CÓMO CITAR ESTE ARTÍCULO: Oliveira, M. M. V. de.. y Corrêa Marques, M. I. (2024). Mapeamento das subjetividades individuais e coletivas: novos olhares para as estratégias de incubação na Economia Solidária. Otra Economía, 17(32), 5-33.
Mapeamento das subjetividades individuais e coletivas: novos olhares para as estratégias de incubação na Economia Solidária
Maristela Miranda Vieira de Oliveira
maristela.miranda@uesb.edu.br
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. Vitória da Conquista, Bahia – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1911-1985
Maria Inês Corrêa Marques
br3imarques@yahoo.com.br
Universidade Federal da Bahia – UFBA. Salvador, Bahia – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6666-6997
Recibido: 08/08/2024 - Aceptado: 12/11/2024
Resumo: Essa pesquisa teve como objetivo analisar aspectos da subjetividade individual e coletiva de profissionais do artesanato, para compreender a dinâmica de interação e colaboração em organizações da Economia Solidária. O texto transita pelos conceitos de complexidade (Morin, 2015), subjetividade (Gonzalez Rey, 2003) e Redes (Metz, 2007) e os resultados demonstram que a utilização de redes semânticas em conjunto com a escuta de narrativas, permite identificar aspectos da subjetividade que mobilizam grupos de produção associada criando possibilidades de intervenções assertivas para as incubadoras universitárias de Economia Solidária.
Palavras-Chaves: Subjetividades, rede semântica, Economia Solidária
Resumen: Esta investigación tuvo como objetivo analizar aspectos de la subjetividad individual y colectiva de los profesionales del oficio, para comprender las dinámicas de interacción y colaboración en las organizaciones de Economía Solidaria. El texto transita por los conceptos de complejidad (Morin, 2015), subjetividad (González Rey, 2003) y Redes (Metz, 2007) y los resultados demuestran que el uso de redes semánticas en conjunto con la escucha de narrativas permite identificar aspectos de subjetividad que movilizan grupos productivos asociados, creando posibilidades de intervenciones asertivas para las incubadoras universitarias de Economía Solidaria.
Palabras clave: Subjetividades, red semántica, Economía Solidaria
Abstract: This research aimed to analyze aspects of the individual and collective subjectivity of craft professionals, to understand the dynamics of interaction and collaboration in Solidarity Economy organizations. The text moves through the concepts of complexity (Morin, 2015), subjectivity (Gonzalez Rey, 2003) and Networks (Metz, 2007) and the results demonstrate that the use of semantic networks in conjunction with listening to narratives allows us to identify aspects of subjectivity that mobilize associated production groups, creating possibilities for assertive interventions for university Solidarity Economy incubators.
Keywords: Subjectivities, semantic network, Solidarity Economy
O último mapeamento da Economia Solidária realizado no Brasil e publicado em 2016 (IPEA, 2016), sinalizou a dificuldade das equipes para encontrar, em atividade, as organizações solidárias que compuseram o mesmo mapeamento realizado em 2013. De acordo o relatório, no ano de 2016 muitas não existiam mais. O levantamento apresentou 19.708 unidades de Economia Solidária, distribuídos em 2.713 municípios brasileiros, dos quais 60,2% dos empreendimentos apareceram pela primeira vez nas estatísticas do IPEA. Do total de organizações visitadas, apenas 39,8% estavam presentes no levantamento anterior. Apesar da análise não ter se aprofundado no motivo da inexistência das antigas organizações produtivas, o próprio mapeamento revelou que, para 56,1% dos respondentes, a dificuldade em manter a união e colaboração do grupo tem sido um dos desafios enfrentados no dia a dia dessas associações e cooperativas (IPEA, 2016). Esse desafio costuma ser sentido nas entidades de apoio e fomento vinculadas a universidades, prefeituras ou organizações não governamentais, tais como as Incubadoras.
Na Economia Solidária, a formação das organizações está alicerçada na existência de vínculos capazes de reunir profissionais em torno de um objetivo. Assim, inicia-se um processo de estruturação e construção da sustentabilidade daquele coletivo. Por outro lado, o motivo que atrai esses profissionais, quer seja o desejo de produzir e comercializar coletivamente ou compartilhar as ferramentas de produção para gerar renda, se revela em meio a múltiplos outros quereres que compõem o lugar de fala de cada indivíduo, refletido em suas personalidades e singularidades.
O crescimento da Economia Solidária e dos avanços observados neste campo, seja na configuração das políticas públicas ou na consolidação de espaços públicos de comercialização, não elimina conflitos internos entre integrantes dos grupos produtivos. O fato é que as relações de colaboração, enquanto base constitutiva da Economia Solidária, ainda desafiam as entidades de apoio, a exemplo das Incubadoras Universitárias, que testemunham a fragilização da união em organizações de produção associada, tão caras ao Movimento de Economia Solidária.
Isto posto, e considerando os sete anos de atividades junto à Incubadora de Empreendimentos Solidários da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) foi possível observar uma lacuna em relação ao comportamento dos integrantes de grupos de produção associada, em suas condutas individuais e nos encontros conjuntos, causando discrepância entre as decisões tomadas em grupo e a prática no dia a dia e gerando rupturas e enfraquecimento dos coletivos. Quando acontecem essas rupturas, revelam-se as diferenças individuais que levaram ao desgaste da habitual união e, entre tantos desafios da gestão de grupos de produção associada que envolvem desde financiamento da atividade até questões legais e de aprimoramento da produção, torna-se comum caminhar reunindo o que une, priorizando a formação do grupo, com o objetivo de alinhar desejos e expectativas. Porém, incorre-se no risco de invisibilizar aspectos inerentes à subjetividade dos sujeitos do processo, tais como medos, mágoas, crenças que os diferenciam e que, quando não observados, possam se transformar em motivos de separação, fragilizando a proposta das relações colaborativas. O esforço de colaboração, ainda que seja motivado pela equipe de assessoria, está condicionado à vontade pessoal dos profissionais, representando um movimento intrínseco e individual, alimentado por aspectos da subjetividade de cada um e direcionando o interesse e motivações necessárias para o agir em grupo, resultando na (esperada) união dos indivíduos.
Particularmente, em relação às incubadoras universitárias de Economia Solidária, a escolha dos processos de gestão que serão transferidos para os grupos incubados se torna fundamental, visto ser um Movimento assentado em princípios contrários aos princípios do mercado convencional (competição e concorrência), e que presume a utilização de modelos diferenciados como forma de não reproduzir, em seu interior, as mesmas estratégias sobre as quais se deseja combater. Essa possibilidade exige vigilância constante para que instrumentos, ferramentas e metodologias, sejam pensadas e planejadas buscando a coerência com os princípios orientadores do Movimento de Economia Solidária.
Essa reflexão transformou-se em motivação para a idealização da pesquisa que ora se apresenta e que se desdobrou a partir do seguinte questionamento: como os aspectos da subjetividade de profissionais do artesanato interferem na dinâmica de interação e colaboração em grupos de produção associada?1 Observar essas condições, a partir do mapeamento das subjetividades individuais e coletivas, cria possibilidades de análise para fins de desenvolvimento de estratégias visando o fortalecimento da interação entre os grupos e seus associados.
1. Complexidade e subjetividades: dialogando com o individual e o coletivo na Economia Solidária
Seguindo a racionalidade característica do pensamento complexo (Morin, 1999), onde os fenômenos devem ser analisados sob várias dimensões numa dinâmica oposta ao pensamento reducionista, buscou-se, nesta seção, evidenciar a presença de aspectos da subjetividade como formadores de valores e princípios dos profissionais do artesanato, implicando o fazer coletivo em grupos de produção associada. Com tais balizamentos foi possível reunir elementos de análise que os paradigmas da complexidade e subjetividade auxiliaram articular.
