas vezes. Bernie e Ocasio-Cortez, inclusive, participaram do último comício da campanha de filiação, manifestando sua solidariedade. [...]. Mark Dimondstein [presidente do Sindicato dos Trabalhadores dos Correios Americanos – APWU] e Randi Weingarten [presidente da Federação Americana dos Professores – AFT] também participaram de nossa campanha. [...]. Os ativistas do Black Lives Matter of Greater New York estiveram conosco em vários momentos e foram muito importantes para impulsionar nossa campanha de financiamento coletivo on-line. A Kshama Sawant [vereadora da Câmara Municipal de Seattle], por exemplo, esteve conosco no acampamento e doou 20 mil dólares para o sindicato.3
Durante a campanha de filiação sindical, o despotismo gerencial e a opressão racial no interior da Amazon foram revelados, por meio de uma detalhada reportagem publicada pelo jornal The New York Times. Resultado de um trabalho de jornalismo investigativo de cerca de um ano, a matéria denunciava não apenas o regime fabril despótico da empresa, como também revelava a discriminação racial no cotidiano do armazém onde Smalls trabalhava (Kantor, Weise & Ashford, 2021).
A existência de uma força de trabalho majoritariamente negra, mestiça e sub-remunerada, gerenciada exclusivamente por pessoas brancas, não passou despercebida pela matéria. A opressão racial na Amazon moldava não apenas as experiências cotidianas dos trabalhadores, como alimentava o sentimento de indignação que eclodiu durante o bem-sucedido movimento de filiação ao sindicato.
Com a vitória da campanha, Smalls se transformou imediatamente em uma celebridade nacional. O jornal The New York Times publicou artigos sobre suas escolhas de roupas –Smalls é um ex-rapper e costuma se vestir de acordo–, a revista Time elegeu-o uma das 100 personalidades mais influentes do ano de 2022, a revista New York dedicou-lhe uma matéria de capa e o presidente Joe Biden o convidou para uma reunião na Casa Branca. A repercussão pública foi proporcional ao tamanho da façanha. Um grupo de ativistas sem apoio de nenhum sindicato nacional ou internacional havia derrotado o segundo maior empregador privado do país.
Contando apenas com um financiamento coletivo on-line (de cerca de US$ 120 mil) e com um ativo grupo de apoiadores (que usou de forma intensa as redes sociais), o Amazon Labor Union (ALU) tinha recursos minúsculos, se comparados com os mais de US$ 4 milhões gastos pela Amazon com consultores ao longo da campanha antissindical em Staten Island. Além do aconselhamento gratuito de alguns advogados trabalhistas, a partir do início de 2022, o novo sindicato passou a contar com um espaço oferecido pelo Unite Here!, que acabou se transformando no ponto de encontro de um grupo de ativistas veteranos que se aproximou do novo sindicato a fim de apoiar a mobilização no final da campanha.
Em contrapartida, a empresa cobriu o armazém com placas de “vote não” e bombardeou os trabalhadores com argumentos contra o sindicato, realizando reuniões das quais os funcionários eram obrigados a participar. A gerência ridicularizou abertamente Smalls, espalhando toda sorte de mentiras a seu respeito e dizendo que ele não seria “inteligente ou suficientemente articulado” para liderar uma campanha bem-sucedida de filiação sindical contra a empresa (Press, 2012).
Além da experiência dos organizadores sindicais, o despotismo gerencial praticado pela Amazon ajudou a impulsionar a campanha: alta taxa de rotatividade, baixos salários, demissões por algoritmo sem a oportunidade de discutir as razões com um supervisor humano, eliminação de folgas, intensificação do ritmo de trabalho sem ganho salarial, punição em caso de descumprimento das metas e vigilância eletrônica para monitorar a produtividade são alguns dos procedimentos mais conhecidos do regime fabril da empresa (Alimahomed-Wilson & Reese, 2020).
Assim, além da indignação dos trabalhadores, motivada pela indiferença da Amazon em relação à proteção da saúde dos trabalhadores durante a pandemia, não surpreende que o lema “não somos robôs!” tenha sido muito empregado pelos ativistas nas redes sociais durante a campanha de filiação.
De fato, durante toda a campanha, os ativistas do ALU fizeram um uso amplo das redes sociais, especialmente do Tik Tok e do Telegram, além de distribuir comida e maconha gratuitamente aos trabalhadores como forma de aproximar a base dos ativistas. Assim, ou seja, por meio das redes sociais e do contato direto com os trabalhadores, os sindicalistas souberam explorar referências culturais comuns a um grupo formado majoritariamente por moradores de comunidades negras e latinas territorialmente segregadas e assediadas pela polícia.
O uso criativo das redes sociais, associado a uma prática política vertebrada pela intersecção entre exploração classista e opressão étnico-racial, provavelmente foi estimulado pelo fato de que os ativistas sindicais eram jovens que começaram a trabalhar depois da crise de 2008. Trata-se de uma geração de trabalhadores que se aproximou tanto do movimento Occupy Wall Street quanto do movimento BLM, o que parece ter favorecido sua disposição de participar de formas de ação coletiva.
Nunca antes na minha vida eu tinha participado de um movimento social. E nem tinha intenção de participar. Você sabe: é trabalho, 12, 13 horas por dia. Quando você chega à sua casa está exausto. Não quer pensar em mais nada, só descansar. [...]. Não. Ninguém [da minha família] participava de nenhum tipo de organização política. [...]. Mas, como cidadão negro, eu sempre vi as injustiças contra nossas irmãs e nossos irmãos de cor. [...]. Sim, acompanhei com interesse os acontecimentos em Ferguson e em Baltimore. É claro que o movimento BLM é parte da minha história. Afinal, como qualquer cidadão negro neste país, eu sei o que é ser visado pela polícia. [...]. Eu conversei com ele [Smalls] rapidamente na sessão e decidi ajudar na primeira paralisação no armazém. [...]. Nossa paralisação começou por volta de meio-dia e cerca de duzentos trabalhadores saíram do armazém. Comecei a conversar com todo mundo que eu conhecia. E conversei com o [jornal] New York Post, o que fez que mais pessoas viessem e aceitassem falar comigo. [...]. Quando ele [Smalls] foi demitido, senti que o sindicato era a única coisa que eu realmente podia fazer para tentar mudar essa injustiça. Era uma maneira de proteger as vidas negras de outro jeito. Não da violência da polícia, mas da violência da empresa.4
Se levarmos em consideração a série de vitórias de campanhas de filiação sindical entre jovens trabalhadores (em especial, de professores universitários submetidos a contratos precários e instrutores de pós-graduação, mas também atendentes das lojas da Apple e da Rei, por exemplo), perceberemos indícios de uma importante mudança de atitude em relação aos sindicatos nos Estados Unidos. Trata-se de uma verdadeira guinada no ânimo dos trabalhadores, confirmada por uma pesquisa de opinião recente: a aprovação de 71% dos americanos aos sindicatos é simplesmente a maior dos últimos 57 anos (Mccarthy, 2022).
Sem dúvidas, é um fato que nos ajuda a contextualizar a vitória do ALU em Staten Island. Alguns analistas chegaram a comparar a campanha contra a Amazon com a vitória, em 1937, do Sindicato dos Trabalhadores das Montadoras de Automóveis (United Auto Workers – UAW) sobre a General Motors (GM), que, após uma longa greve, acabou reconhecendo o sindicato (Milkman, 2020). No entanto, ao contrário da GM, a Amazon não apenas não reconheceu o resultado da eleição, como acusou o Conselho Nacional de Relações Trabalhistas (National Labor Relations Board – NLRB) de influenciar ilegalmente o voto dos trabalhadores. Após contestar, sem sucesso, o resultado da eleição sindical na justiça, a direção da empresa demitiu um grande número de lideranças sindicais (Johnson, 2022).
Para Jeff Bezos, conter a onda de sindicalização é uma questão estratégica. Com mais de um milhão de funcionários, a Amazon não é apenas o segundo maior empregador dos Estados Unidos, mas uma empresa que conta com operações que envolvem várias indústrias diferentes. No setor de entregas, por exemplo, os trabalhadores ligados à empresa recebem salários significativamente inferiores em comparação com os de seus colegas sindicalizados da United Parcel Service (UPS). Ou seja, o sucesso da Amazon nas entregas ameaça diretamente as condições de reprodução de outros grupos sociais subalternos.