1.1 Entre símbolos, mitos, crenças e ritos: a formação do sistema de valores que motiva o fazer coletivo
O desafio de discutir subjetividades está na capacidade de investir-se de uma racionalidade complexa e, a partir de uma razão aberta, permitir o diálogo com aspectos que podem ser singulares, individuais, únicos, como também plurais e coletivos. A Teoria da Complexidade (Morin, 2011) defende duas racionalidades diferentes para compreender o mundo: a visão empírico/técnico/racional; e a visão simbólica/mitológica/mágica. Ambas imbricadas num aspecto complementar, onde a compreensão de uma não elimina a outra, ao contrário, dá origem a uma concepção real do mundo. O pensamento empírico/técnico/racional focaliza a objetividade, enquanto o pensamento simbólico/ mitológico/ mágico focaliza a realidade subjetiva. É a dicotomia entre a lógica e o mito, a primeira controla, mas também atrofia o pensamento vez que está desprovida do sentido (signo) que concebe o singular; e o segundo (mito), alimenta, porém, confunde o pensamento, vez que está permeado de símbolos, ritos, magias e desprovido da imunidade empírico/lógica contra o erro. Enfim, a razão humana está povoada da lógica, que comanda o universo racional, e também das analogias, que comandam o universo simbólico/mitológico (Morin, 2011, 2015a, 2015b). Essas analogias, produzem representações que se projetam sobre o mundo exterior identificando-se com a realidade percebida e, a partir daí, conseguem explicar os mitos, criar as crenças, originar os ritos, e definir um sistema de valores capaz de motivar o comportamento individual e, também, comportamentos coletivos, como mostra a Figura 01.
Os símbolos estão ligados ao imaginário e são capazes de despertar sensações, lembranças, medos, receios e toda uma estrutura de sentimentos, presentes na esfera da subjetividade. O pensamento simbólico é também um pensamento mitológico, contudo, o mito está diretamente ligado à linguagem, meio pelo qual se propaga, se estabelece, expressa uma compreensão subjetiva de um mundo interior e, nesse sentido, o mito se torna maior que o símbolo, pois desencadeia narrativas.
Figura 01: Aspectos da Subjetividade Humana
Fonte: Organizado pela autora, 2021
Para Morin (2015), mitos são narrativas recebidas como verdadeiras e que abrem espaço para múltiplas interpretações. Enquanto o pensamento simbólico decifra símbolos (a cruz, uma bandeira, um slogan, o tarô, as linhas da mão), o pensamento mitológico constrói narrativas, numa perspectiva polilógica, com proliferação semântica e excesso de significações, “os maiores ou os mais profundos mitos contam a origem do mundo, a origem do homem, seu estatuto e seu destino na natureza, suas relações com os deuses e com os espíritos” (Morin, 2015, 175).
O universo simbólico ganha uma narrativa se transformando em mito, este por sua vez vai gerar a crença e esta vai produzir os ritos (danças, repetição de palavras, frases, iniciações, celebrações, ritos de sepultamento, de casamento, de desculpas, apertos de mão, abraços, ritos de paz e ritos de guerra, rituais de amor). Os ritos são a manifestação real da crença de um indivíduo, estão imbricados com a lógica interior de quem o faz, sendo representações da subjetividade individual e/ou social no mundo. Portanto, o conjunto de símbolos, mitos e crenças, se revela através de ritos, formando um sistema de valores que representa os aspectos da subjetividade humana, capaz de criar o mundo e o explicar para além da lógica empírica/técnica/racional.
Sobre a subjetividade, Gonzalez Rey (2003, 2005, 2017) alerta para o quanto esta palavra costuma ser usada de forma aleatória, indicando processos diversos ou para justificar tudo que não se consegue explicar e apresenta a Teoria da Subjetividade enquanto ferramenta conceitual para o desenvolvimento de pesquisas.
Partindo da perspectiva de que a subjetividade é complexa, dialógica, dialética e influenciada pelo contínuo movimento da sociedade, Gonzalez Rey (2017) desenvolve categorias de análise como múltiplas dimensões para compreensão desta enquanto teoria. Categorias centrais ganham destaque na medida do aprofundamento da discussão, são elas: subjetividade individual e social, sentidos subjetivos e configurações subjetivas.
Na primeira categoria a subjetividade é conceituada como a qualidade de um tipo de processo, social ou individual, específico do desenvolvimento humano e sua condição histórica e cultural ao longo da vida (Gonzalez Rey, 2017). A teoria vai de encontro à ideia de que a subjetividade esteja associada apenas à individualidade, à psiqué ou fenômenos intrapsíquicos. Tampouco seja o resultado de relações lineares como causa e efeito. Ao contrário, traduz-se em uma teia complexa, movimentada por processos advindos da experiência vivida. Ainda que a subjetividade esteja relacionada ao indivíduo, as relações tecidas por ele ao longo da vida e desde a mais tenra idade, envolto pela cultura do ambiente que o cerca, bem como por fatores históricos que o antecedem e o precedem, tornam-se coadjuvantes na formação dos aspectos subjetivos que compõem a sua psiquê.
No que tange à subjetividade social, aparece constituída, tanto nos indivíduos quanto no grupo, na medida em que se observa uma relação recursiva onde a ação de um gera uma mudança no outro que, ao transformar-se, também promove mudança no mesmo indivíduo. Muito coerente com o princípio recursivo observado na Teoria da Complexidade (Morin, 2015). Essa premissa também corrobora com uma fala de Freire (1993) ao afirmar que ninguém nasce feito, é experimentando-nos no mundo que nós nos fazemos. Assim, a conceituação de subjetividade individual aparece fortemente relacionada ao conceito de subjetividade social, uma vez que o indivíduo e o social se complementam e se transformam (Mitjáns Martínez; González Rey, 2019).
A segunda categoria que explica a Teoria da Subjetividade diz respeito aos sentidos subjetivos. Um contínuo de elaborações internas, geradas a partir de inúmeras experiências e situações vividas. Além disso, eles representam a menor unidade simbólica-emocional formadora da subjetividade, podendo ser consideradas como indicadores capazes de sugerir uma intenção, um sentimento ou mesmo um medo. Na Teoria da Subjetividade, o conceito de sentido está intimamente ligado ao pensamento, linguagem e fala, e tem uma função importante na organização da psiquê, inclusive, na significação das palavras. Gonzalez Rey (2017) corrobora o pensamento de Vygotsky (1996), afirmando que o sentido de uma determinada palavra é a reunião de todos os fatos psicológicos que surgem em nossa mente como resultado daquela palavra. Assim exemplifica:
A palavra adquire sentido numa frase. A frase em si mesma adquire sentido, porém no contexto do parágrafo, o parágrafo no contexto do livro, e o livro no contexto dos trabalhos escolhidos do autor. Finalmente, o sentido da palavra é determinado por tudo o que na consciência está relacionado com aquilo expresso na palavra (Vygotsky, 1996: 276).
Numa visão heurística, os sentidos não são analisados a despeito do pensamento, das palavras e da linguagem, mas sim a partir de uma dinâmica complexa capaz de criar significados formando a subjetividade. Essa dinâmica se expressa na terceira categoria, Configurações Subjetivas, onde os sentidos subjetivos organizam-se em um sistema recursivo, influenciando o social e sendo influenciado por ele, e à medida que adquirem uma lógica configuracional, também contribuem para organizar configurações subjetivas sociais.
A auto-organização dos sentidos subjetivos, evidenciados por referências afetivas, lembranças, temporalidades e expressões, revela o estado subjetivo dominante, responsável pela formação de aspectos da subjetividade, tais como crenças, mitos, ritos e valores, capaz de orientar as ações e atitudes do indivíduo e seu grupo. Assim, tais aspectos criam as configurações subjetivas que definem a cultura de um grupo, formando um complexo sistema de valores nos diferentes espaços da vida social. Esses espaços tornam-se ambientes de identidade coletiva, onde símbolos passam a ter funções comunitárias e se transformam em significantes da estrutura social a qual pertence.
O acesso aos sentidos subjetivos pode acontecer através do diálogo, estratégia capaz de abrir caminhos imprevisíveis e espontâneos, no qual a fala se torna uma produção subjetiva que informa para além de significados explícitos, revelando configurações subjetivas possíveis de serem apreendidas a partir da escuta de narrativas e todos os seus processos. O valor dessas construções reside em seu caráter não declarativo, espontâneo, revelando particularidades associadas ao mundo simbólico do indivíduo.
Uma vez elaborada determinada configuração subjetiva, os indivíduos assumem seus papéis dentro do contexto que lhes acolhe, respondendo às movimentações do ambiente a partir do seu estado subjetivo dominante, composto por todos os símbolos, ritos, mitos, crenças a que foram submetidos ao longo da vida. A Teoria da Subjetividade evidencia a importância do mundo simbólico e da cultura para formação de aspectos da subjetividade de indivíduos e seus grupos, ao tempo em que revela a urgência da criação de métodos objetivos para estudar realidades não objetivas.
Um indivíduo se torna sujeito de seu conflito quando consegue superar uma configuração dominante abrindo novos caminhos de subjetivação, no curso das experiências vividas (Gonzalez Rey, 2017). Isso faz da subjetividade um sistema aberto, capaz de se auto organizar por diversas configurações, em diferentes momentos e contextos da experiência humana. Essa possibilidade de auto-organização, que possibilita inúmeras configurações, sugere que interpretar os símbolos que compõem os sentidos subjetivos deve ir além de identificar as distinções entre eles, mas, principalmente, entender as conexões entre as representações da realidade percebida/memorizada e o símbolo que lhe traduz.
A compreensão de uma conexão deste nível, revela caminhos possíveis para processos de empoderamento dos indivíduos e seus grupos, numa perspectiva de construção conjunta, em que semelhanças (traços humanos e culturais comuns), e dessemelhanças (singularidades), possam ser visualizadas e ressignificadas, tendo como princípio o respeito ao processo de individuação e motivando diálogos assertivos para o encontro destes profissionais.
Morin (2011), também alerta para estereótipos cognitivos que seriam conjunto de paradigmas, crenças, doutrinas e verdades absolutas a que uma sociedade é exposta, e que se transformam em conformismos cognitivos, criando espaços de ideologias dominantes. Ambientes caracterizados por sistemas imperativos, proibições e bloqueios, revelam configurações subjetivas marcados por preconceitos e crenças manipuladoras. Esses aspectos, inerentes à subjetividade individual e social, podem agir como barreira impedindo uma situação de mudança. Contudo, os indivíduos e seus grupos podem se tornar sujeitos desse processo, por meio de uma atitude ativa na construção de novos sentidos subjetivos, alterando a própria configuração subjetiva dominante, e não se tornando vítima da sua subjetividade, mas sim convergindo para um posicionamento ativo, criando um processo de individuação capaz de gerar desenvolvimento humano.
2. Metodologia e Concepções Norteadoras da Investigação
Assumindo o olhar multidimensional do paradigma da complexidade, nesta pesquisa, buscou-se integrar, simultaneamente, múltiplas dimensões de uma mesma realidade. Para tanto, foram conciliados aspectos da subjetividade, examinando o que se manifesta e é aparente na realidade dos profissionais de artesanato integrantes do Movimento de Economia Solidária, a fim de que fosse possível compreender semelhanças e diferenças desses indivíduos capazes de motivar ou não a dinâmica de atuação em grupo.
A metodologia utilizada foi o Estudo de Caso tendo como unidade de análise a Incubadora de Economia Solidária da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB. Para o levantamento dos dados optou-se por estudar o grupo de artesãos que esteve na Incubadora por 04 anos, formaram uma cooperativa que funcionou por dois anos e foi desativada. O grupo foi escolhido pelo fato de ter sido um coletivo que experimentou vários conflitos de ordem pessoal, com sérias dificuldades de relacionamento, desentendimentos, inseguranças e dúvidas, resultando na fragmentação e desativação da Organização Econômica Solidária.
2.1 A Cooperativa Criar e Recriar e o processo de Incubação
A cooperativa Criar e Recriar reuniu um coletivo de 30 artesãos e manteve-se ativa por dois anos, entre o período de 2013 a 2015. O grupo de artesãos se aproximou da Incubadora no ano de 2009 quando da realização de um projeto social que oferecia cursos de tricô, crochê e demais atividades ligadas ao artesanato.
Nessa ocasião, a Incubadora realizou palestras e encontros com temáticas de empreendedorismo social e geração de ocupação e renda e, percebendo o interesse dos participantes em continuar unidos no desenvolvimento do trabalho de artesanato, passou a acompanhar aquele grupo numa fase de pré-incubação. Assim, os artesãos foram respondendo positivamente às demais etapas de incubação, vindo a formar, por decisão própria e com assessoria da Incubadora, o empreendimento cooperativista no ano de 2013.
Esse público, que não tinha o artesanato como principal fonte de renda, passou a ter oportunidade de aprimorar suas habilidades e competências e, após um ano de encontros e sensibilizações sobre a viabilidade de comercialização dos produtos, demandaram por uma organização optando por montar a cooperativa, delimitando para o empreendimento os seguintes objetivos:
»Comercialização de produtos artesanais
»Melhoria da qualidade de vida dos envolvidos através da geração de ocupação e renda.
»Desenvolvimento de oficinas para aprimoramento do trabalho artesanal.
»Estímulo ao empreendedorismo social na região.
»Instrumentalização para produção e comercialização coletiva.
»Implantação de espaço para exposição e comercialização dos produtos da cooperativa.
»Parcerias com unidades da agricultura familiar da região para criação de rede colaborativa.
A assessoria junto ao grupo aconteceu durante os anos de 2009 a 2015 e foram divididas conforme apresenta o Quadro 01:
Quadro 01: Atividades do período de incubação
AÇÃO |
ATIVIDADE |
Planejamentos |
Diagnósticos socioeconômico Encontros semestrais para avaliação das ações Encontro anual para apresentação dos resultados |
Palestras |
Empreendedorismo Social Cooperativismo e Artesanato Educação Ambiental Programação Neurolinguística |
Oficinas |
Flores de Palha de Milho Papietagem e Reciclagem Bordado com fita e à mão Tricô e Crochê Bainha Aberta |
Cursos |
Cooperativismo e Associativismo Produção, Comercialização e Distribuição Processo organizador em empreendimentos cooperativos Estratégia de vendas Design de Artesanato Semana do Empreendedorismo |
Feiras de Artesanato |
1ª Feira de Trocas do Centro de Extensão Participação em Feiras de Economia Solidária de Vitória da Conquista - BA. |
Fonte: Acervo e Registros da Incubadora de Economia Solidária da UESB, 2020.
O grupo avançou no projeto de incubação a partir da legalização da cooperativa, demonstrando apreensão das técnicas e instrumentos de gestão, além de terem se mostrado, progressivamente, mais envolvidos nas ações organizacionais por meio de processos de tomada de decisão.
Contudo, após dois anos de trabalho conjunto, nos quais se mostravam satisfeitos e confiantes, obtendo resultados positivos em relação à comercialização, participação em feiras de Economia Solidária e desenvolvimento de novos produtos artesanais, esse coletivo, diante do desafio de assumir uma encomenda maior que seria de grande importância financeira para o desenvolvimento da cooperativa, passou a demonstrar extrema insegurança em relação ao grupo e permitiu que fatos pessoais, jamais discutidos ou trazidos durante os encontros de avaliação, fossem responsáveis pela inativação do empreendimento.
2.2 Entrevista Narrativa e Redes Semânticas como instrumentos de coleta de dados e representação do conhecimento
Consciente dos limites e desafios que envolvem o lidar diário com grupos populares de produção associada e a busca de instrumentos adequados ao perfil de cada grupo, percebe-se a insuficiência de modelos e estratégias de gestão destinados, especificamente, às organizações cooperativistas e associativistas com princípios populares solidários. Essa constatação, influenciada também pela própria experiência com os grupos acompanhados, revelou a necessidade de se buscar outros campos de conhecimento, a fim de entrelaçar outros saberes com as atuais estratégias organizacionais, para responder ao desafio da gestão em grupos de produção associada com caráter popular solidário
Assim, a entrevista narrativa e a rede semântica tornaram-se instrumentos de coleta de dados coadjuvantes com o desafio proposto, tendo sido escolhidos por contribuírem para a representação do conhecimento oferecendo diferentes possibilidades discursivas, numa estratégia de integração de dados quantitativos e qualitativos (Oliveira & Marques, 2020).