Sean O’Brien, o novo presidente dos Teamsters, sindicato que representa os trabalhadores da UPS, sabe bem disso e, imediatamente após o anúncio da vitória em Staten Island, anunciou que iria se reunir com Chris Smalls em Washington para planejar estratégias coordenadas para a ampliação do número de trabalhadores sindicalizados (Greenhouse, 2022). Uma das consequências da união foi a criação de uma unidade especial do sindicato voltada exclusivamente para apoiar a sindicalização dos trabalhadores da Amazon no Canadá e nos Estados Unidos (Jones, 2022).
Logo após a vitoriosa votação que criou o ALU, Smalls anunciou a pauta reivindicativa para o primeiro contrato com a empresa. Além da tradicional preocupação com o salário, as condições de trabalho e os casos da elevação do salário mínimo para US$ 30,00 por hora, do aumento das folgas e dos dias remunerados de férias, da existência de pausas remuneradas durante o dia e da representação sindical em quaisquer reuniões disciplinares, a pauta do novo sindicato também incorporou preocupações relacionadas ao combate ao racismo e à transparência nos critérios de promoção, além da promoção de cuidados infantis que beneficiam diretamente as trabalhadoras (Press, 2022).
Se a vitoriosa campanha em Staten Island, em um armazém onde trabalham cerca de 8 mil pessoas, significa ou não o início de um novo capítulo da história do sindicalismo nos Estados Unidos, só o tempo dirá. No entanto, não há nenhuma dúvida de que se trata de uma conquista sem paralelos na história da classe trabalhadora estadunidense. Ou seja, trata-se de um indício importante de que algumas placas tectônicas do mundo do trabalho se movimentaram para uma direção imprevista durante a pandemia de coronavírus.
É possível que os deslocamentos atuais entre a defesa das comunidades onde vivem os trabalhadores negros contra a violência policial e a criação de novos sindicatos em setores tradicionalmente desorganizados estejam de alguma forma repetindo aqueles já verificados no pós-Segunda Guerra Mundial, quando a luta pelos direitos civis alimentou uma cultura trabalhista militante, que desafiou tanto as gerências quanto as burocracias sindicais. A exemplo do passado, a atual onda de agitação trabalhista nos Estados Unidos também depende em larga medida da ação insurgente de diferentes movimentos sociais antirracistas organizados em redes sociais solidárias.
Há aproximadamente 70 anos, uma ampla coalizão, que envolveu sindicatos e movimentos sociais antirracistas, derrotou as leis de segregação que ainda vigoram no sul do país, inaugurando um novo capítulo na história da luta de classes na América. Hoje em dia, que alcance teria um ciclo de agitação trabalhista com características semelhantes? Apesar de não termos uma resposta definitiva para tal questão, uma coisa é certa: a história das mobilizações populares nos Estados Unidos iniciou uma nova etapa, marcada pela reconfiguração das identidades coletivas dos trabalhadores do país, cujos protagonistas são grupos sociais racializados.
Recibido el 4 de julio de 2024. Aceptado el 10 de septiembre de 2024.
*Ruy Braga é Professor titular (2019) em Sociologia da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Livre docente da USP (2012). Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) (2002). Mestre em Sociologia (1996). Graduado em Ciências Sociais (1993). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6933348358102726. E-mail: ruy.braga@usp.br.
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1 Entre os anos de 2015 e 2016, quando eu morava em Berkeley, acompanhei in loco a onda de protestos de estudantes negros, apoiada por uma coalizão multirracial, formada após o levante de Ferguson.
2 Chris Smalls, presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Amazon (ALU), entrevistado em 2 de novembro de 2022. In: BRAGA, Ruy. A angústia do precariado [recurso eletrônico]: trabalho e solidariedade no capitalismo racial. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2023.
3 Ibidem.
4 Ibidem.
Revista Ensambles Otoño 2024, año 11, n.20, pp. 1-18
ISSN 2422-5541 [online] ISSN 2422-5444 [impresa]
Ruy Braga
REVISTA ENSAMBLES AÑO 11 | Nº 20 | otoño 2024 | artículos PP. 1-18 |