Tendo como verdadeira a disposição dos indivíduos para narrarem as suas próprias vidas (Bauer & Gaskell, 2012), a entrevista narrativa foi utilizada na perspectiva de contribuir para a revelação de aspectos da subjetividade dos participantes.
Convém ressaltar que, surpreendidos pela emergência sanitária global da Covid-19, durante o processo de pesquisa de campo, a pesquisa precisou ser replanejada de forma a reduzir o número de participantes de 30 artesãos para 15, caracterizando uma amostra por acessibilidade, já que naquele momento houve uma interrupção das feiras de artesanato, além da questão do isolamento social que exigia cuidado e respeito às condições particulares de cada um para não os colocar em risco. Assim, metade das entrevistas precisou ser realizada à distância, através de contato por telefone. Apesar disso, foram assegurados os mesmos cuidados das entrevistas presenciais, de forma que os entrevistados autorizassem a gravação de suas falas e as entrevistas acontecessem em hora combinada antecipadamente, para não ocorrer interrupções durante a escuta das narrativas. Foram entrevistados 15 artesãos e as entrevistas tiveram um tempo médio de 20 minutos, tanto no formato presencial como no formato à distância (por ligação telefônica), esse espaço temporal aconteceu de forma natural, sem exigências quanto ao tempo limite da conversa, que iniciou e terminou conforme a disponibilidade do artesão.
A escolha das estratégias de aproximação foi cuidadosamente planejada, para tanto, obedeceu-se a um ritmo de encontros onde, primeiramente, a pesquisadora fez-se conhecer e/ou reconhecer, oferecendo também a sua narrativa de vida, sonhos, medos e desejos, a fim de motivar a sintonia necessária que permite o revelar de narrativas. Com alguns artesãos bastou um encontro, com outros foi preciso mais de um, e tiveram também aqueles que não permitiram aproximação. Com todos, o respeito à individualidade foi ponto central na tessitura do momento, e os que participaram receberam e assinaram o Termo de Compromisso Livre e Esclarecido (TCLE), conforme orientação do Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade, descrevendo todos os processos e cuidados que seriam envidados para garantir discrição em relação às suas falas.
As entrevistas acompanharam, o padrão elaborado por Jovchelovitch & Bauer (2002) cumprindo as etapas de iniciação, narração central, fase de perguntas e fala conclusiva. Anotações foram feitas imediatamente após a entrevista.
A escuta das narrativas aconteceu através de encontros individuais, criando um ambiente de acolhimento, liberdade e com permissão para gravar em áudio tudo que ali fosse dito. Durante a escuta foram feitas pequenas indagações que aproximassem a conversa das categorias de análise definidas na pesquisa. Essa técnica permitiu ao entrevistador estimular o entrevistado a contar sua história a partir de uma indagação inicial, criando um limite para o assunto a ser abordado. Como também foi possível conduzir a entrevista de forma que a narrativa transitasse pelos aspectos da subjetividade de interesse do estudo, tais como os mitos, ritos, crenças e sistemas de valores, que formaram as categorias de estudo e deram origem às questões necessárias para realização da entrevista. Assim, chegou-se às perguntas que conduziram a entrevista narrativa e que foram elaboradas no formato de entrevista semiestruturada, conforme o quadro 02:
Quadro 02 - Entrevista Narrativa
Tema da entrevista: Artesanato |
Qual o significado do artesanato na sua vida? |
Você tem um sonho? |
O que te assusta? |
O que facilita e dificulta o teu trabalho? |
Como você costuma criar suas peças? |
O que é mais difícil na hora de vender suas peças? |
Como seria o lugar ideal para você vender seu artesanato? |
Fonte: Organizado pela autora, 2021
É válido lembrar que o espaço de tempo entre o encerramento das atividades da cooperativa em questão e a realização desta pesquisa foi de 05 (cinco) anos. A ideia da pesquisa foi identificar os símbolos, mitos, crenças e ritos que impulsionam esses profissionais, independente da forma como escolham comercializar as suas peças. Logo, não esteve em questão arguir sobre a experiência cooperativista, pois assim estaríamos vinculados a imagens e lembranças do empreendimento anterior, apesar de que, em alguns momentos, foi inevitável que falassem algo sobre a cooperativa, o que não interferiu na narrativa das vivências particularizadas com o seu artesanato.
Enfim, como estratégia de representação do conhecimento, foram elaboradas 07 redes semânticas, permitindo uma análise multidimensional que possibilitasse a visualização desses profissionais por seus aspectos subjetivos individuais e coletivos.
Redes semânticas são grafos onde os nós são representados pelas palavras e as arestas que conectam esses nós definem a relação entre eles (Barabási, 2016; Metz, 2007). Através das métricas de centralidade de proximidade (soma das distâncias de um vértice a todos os demais vértices da rede) e centralidade de intermediação (influência que um vértice exerce sobre os seus pares), foi possível observar o quanto uma palavra aparece conectando-se a diversas narrativas, bem como a formação de Redes Livres de Escala (presença de poucos vértices muito conectados, denominados Hubs (eixo), e muitos vértices pouco conectados). Nesse caso, os Hubs foram demonstrados pelo aumento do rótulo dos nós altamente conectados. Assim, quanto maior o tamanho da palavra (rótulo dos nós), mais vezes ela transitou pelas narrativas ali conectadas.
Para a elaboração das redes semânticas, optou-se por ferramentas e instrumentos que pudessem somar dentro desse processo, permitindo a gestão de todos os dados e gerando informações confiáveis que, para além da objetividade necessária, revelassem aspectos subjetivos implícitos nas falas. Para tanto, utilizou-se a Plataforma Gephi 0.9.2 que consiste em um programa capaz de gerar novas formas de visualização de informações, baseado em grafos. O Gephi disponibiliza algoritmos para a estruturação topográfica da rede, gerando fácil visualização dos nós e arestas, bem como a existência de hubs e clusters, facilitando a análise dos dados.
Uma vez que o objetivo da pesquisa foi identificar os aspectos da subjetividade individual e coletiva capazes de aproximar ou afastar os artesãos, para melhor compreensão da dinâmica de integração em uma organização cooperativista ou associativista, optou-se pela utilização dos algoritmos Force Atlas 2 e Fruchterman – Reingold, a fim de compor a estrutura topográfica da rede. Nesse sentido, no Force Atlas 2 os nós que possuem fortes conexões são atraídos, enquanto os nós que possuem fraca conexão são empurrados; já o Fruchterman – Reingold, utilizado em redes menores, onde a força dos nós não são tão diferentes, nós com maiores métricas se movimentam em direção ao centro da rede, enquanto os demais permanecem transitando no seu entorno (Cherven, 2015). Assim, utilizou-se os dois algoritmos conforme a rede apresentasse mais ou menos força entre os nós, dando ideia de forte diversidade ou menos diversidade. Onde surgiu mais clusters, indicando padrões ou micro estruturas internas, optou-se pelo uso do Force Atlas 2, que junta o que é igual e empurra o que é diferente. E na rede que apresentasse poucos clusters, utilizou-se o Fruchterman – Reingold, para visualizar o que era central.
Também foram usadas ferramentas de digitação de textos e elaboração de planilhas, para viabilizar o controle e tratamento dos dados, a fim de transformá-los em informações e, posteriormente, no conhecimento almejado.
O processo de transformação das narrativas em redes semânticas foi realizado a partir de 05 (cinco) etapas: digitalização das narrativas e criação de arquivos individuais; classificação das falas, a partir das categorias delimitadas para análise dos aspectos da subjetividade (símbolos, mitos, crenças, ritos, sonhos, temores e valores); leitura analítica dos textos para limpeza de artigos, preposições, conjunções e demais palavras irrelevantes para a análise pretendida, bem como para união de palavras que formavam expressões; criação de matrizes adjacentes2 com ajuda de editor de planilhas, a fim de possibilitar a leitura dos dados na plataforma Gephi 0.9.2.
A transcrição dos dados gerou um arquivo com 06h 09min 27seg. de áudio, resultando num total de 26.400 palavras provenientes da escuta das narrativas.
Assim, o estudo testou a utilização de entrevistas narrativas, em conjunto com a elaboração de rede semântica, como instrumentos para identificação de símbolos, mitos, crenças, ritos e o sistema de valores que compõem a subjetividade individual e coletiva de profissionais de artesanato implicados na Economia Solidária. Uma vez que a análise a partir das redes permite observar aspectos de integração, ao mesmo tempo em que possibilita a identificação do que é diverso num grupo de dados, esta estratégia metodológica permitiu apontar o que seriam interesses convergentes e interesses conflitantes, através de dados que se ajustaram compondo uma imagem do grupo. O desenho, criado a partir das palavras e expressões utilizadas por cada um, contribuiu para visualizar caminhos onde os aspectos da subjetividade se encontram ou se distanciam, gerando um modelo de interpretação daquele coletivo.
As redes elaboradas no contexto desse trabalho, para visualização das configurações subjetivas que traduzem o grupo de artesãos, indicaram seguir a topografia das redes livres de escala, uma vez que todas apontaram a existência de Hubs (poucos vértices/nós muito conectados em meio a muitos outros vértices/nós com menos conexões). A importância de compreender a organização desse modelo de rede, para a análise semântica, está no fato de que os Hubs representam palavras que conectam o maior número de narrativas, indicando a força que aquela palavra ou expressão possui na formação da subjetividade dos agentes econômicos. A identificação de um Hub é útil devido a importância que ele assume na mensuração da resistência da rede, haja vista que as redes evoluem a partir da conexão entre os vértices (nós), e que a sua permanência indica o nível de conectividade existente. Logo, se um Hub for retirado causará fragilidade na estrutura geral.
Em se tratando de uma rede semântica que apresenta as narrativas de profissionais do artesanato, a identificação de Hubs revela palavras e expressões com forte significado no imaginário dessa comunidade. Em nível de idealização de instrumentos e ferramentas de gestão, há de ser considerado tais implicações para otimizar a comunicação junto aos indivíduos participantes do processo, bem como a visualização do lugar de importância, para o grupo, dos conceitos estratégicos na criação de uma organização produtiva adaptada à realidade daquele coletivo.
Em relação à centralidade, as redes se mostraram multicêntricas, essa organização se torna relevante na discussão da racionalidade em volta das estratégias de fortalecimento da Economia Solidária, em especial, a proposta de estratégias de compreensão da dinâmica de cooperação entre os grupos. Uma vez que se pretende desenvolver um espaço inverso ao que se observa nas relações baseadas no mercado convencional, a característica multicêntrica observada na configuração dessas redes revela que o público desse Movimento, ou seja, os profissionais de artesanato, demonstram aproximarem-se e afastarem-se conforme os aspectos da subjetividade analisados, e essa constatação indica a importância de cuidar das esferas onde se observam tais diferenças, no sentido de dialogar com o que é diverso, dialogar com a contradição buscando a evolução conjunta, baseado no respeito pelas diferenças e não na exclusão, a fim de seguir uma racionalidade própria, contra hegemônica, voltada para a solidariedade, cooperação e atuação em rede.
Nesse sentido, torna-se fundamental manter vigilância constante nas estratégias e ferramentas utilizadas por assessores e agentes de desenvolvimento, visando a unidade do grupo, para que a base da solidariedade e cooperação seja o princípio que guie todo o caminhar dessa construção, buscando o fortalecimento de muitas redes capazes de conectarem-se, garantindo a formação de um mercado forte para os seus integrantes, e desviando da lógica de padronização de comportamentos que conduz a racionalidade do mercado formal.
Enfim, apresenta-se nessa seção o resultado da elaboração das redes Símbolos, Mitos, Crenças, Ritos, Sonhos, Temores e Valores, tendo como desafio analisar a lógica configuracional (Gonzalez Rey, 2017) representativa da subjetividade dos artesãos.
A Rede 01 - Símbolos e Mito, revelou um mundo simbólico permeado por imagens que evocaram os fortes laços familiares envoltos no ofício dos artesãos. A presença marcante da imagem da mãe, a graça da vida e a chegada dos filhos perpassaram a grande maioria dos discursos e revela, no centro dessas memórias, a condição de lar e amor incondicional por onde transita essa atividade. Surgiram os avós, tios, a ideia de tradição, herança familiar e até mesmo a figura da vizinha que permanece entrelaçada nos laços da família. Tais lembranças corrobora com Rey (2017) ao evocar as referências afetivas, lembranças, temporalidades e expressões, revelando o estado subjetivo dominante, responsável pela formação de aspectos da subjetividade.
Num segundo nível de centralidade está a expressão “desde criança”, indicando o lugar no tempo onde surgiram os primeiros sinais da arte que acompanharia esses indivíduos ao longo das suas vidas. São lembranças que retornam de um tempo distante, trazendo junto personagens de grande importância na vida do artesão e que foram responsáveis por despertar o amor pelo ofício do artesanato.
Rede 01: Símbolos e Mito3
Fonte: Elaborado pela autora, 2021 - Software: Gephi, 0.9.2
A rede semântica evidencia também as palavras “meninas” e “tricô” confirmando a proximidade das meninas com a arte da costura. Na memória, a presença do pai ou tio, e a reverência àqueles sentires que encantavam a criança e abria um caminho cognitivo para a arte do artesanato, como se confirma em Rey (2011, 2017) ao apresentar a importância das relações tecidas ao longo da vida, fatores históricos que o antecedem, bem como a cultura do ambiente que cerca o indivíduo como fator coadjuvante na formação dos aspectos subjetivos:
Artesanato é uma coisa que eu adoro, porque isso aí vem dos meus antepassados, um tio, meu pai. Naquele tempo se dizia era (sic) trabalhos manuais. Meu tio pegava uma tábua e riscava um elo e outro elo, um dentro do outro, e com um canivete ele fazia uma corrente. Eu ficava olhando ele trabalhando, na minha infância, e assim eu aprendi fazer (Narrativa 13).
Trabalhos manuais, na rede semântica, evidenciado pela expressão “à mão”, exigem perícia e agilidade que se tornam habilidades desenvolvidas ao longo da vida. No caso dos artesãos, a mão se torna um símbolo do fazer com perfeição, dedicação e cuidado, e corrobora o pensamento de Morin (2015) ao afirmar que a razão humana está povoada de analogias capazes de comandar o universo simbólico produzindo representações que se projetam sobre o mundo exterior identificando-se com a realidade percebida.
E no terceiro nível de centralidade, a expressão “fonte de renda” no contexto espacial das expressões “dinheirinho” e “meu trabalho”, apresentou a perspectiva econômica simbolizada nessas memórias, o que significa dizer que a possibilidade de aferir renda, a partir do artesanato, não se trata de algo novo ou fora do contexto de vida desses indivíduos, tendo sido uma opção real que acompanhou o crescimento da habilidade do artesão desde a mais tenra idade.
É interessante perceber duas narrativas que permaneceram periféricas, ainda que conectadas aos centros por algumas expressões em comum. Contudo, o afastamento em relação à distribuição espacial dessas palavras indicou, na rede, aquilo que é diverso, no sentido de que a maioria das palavras e expressões que as compõem não integram os discursos centrais.
As expressões “nunca me interessei”, “amenizar a dor” e a palavra “terapia”, denota uma realidade diferente da maioria dos artesãos que apontaram as memórias do artesanato ligadas a conforto psicológico. No caso das narrativas que surgiram periféricas, o artesanato representou algo que não fez parte da vida daquela artesã até que experimentasse um sofrimento e, assim, tornou-se uma terapia, ou mesmo um desafio, como o fato de a pessoa não ser destra, ou o fato de não ter tido alguém que ensinasse, e nesse sentido o vínculo com as palavras “arte”, “amor” e a expressão “coisas natas”, indicaram um caminho de coragem para o apoderamento daquilo que se mostrou desafiante ao longo da vida.
Essas narrativas diferiram das demais por apresentar, de certa forma, discursos negativos em contraposição aos demais discursos positivos relacionados às memórias com o artesanato. Negativos porque trouxeram um certo peso nas memórias, demonstrando um caminho mais sofrido para conquistar a habilidade da profissão.
A rede semântica Símbolos e Mito, evidenciou aspectos da subjetividade individual dentro de uma dinâmica de aproximação e diferenciação daqueles profissionais. Histórias particularizadas que compuseram os seus perfis e sinalizaram limites e desafios para o fazer coletivo. As três narrativas que se posicionaram de forma mais periféricas na rede, revelaram perfis diferentes dos demais, ao invés de memórias da família transferindo o conhecimento, surgiram memórias de um aprendizado solitário e desafiante, diante de um grande desejo de dominar a arte dos trabalhos manuais; e memórias de uma arte que foi apresentada já na vida adulta, diante de uma necessidade de ocupação que pudesse acalentar um sofrimento na família.
Essas configurações subjetivas individuais que se mostraram periféricas na estrutura da rede, podem ser corroboradas a partir das narrativas abaixo:
Quando a minha mãe teve o diagnóstico de Alzheimer fiquei muito triste. Meu filho, ao conhecer os projetos da UESB, me sugeriu participar do curso de informática do Centro de Extensão. Chegando lá, conheci as meninas do tricô em outro projeto de qualidade de vida. Aí pronto, graças a Deus, foi como um psicólogo maravilhoso (...) Sou dona de casa, mas nunca me interessei fazer nada de artesanato, porém ali foi para mim uma grande terapia, um momento maravilhoso na vida de todos que estavam ali. Ainda descobri que se tornou uma terapia remunerada, pois vendo minhas coisas, vendo meus tapetes, faço peças e vendo (Narrativa 07).
Não sei como aprendi, acho que são coisas natas mesmo, porque não tive quem me ensinasse e as pessoas que eu via fazendo eram destras, e eu sou canhota, então até ficar olhando era um desafio para mim (Narrativa 15).
Apesar disso, todas as narrativas, estando mais centralizadas ou não, permaneceram ligadas pelos vértices mais fortes (mãe, vida, filho), além do amor pela arte, admiração, paixão, o tipo de costura ou ser um lazer e um prazer.
Narrativas envolvendo trabalhos manuais, vistos enquanto ofício ou lazer, se fazem presentes na história das sociedades desde os tempos mais remotos, aparecendo em várias passagens bíblicas como o símbolo da obediência, da reverência do filho que honra o seu pai aprendendo a sua profissão. José era carpinteiro, e Jesus foi reconhecido como o filho do carpinteiro. Logo, o ofício dos trabalhos manuais também evoca a imagem da Sagrada Família. E quanto às mulheres, a imagem da mulher virtuosa que honra o seu lar e seu marido, desenvolvendo habilidades manuais, também está presente no contexto dos textos bíblicos (Provérbios, 2:10-29).
As narrativas bíblicas fortalecem a grandeza dos trabalhos manuais que é transferido de uma geração a outra, com ênfase nas relações familiares e de sobrevivência. A simbologia envolta nas memórias dos artesãos corrobora a reprodução do mito (Morin, 2015) e situam a habilidade com os trabalhos manuais numa perspectiva de essência de vida, como se pode observar nas falas transcritas abaixo:
Artesanato para mim é família, sinto uma alegria muito grande em saber que minha mãe morreu e deixou esse ofício pra gente, isso pra mim é uma riqueza muito grande (Narrativa 04).
Artesanato pra mim é uma herança familiar, quando eu nasci já estava envolvida no artesanato e isso já vem de lá, de nossa comunidade quilombola. Eu já conheci o artesanato com nós em grupo (sic), dividindo ideias, tempo, experiência, um ensinando pro outro, pai e mãe ensinando pra os filhos e todos aprendendo com as pessoas da comunidade a fazer trabalhos belíssimos. O meu artesanato que é o crivo, representa na minha vida resistência, sobrevivência e coragem (Narrativa 05).
Assim, o pensamento simbólico passa a se expressar na vida e nas ações dos artesãos(ãs) através desse mito, criando padrões que se evidenciarão nas crenças, nos ritos e valores durante a caminhada existencial desses indivíduos, como sugere a Teoria da Subjetividade elaborada por Gonzalez Rey (2017).
Assim como a rede Símbolos e Mito, a rede Crenças surge como uma rede livre de escala, uma distribuição multicêntrica, evidenciando expressões que se organizam no entorno das palavras “vida”, “artesanato” e “Deus”, numa dinâmica de aproximações e distanciamento, com presença de crenças diversas a partir desses centros, como mostra a Rede 02 – Crenças.
Fonte: Elaborado pela autora, 2021 - Software: Gephi 0.9.2
Estando Deus e a Vida nos centros enquanto Hubs que caracterizam uma rede livre de escala, é possível perceber a presença do mito que dá forma a essas crenças e que está diretamente ligado à religiosidade, dando mostras novamente de coerência com as mensagens bíblicas que exaltam reverência e gratidão a um Ser Supremo.
A habilidade para trabalhos manuais se une ao sagrado no imaginário dos artesãos, seja pela leitura da Bíblia ou pela presença da família, enquanto formadora daquele conhecimento desde a infância dessas pessoas. Desse modo, é um conhecimento que transita de geração em geração e que está carregado de significados na vida de quem o experimenta. São narrativas que mostram um respeito muito grande a palavra Deus e que podem ser confirmadas nas falas das(o) artesãs(ão):
O que me encoraja é Deus acima de tudo, mas a vida é uma escola e se a gente passar pela vida sem aprender não vale à pena (Narrativa 02).
Na minha vida primeiramente Deus, depois o que eu faço, meu artesanato, meu trabalho (Narrativa 03).
A expressão “não sou perfeita”, surge muito próxima do centro definido com a palavra “Deus”, revelando a compreensão dos limites da condição humana numa perspectiva de subordinação a uma lei maior que lhes servem como guia. Está seguida pelas expressões “não sei vender” e “individualidade”, dando mostras de afastamento, desse grupo de narrativas, das questões comerciais e cooperativas no lidar com o artesanato.
O termo “artesanato” surge na rede crenças, porém em grupos diferentes. Observa-se a palavra diferenciada pela expressão “nosso”, indicando, daquela perspectiva, forte apoderamento da habilidade em um contexto de narrativas que se aproximam pelas ideias de sustentabilidade, aceitação de que não se pode parar, sobrevivência, ação em comunidade, reconhecimento da arte como um trabalho e união, evidenciadas nas expressões “nosso trabalho”, “grupo”, “dividir identidade”. Evidenciam também a certeza do “aprender”, do “aprender com a vida”, de “vencer o medo”, do “confiar”, do “ajudar” e da “força das palavras”.
Mais isoladas, porém, também conectadas à palavra Deus, duas narrativas com discursos negativos, no sentido de não participarem das falas convergentes e apresentarem crenças pouco otimistas sinalizadas nas expressões “desemprego”, “atraso da cidade”, “sou difícil”, “a idade”.
Porém, observa-se a palavra “gestão” acompanhando uma das narrativas e inserindo, no contexto dessas diferenças, aspecto semelhante às demais quando também revelaram as palavras empreendedorismo, empresa, cliente e empoderamento,
Ao longo das narrativas dos(as) artesãos(ãs), e ao narrar as suas crenças, surgiram, naturalmente, aspectos onde se mostraram céticos, e assim elaborou-se a Rede Descrenças (Rede 03) para apresentação dessa informação. Essa rede revelou-se mais segmentada, apesar de não polarizada uma vez que apresenta algumas narrativas conectadas por expressões em comum. Porém, mostra divisões bem pontuais no perfil dos artesãos ao que se refere às suas descrenças.
Fonte: Elaborado pela autora, 2021 Software: Gephi, 0.9.2
A palavra “industrializado” sugere o apego ao trabalho manual. No seu entorno, a expressão “sem tradição” indica o valor aos costumes, presente na fala dos artesãos. Observa-se também a palavra “máquina de costura” conectando algumas narrativas e indicando a importância de ferramentas mais artesanais tais como as agulhas, em oposição às máquinas.
A palavra “valorizar”, também evidenciada na rede, mostra o quanto aqueles artesãos desconfiam da existência de reconhecimento ao seu trabalho. Próximo, surge o termo “individualismo” e, uma vez que a rede representa as descrenças dos artesãos(ãs) aquilo sobre o que se mostram céticos, a palavra em questão aponta uma aceitação da união e do coletivo no fazer artesanal, o que corrobora a racionalidade vivenciada na Economia Solidária de um trabalho focado na união e cooperação de seus agentes.
Na parte inferior da rede observa-se duas narrativas compartilhando a descrença no dinheiro, além de outras narrativas independentes que apontam a descrença no dom, nos sonhos, em turistas, na arte de criar e até mesmo nas feiras de artesanato. É possível perceber no desenho dessa rede uma grande diversidade quando se trata de descrenças, ao contrário das crenças, onde existiu conexão entre as palavras e expressões. As descrenças dos artesãos se mostram até mesmo contrárias, quando se observa em uma narrativa o desacreditar em lojas de departamento, outra no mercado de artesanato, e ainda outra em barracas ou feiras. Tem quem não acredita na possibilidade de criar, como tem quem não acredita em dom.
Das redes Crença e Descrença constatou-se o quanto esses profissionais podem se unir a partir daquilo que acreditam, mas também o quanto se diferem sobre aquilo dos quais são céticos. O fato de acreditarem nas mesmas coisas é ponto bastante positivo para um diálogo em grupo. Contudo, percebe-se a necessidade de dialogar também sobre as descrenças que se revelaram numerosas, diversas e até mesmo contrárias. Caminhar por aquilo que une para viabilizar um projeto socioeconômico parece ser a melhor estratégia de sustentabilidade, mas sendo as descrenças maiores que as crenças, torna-se prioritário esse tema, em detrimento de outros.
Entende-se por ritos a manifestação das crenças de um indivíduo ou comunidade (Morin, 2015; Gonzalez Rey, 2017), na rede Ritos (Rede 04) o centro revela a preferência pela comercialização com foco em pequenos pontos comerciais, “lojinhas” ou “barracas” que é uma característica comum no artesanato, sendo muito utilizada como estratégia de vendas na Economia Solidária. A preocupação com a divulgação também se torna central entre as narrativas, dividindo espaço com o esforço em conquistar o cliente, bem como as questões relacionadas à precificação, tanto no sentido de colocar preço nos produtos quanto na prática de abaixar os preços durante a negociação.
Fonte: Elaborado pela autora, 2021 - Software: Gephi 9.0.2
A rede aponta muitos discursos negativos no sentido da comercialização, tais como “não sei vender”, “não tenho jeito”, “não tenho coragem”, “tenho muito prejuízo”, “não dou conta”, “dou de graça”, “não sei lidar com dinheiro”, “parceria é ruim”, “trabalho só” indicando o quão desafiante se torna a prática empreendedora para os artesãos.
Assim como observado em relação às crenças e descrenças desses profissionais, percebe-se entre os ritos de comercialização, aspectos que unem e que os diferenciam, nesse caso, estando as principais diferenças concentradas na venda e no trabalho coletivo, o que evidencia mais um desafio para um processo de gestão.
A rede Sonhos (Rede 05), inicialmente, parece uma rede polarizada, visto a maioria dos vértices estarem desconectados com o centro. Contudo, mesmo estando desconectadas com o centro, as palavras que surgem dessas narrativas expressam o desejo de comercializar seus produtos quando se observam as expressões “ter turistas aqui”, “viver do artesanato”, “criar uma lembrança de Vitória da Conquista”; e também nas palavras “produzir”, “expandir”, “reconhecimento” e “cliente”. No centro, algumas narrativas se conectam pelas palavras “Espaço”, “Expor” e “Expor fora do Brasil”, indicando sonhos que surgem do desejo de comercializar o artesanato e que são acompanhados pelas palavras “vender”, “união”, “mega feira” e, bem próximo, observa-se a palavra “gestão”.
Fonte: Elaborado pela autora, 2021 - Software: Gephi 9.0.2
Desde os símbolos as configurações subjetivas desses profissionais apontam a questão econômica imbricada na relação com o artesanato. O artesanato entra na vida desses indivíduos, trazidos pelas gerações que se sucedem, ensinado pelos ancestrais, e sempre acompanhado da possibilidade de contribuir para a renda da família, seja pela comercialização, seja na produção de itens necessários à casa. Assim, a geração de renda a partir dessa habilidade não se mostra desarticulado das possibilidades dos artesãos, ao contrário, ainda que tenham revelado em seus rituais as dificuldades nessa área, a possibilidade de comercialização assume um lugar nos sonhos junto com outras questões particularizadas como “progredir na vida”, “metas”, “ser destaque”.
Por outro lado, os medos costumam atrapalhar os sonhos e, sendo assim, a Rede 06 - Temores extraiu das narrativas aspectos das subjetividades que são caros aos artesãos e fragilizam a certeza que possuem na habilidade que carregam. São preocupações, receios, inseguranças e incertezas que surgem em seus discursos e que sinalizam os desafios presentes em suas caminhadas.
No centro da rede, as palavras “convivência”, “desvalorização” e “desmotivar” já apontam para dois paradigmas importantes, o desafio da convivência que acompanha as Organizações de Economia Solidária e que foram revelados no mapeamento realizado em 2016; e o desapontamento dos artesãos com a falta de reconhecimento dos seus trabalhos que leva à desmotivação. Sendo uma rede multicêntrica, vários outros temores unem esses profissionais e vão dando luz aos motivos de inseguranças que podem impactar o impulso empreendedor, como o receio da “impossibilidade de dedicação” à sua arte, a “ausência da divulgação” do seu trabalho, “não vender”, “não ter retorno”, a dificuldade de realizar compras, ausência de turistas e as “pechinchas”.
Fonte:Elaborado pela autora, 2021 - Software: Gephi 9.0.2
A palavra “imperfeição” aparece também nesta rede, indicando a preocupação que carregam no sentido de acertar, e isso é corroborado com as palavras “avesso perfeito”, “acabamento” e “críticas” que são rotinas comuns nos artesanatos e fonte de observação por quem avalia as peças. A preocupação em não trabalhar só, ou de que as pessoas “achem caros” os produtos, receber “encomendas” e receber “calote” são indicativos das dificuldades mostradas em seus rituais de comercialização e que tem nesses temores uma justificativa.
Medos comuns à profissão unem-se próximo ao centro da rede, “faltar material”, “colocar preço”, “fiscais”, “a idade”, “refazer”, e até o “sono” aparecem como dificuldades particularizadas, mas também conectadas nas narrativas dos artesãos. Um discurso se mostra mais isolado, e não convergente com os demais, traz o temor das questões de mundo, do “país”, das “limitações físicas”, das “novas gerações” e das “dificuldades financeiras”, ponto este que se conecta às demais narrativas.
Na busca pela estratégia de gestão voltada para fortalecer o coletivo, é interessante observar que a rede Temores apresenta convergência, enquanto a rede sonhos não apresenta a mesma convergência, logo os sonhos que muito mais mobilizam o fazer coletivo do que os medos que, ao contrário, paralisam. São aspectos que possibilitam estratégias diferenciadas de gestão, pois uma coisa é fomentar a união a partir da mobilização dos sonhos, e outra coisa é fomentar a união a partir da mobilização dos medos. Nessa última hipótese, corre-se o risco de obter um coletivo que somente se faz sentir nos momentos de dificuldades, deixando de existir quando estas forem sanadas, e que muito se observa em organizações dessa natureza, quando associados se afastam do grupo optando por continuar os negócios sozinhos na medida em que vão progredindo e aumentando a renda. Assim, agem em benefício próprio numa atitude individualista e dentro de uma racionalidade instrumental e utilitarista, abandonando o coletivo à própria sorte, numa atitude bem próxima dos valores exaltados no livre mercado.
A Rede Valores (Rede 07) traz a palavra “aprender” no centro da vida dos artesãos quando o tema é artesanato. A habilidade que desenvolvem como trabalho e prazer está assentada na perspectiva da contínua aprendizagem. No seu entorno, a família, a vida, a humildade, a motivação e o desafio de tentar sempre. Reconhecimento e elogios têm significado importante para esses profissionais que tem no seu trabalho uma fonte de prazer. Entre os seus valores também estão os amigos, o respeito, a autoestima, a persistência e esperança, aspectos que contribuem para o trabalho coletivo, bem como para a comercialização, presente em todas as configurações desenhadas a partir de suas narrativas.
Fonte: Elaborado pela autora, 2020 - Software: Gephi, 2020.
A perspectiva cognitiva desses profissionais ultrapassa receitas e fórmulas a serem seguidas, os momentos de aprendizagem se confundem com os momentos de inspiração, traduzindo-se em um processo criativo constante, onde aprende e ensina, aprende e cria, aprende e sonha, como nas falas abaixo:
...eu sinto mais dificuldade de criar, normalmente eu pego modelos de internet ou observo uma necessidade que eu tenha. Normalmente as minhas necessidades me trazem inspiração e tenho isso como um desafio (Narrativa 09).
...eu tomei cursos na Igreja, e a professora perguntava porque eu só queria coisas difíceis, eu disse que é porque coisa fácil a gente aprende em todo lugar e a oportunidade a gente aproveita para aprender as coisas difíceis (Narrativa 14).
Da memória dos símbolos que compõem o imaginário desses profissionais até a demonstração do que se revela valores, percebe-se uma coerência que envolve os aspectos dessas subjetividades, pois o que iniciou com um aprendizado na infância, ou mesmo na fase adulta da vida, surge novamente como valor a ser preservado, a vontade de aprender, forte e centralizada na rede, é o valor que reúne esses profissionais e que na construção coletiva se torna o caminho seguro para lidar com as diferenças. O artífice está aberto para o aprendizado ao longo da sua vida e este é o desafio que impulsiona o seu caminhar. O desafio da aprendizagem é inerente ao seu trabalho e pode se tornar o fio condutor para diversos outros aprendizados, incluindo o fazer coletivo.
3.6 A união como base da cooperação
Partindo das constatações evidenciadas ao longo deste estudo, e considerando o papel da Incubadora na prestação de assessoria para fortalecimento de organizações da Economia Solidária, observa-se o quanto do encontro entre o individual e o coletivo foi desconsiderado no projeto de criação da Cooperativa Criar e Recriar. O objetivo de trabalhar junto aos artesãos para a produção coletiva, invisibilizou os aspectos das subjetividades individuais desses profissionais, focando fortemente no desejo evidenciado pelo coletivo. As ações desenvolvidas pela Incubadora se concentraram na organização do grupo diante da possibilidade de auferir renda, mas não buscou conhecer os aspectos individuais formadores de mitos, crenças e ritos que poderiam agir na fragmentação desses profissionais. A utilização de técnicas, cursos, palestras mobilizaram sonhos, mas sempre a partir do coletivo, nunca a partir do indivíduo. O acompanhamento do grupo, consoante os registros analisados, também não abriu espaço para entender o sentido que o artesanato se fazia presente na vida daquelas pessoas, nem a formação do mito ou a sua ligação com o sagrado. Assim, a Incubadora assumiu o desafio da formação de empreendedores sem considerar as múltiplas dimensões envoltas no fazer daqueles profissionais do artesanato, percebe-se o equívoco em tentar unir padronizando comportamentos, forçando a atuação conjunta para garantir a visibilidade e fortalecimento do grupo. Essas lacunas geraram fragmentações que se tornaram fortes o suficiente para desmobilizar o coletivo diante do desafio de alavancar a produção da cooperativa.
Este estudo discutiu a importância do reconhecimento das subjetividades individuais e coletivas para o fortalecimento das relações colaborativas em grupos de produção associada, tendo o estudo recebido aporte de redes semânticas para representação daquele conhecimento. Para tanto, apresentou 07 (sete) redes desenvolvidas a partir da escuta de narrativas de artesãos, integrantes do Movimento de Economia Solidária, na cidade de Vitória da Conquista – Bahia - Brasil.
A Economia Solidária é um Movimento que busca possibilitar espaço de comercialização para aqueles que estão à margem do mercado tradicional, a partir do diálogo entre Estado, mercado e sociedade, motivando a criação de organizações de produção associada. Nessas organizações solidárias a produção coletiva é o pilar de sustentação que possibilita o crescimento do grupo.
Dessa perspectiva, presume-se que a união desses profissionais está assentada na capacidade de trabalharem juntos. Contudo, observou-se que, mesmo na presença de sonhos convergentes, existem outros aspectos capazes de impedir a aproximação de um grupo, pois os sonhos sozinhos não representam a totalidade das subjetividades que motivam as pessoas. Para tanto, outros aspectos subjetivos como símbolos, mitos, crenças, ritos e valores compõem a racionalidade que permite o encontro ou afastamento dos indivíduos. E esses aspectos não precisam ser totalmente convergentes, tal como se observa nas organizações do livre mercado, onde se valoriza comportamentos padronizados e convergentes respondendo a perfis aceitos pela lógica do capital. Esse estudo parte do pressuposto de que ninguém é igual a ninguém e as diferenças e individualidades, em grupos de produção associada, precisam ser acolhidas na formação do todo, gerando um movimento de construção coletiva onde cada um se permita conhecer e aceite conhecer o outro, para então assumirem esse caminhar conjunto, como prezam os princípios da Economia Solidária.
As Incubadoras, diante da necessidade de atrair subsídios, se lançam numa racionalidade instrumental com foco no coletivo, desviando-se de olhar o indivíduo, suas questões subjetivas e particularidades. Reconhecer as diferenças e observar a transformação dos indivíduos que compõe um grupo, ao longo da convivência organizacional, significa assegurar que as estratégias definidas na gestão permanecem, ou não, adequadas àquele coletivo e capazes de resultar em respostas harmônicas aos desafios do dia a dia. Novos instrumentos são necessários e devem ser idealizados dialogando com o que é diverso, com a complexidade envolta nas organizações da Economia Solidária. Para tanto, ferramentas como a elaboração de redes e análise de narrativas mostram-se oportunas e precisam fazer parte dos instrumentos das Incubadoras, sob pena de não conseguirem acessar as múltiplas dimensões que envolvem esses profissionais no contexto das organizações populares solidárias.
Este artigo é o resultado de uma pesquisa que continua sendo ampliada para a elaboração de outras redes, no sentido de dialogar com mais profissionais do artesanato. Entende-se que os resultados aferidos com o grupo desse estudo não esgota o tema, ao contrário, desperta várias novas perguntas em direção ao fazer coletivo e às possíveis estratégias de apoio e fomento a grupos de produção associada.
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1 Este artigo deriva da tese intitulada Complexidade, Subjetividade e Gestão das Relações Colaborativas na Economia Solidária (2021).
2 Matriz onde vértices são disponibilizados em linhas e colunas, e cada célula representa uma aresta do grafo.
3 A Rede 1 – Símbolos e Mito é parte adaptada de publicação anterior em XIV Colóquio Nacional e VII Internacional do Museu Pedagógico da UESB, 2022.